A cassete está a voltar ou afinal nunca desapareceu?
Vemo-la estampada em "t-shirts", mas a cassete que ouvíamos no "walkman" continua a ser editada e acolhida por estilos de música mais marginais. É melhor manter o leitor de k7 no carro?
Nos anos 80, a British Phonographic Industry lançou o "slogan" que marcou uma era: "Home taping is killing music". Hoje, trinta anos depois, a conversa continua a mesma, com a pirataria "online" a amedrontar as grandes indústrias. O tempo provou que correr para o rádio para premir REC não matou a música, mas, numa altura em que o vinil está a ter um novo fôlego, o que é feito da cassete? Já agora, um pequeno teste: o que é que uma caneta e uma k7 têm em comum?
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Nos anos 80, a British Phonographic Industry lançou o "slogan" que marcou uma era: "Home taping is killing music". Hoje, trinta anos depois, a conversa continua a mesma, com a pirataria "online" a amedrontar as grandes indústrias. O tempo provou que correr para o rádio para premir REC não matou a música, mas, numa altura em que o vinil está a ter um novo fôlego, o que é feito da cassete? Já agora, um pequeno teste: o que é que uma caneta e uma k7 têm em comum?
Com 26 anos, Vítor Silva, Kikas, como prefere ser tratado, descreve este ritual de puxar a fita ao falar do "modo de vida" que é a dedicação à cassete. Não é o único a insistir num meio que muitos pensavam já estar esquecido. O mercado "indie" e experimental tem apostado na cassete — Deerhunter, Dirty Projectors, Animal Collective, Of Montreal, The Mountain Goats já as lançaram — e o "chillwave", que recupera os sintetizadores dos anos 80, abraçou-a como perfeito condutor "lo-fi" — basta olhar para o percurso de Washed Out, Toro Y Moi, Julian Lynch, Real Estate e Ducktails, o projecto de Mondanile a solo.
Também em Portugal a cassete nunca parou de rodar, particularmente dentro da música experimental e do metal. É, aliás, perto do Porto que se situa a única fábrica da Península Ibérica que ainda faz cassetes. Kikas é um dos "rockeiros" que ainda põe as Tapematic a funcionar e, por isso, entra na Edisco quase como se fosse a sua casa. É aqui que faz os lançamentos da Degradagem, editora que criou há cerca de cinco anos, especializada em "grindcore"/"fastcore", com uma particular adoração pela cassete. Faz 100, 200 cópias, no máximo, e vende-as, principalmente para o estrangeiro, por 3,50 euros, com uma margem de lucro mínima.
É uma questão de "activismo" e também de algum "saudosismo" dos tempos do "tape trading", quando trocava cassetes por correio com esperas de, às vezes, três meses. Prefere a cassete, aquela que tatuou no braço, ao CD-R, formato que na entrada do novo milénio ajudou muitas bandas a começar. "A cassete é para quem tem um compromisso com a música. É mais para quem sente", diz, até porque obriga a alguma dedicação, seja pelas limitadíssimas cópias que hoje são feitas, seja pelos cada vez mais raros leitores de cassetes. "O que ainda vai safando é que o pessoal tem um leitor de cassetes ainda no carro."
Contra a “volatilidade do mp3”
Se há dois anos era difícil para Kikas esgotar as suas cassetes, hoje "despacha-as" em dois meses. Estará o mercado a mudar? "Está a crescer, mas não vai voltar como o vinil. A 'tape' está num círculo mais fechado", responde Pedro Blaspher, um dos fundadores da Helldprod, editora de metal criada em 1993, que conta com 34 edições em cassete. É também membro da Infernüs, banda cuja discografia corresponde a seis cassetes, e um coleccionador — tem 800 guardadas em armários feitos para o efeito na Alemanha.
Quando um grupo quer editar o primeiro trabalho, Pedro aconselha sempre o formato "oldschool", a "demo tape". "O CD-R não tem significado. É para facilitar e tira o espírito de há 15 anos", diz. Ficaria mais barato, sim, mas há que ter "respeito ao passado e ao formato". Além disso, a cassete, enquanto objecto, tem "um significado especial" por remeter para um "ambiente DIY ['do it yourself'] e artesanal". O som "cru" adequa-se ao metal, daí ter tamanha popularidade no meio.
É também este "'hiss' [silvo] característico, algo sedutor", que agrada a Tiago Jerónimo, que está por trás da Cérebro Morto, editora, criada por volta de 2006, com o objectivo inicial de editar apenas em cassete. Hoje, cada lançamento da Cérebro tem uma edição em CD-R e uma especial em cassete, com uma tiragem muito limitada e um "package" feito à mão, e é acompanhada por um "zine" com entrevistas aos artistas e ilustrações.
"A cassete nunca deixou de existir. Atravessou foi momentos de maior e menos popularidade", comenta Tiago, por e-mail. O lado DIY tem aqui uma importância clara, tal como a valorização da cassete enquanto objecto. Sente-se uma "vontade de continuar um caminho (começado nos ano 60) de complementar a música com uma embalagem de forte vertente artística e personalizada", dando "identidade e personalidade" às editoras, em resposta à "volatilidade do mp3" e "à saturação na utilização do CD-R".
“As cassetes eram a nossa Internet”
É a reacção de uma geração que começou a ouvir e a partilhar música com a cassete e a herança chegou até hoje, por exemplo, com as "mixtapes" na Internet. "Na altura não havia cá digital que valesse: ou alguém tinha o álbum ou não tinha. Se tivesse, pedia-se uma cópia em cassete", recorda Tiago, ressalvando algumas vantagens da cassete: "Fácil de adquirir", "barata" e, ao contrário do CD-R, passível de ser "gravada e re-gravada". "As cassetes eram a nossa Internet", conclui Rui Pedro Dâmaso, membro dos Frango, que editaram pela Cérebro, em k7, Pego de Lobo Luz, fundador da Searching Records e um dos promotores do Out.Fest. "Fazíamos o que se faz agora com o mp3. Era uma forma de partilha."
Rui não sabe se há um "ressurgimento" da cassete, se será "o novo vinil" — "se calhar nenhum deles morreu" —, mas considera que tem tudo a ver com a "relação emocional ao objecto" e com a forma como hoje se consome música. "O digital é uma forma de conhecer, mas depois quem tem instinto de coleccionador... compra." Com o mp3 perdeu-se a noção de álbum, "do lado A e do lado B". Conceptualmente, diz, a "rugosidade" e as "arestas" do som da cassete agradam à vaga mais experimental de músicos que recuperam os sintetizadores.
Branches é um deles. "O meio é a mensagem", remata. Em 2006, lançou, pela Searching Records, o CD-R "Seiva" e, em Janeiro, as cassetes "Primeira Vez" e "Ninguém É Como Tu". Porquê? "O som da cassete, 'lo-fi', e a própria deterioração da fita tem a ver com o que estou a procurar na música agora". Gosta da possibilidade de, ao contrário do CD, "nenhuma cassete soar como outra", o que não significa que não disponibilize as suas músicas em mp3.
"Eu quero que esteja tudo online. A cassete é quase pelo culto do objecto", diz, até porque o mp3 é imaterial, não é palpável. Por outro lado, atravessámos um momento tendencialmente revivalista. Estaremos fartos da vida que temos? "Quando tens tudo gratuito a cassete pode ser a única ligação que se tem às características fetichistas da música... de ter um objecto."