As pernas unidas jamais serão vencidas
Não há lugar na dança contemporânea para as fabulosas pernas que Philippe Decouflé trata como o derradeiro dos fetiches. E não há porque Octopus é apenas um espectáculo: naquele sentido, talvez irremediavelmente perdido, de coisa para fazer abrir a boca de espanto (o que o coreógrafo francês fez, e muito, para não dizermos tudo, quando em 2000 mostrou Triton no Porto). Doze anos depois, é ele que abre a boca de espanto quando lhe perguntamos se a beleza tão clinicamente cultivada no espectáculo que dias 22 e 23 chega ao Centro Cultural de Belém, Lisboa, não está, enfim, um bocado fora de moda no mundo às vezes bem trash da dança contemporânea: "Não sei o que dizer. A dança contemporânea não é a minha especialidade, nem sei porque é que sou coreógrafo [risos]. Sou um francês como os outros, um francês que se debate como pode neste mundo horrível. Acredito na força do espectáculo, acredito no entretenimento. E a dança convém-me porque não me obriga a contar uma história".
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Não há lugar na dança contemporânea para as fabulosas pernas que Philippe Decouflé trata como o derradeiro dos fetiches. E não há porque Octopus é apenas um espectáculo: naquele sentido, talvez irremediavelmente perdido, de coisa para fazer abrir a boca de espanto (o que o coreógrafo francês fez, e muito, para não dizermos tudo, quando em 2000 mostrou Triton no Porto). Doze anos depois, é ele que abre a boca de espanto quando lhe perguntamos se a beleza tão clinicamente cultivada no espectáculo que dias 22 e 23 chega ao Centro Cultural de Belém, Lisboa, não está, enfim, um bocado fora de moda no mundo às vezes bem trash da dança contemporânea: "Não sei o que dizer. A dança contemporânea não é a minha especialidade, nem sei porque é que sou coreógrafo [risos]. Sou um francês como os outros, um francês que se debate como pode neste mundo horrível. Acredito na força do espectáculo, acredito no entretenimento. E a dança convém-me porque não me obriga a contar uma história".
Octopus, precisa Philippe Decouflé, "não é dança contemporânea, é um divertimento". E de certa forma é também o resumo do estado da arte de um coreógrafo que passou parte dos últimos anos a trabalhar para duas máquinas de fazer entretenimento kitsch, o Crazy Horse e o Cirque du Soleil. "Preciso muito das minhas criações. O meu espaço de liberdade é a minha companhia [a DCA]. Aqui estou longe da encomenda, posso fazer o meu verdadeiro trabalho", diz ao Ípsilon. Mas sim, as pernas, aquelas pernas fabulosas que o Libération puxou para título quando Octopus se estreou em 2010 no Théâtre National de Bretagne, vieram do Crazy Horse. Estranhamente, os homens de saltos altos também: "Depois de tanto tempo a trabalhar só com mulheres, quis trabalhar com homens como se fossem mulheres. Erotizá-los. Não se faz muito".
Um catálogo DecoufléAlém do Philippe Decouflé circa Crazy Horse, Octopus vai buscar outras fases do coreógrafo: o uso fetichista do preto e branco é Decouflé a ressacar Sombreros, e ali naquela luta de línguas da primeira parte do espectáculo talvez possamos ver a luta de barrigas de Triton, que na verdade nunca nos saiu da cabeça. A ideia de um catálogo Decouflé está, de resto, escrita na testa do subtítulo, Extraits du Catalogue: jalousie, shiva pas, hélas tique, boîte noire, squelettes, l'argothique, talons aiguilles, boléro... et autres poèmes choreógraphiques; o título propriamente dito foi difícil de encontrar. "Octopus é o resultado de um longo trabalho e de uma série de encontros. Não é bem um espectáculo, é uma sucessão de quadros, de experiências - por causa disso foi particularmente difícil encontrar um título que falasse do conjunto. Ficou o nome de um animal simpático", explica o coreógrafo.
Além de polvo em inglês, Octopus também pode significar "oito opus": traduzindo, a apoteose de Philippe Decouflé. Interessa-lhe menos falar disso do que dessa ideia de oito espectáculos que se sucedem, como num zapping imposto ao espectador para seu próprio deslumbramento: "Divertimo-nos a criar coisas à volta de temas como o sensível, o sensual, o físico, o erótico, o sexual. Forçosamente o espectáculo tornou-se muito gráfico. Quando trouxemos os infra-vermelhos para o palco , isso acentuou-se". A utilização live do vídeo foi, diz, a descoberta de um admirável mundo novo de criação coreográfica: "Mudou tudo. A partir da replicação dos corpos dos bailarinos, o vídeo permite-me criar duplos perfeitos, ensembles perfeitos. Isso interessa-me como efeito óptico, caleidoscópico, mas também conceptualmente. E nenhum cenário é melhor para a dança do que um cenário gerado pela própria dança".
A não ser talvez o cenário, poderosíssimo, criado pelos músicos, Labyala Nosfell e Pierre Le Bourgeois, que partilham o palco com os oito bailarinos - o que, entusiasma-se Decouflé, permite que Octopus seja "um espectáculo diferente noite após noite, uma verdadeira arte viva". Recorrentes, as sucessivas versões de In the pines (um clássico do cancioneiro tradicional norte-americano que os Nirvana recuperaram na década de 90) colocam o ciúme no centro do furacão - é aqui, afinal, que as várias pernas de Octopus vêm dar. "O ciúme é o tema dominante do espectáculo, e não conheço uma canção que o exprima tão bem. Foi a única exigência que fiz aos músicos: regressar constantemente a In the pines".
Mas esse é apenas um dos muitos truques que o ilusionista Philippe Decouflé saca da manga na floresta luxuriante de Octopus. Talvez não esteja ainda no dicionário, mas há uma palavra para isso, decoufleries: foi ele que a trouxe para a tal dança contemporânea com a qual diz não ter nada a ver de momento (mas e os últimos 30 anos?). No Centro Cultural de Belém, veremos apenas uma parte do arquivo - o resto abre-se a partir de 6 de Junho, em gigantesco leque, na operação montada pelo Parc de La Villette, em Paris, que inclui uma grande exposição retrospectiva, Opticon, e dois espectáculos, Solo e Panorama. Está na altura, diz o coreógrafo, de olhar para trás (e, já agora, "de recuperar a energia dos anos 80 e 90"). E o que ele vê, do alto destes 30 anos no mundo do espectáculo, é que "mudou muito". "Há uma espécie de ‘sistema fundamental' que se mantém, mas o resto mudou. No início, escrevia tudo, coreografava tudo. Pouco a pouco, comecei a apoiar-me muito mais nos bailarinos, a confiar nos materiais que trazem para a sala de ensaios. Hoje sou muito mais um director artístico do que um coreógrafo".
Vamos fazer-lhe a vontade: aqui não se fala mais de dança contemporânea.