A afirmação de um corpo
Em Maio de 1871, Arthur Rimbaud escreveu a Paul Demeny uma célebre carta, a Lettre du Voyant, onde dizia: “Quando a interminável servidão da mulher for finalmente abalada, quando ela começar a viver por, e para ela própria - algo abominável até este momento -, quando a mulher se libertar, também ela, nesse dia, será Poeta.” Visionário, o poeta antevia assim o deslumbramento que a escrita das mulheres iria trazer à humanidade.
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Em Maio de 1871, Arthur Rimbaud escreveu a Paul Demeny uma célebre carta, a Lettre du Voyant, onde dizia: “Quando a interminável servidão da mulher for finalmente abalada, quando ela começar a viver por, e para ela própria - algo abominável até este momento -, quando a mulher se libertar, também ela, nesse dia, será Poeta.” Visionário, o poeta antevia assim o deslumbramento que a escrita das mulheres iria trazer à humanidade.
Rimbaud não viveu para conhecer Maria Teresa Horta, de contrário teria encontrado o território poético único, perfeito e singular que tem sido explorado pela autora. Como teria reagido? Não podemos sabê-lo. Mas podemos nós, que temos a felicidade de a conhecer e de a ler, segui-la na viagem de As Palavras do Corpo, antologia - segundo a autora, muito desejada - dos seus poemas eróticos, retirados de 12 obras, acrescidos de nove inéditos não datados. Assim juntos, lidos de seguida com a avidez merecida, estes poemas ressaltam das páginas como a história de uma vida e como a afirmação feroz e determinada da existência de um corpo - por oposição (ou complemento) à alma, essa sim tão explorada pelos poetas -, da sua cartografia, da sua “mecânica”, do seu mágico funcionamento. A ligação profunda estabelecida com o verbo é essencial, não só como acto criativo desmesurado mas também porque, como é sabido, as palavras servem os propósitos dos jogos do erotismo e da satisfação do prazer.
Será possível contar a história de Maria Teresa Horta, a história do seu corpo, do seu desejo e do seu espírito, percorrendo as páginas deste livro? Lendo em conjunto os seus versos, com o vagar e o gozo que merecem, compreendemos, como numa súbita iluminação, a narrativa espantosa, feita de delicadeza e franqueza, de força e lirismo, desta grande poeta: visitamos as Cidadelas Submersas, recônditos do desejo que permanece ainda num estado latente, mas prestes a revelar-se plenamente em Minha Senhora de Mim, partilhado numa Educação Sentimental que a autora não se coíbe de chamar a si. É ela que guia o amante, que o toma nos braços, que dirige as suas mãos, a sua língua, o seu sexo, que marca o ritmo, que rege o tempo, que vai apontando o caminho na paisagem física do prazer - experimentado em Só de Amor e recriado e reaprendido, com o devido ardor, em Inquietude.
A literatura erótica é um género - ou subgénero - que tem raízes muito antigas e que floresceu em momentos de crise, como uma espécie de último reduto civilizacional, como testemunho do reconhecimento da capacidade vital do ser humano para ter e dar prazer - mesmo nos piores momentos. De O Cântico dos Cânticos ao Kamasutra, do Banquete de Platão aos poemas (dispersos) de Safo, da Arte de Amar de Ovídio, ao Satiricon de Petrónio, dos escritos libertinos e blasfemos do Marquês de Sade à filosofia do prazer de Georges Bataille, passando por inúmeros romancistas como D.H. Lawrence, Colette, Anais Nïn, Henry Miller, Pauline Reage (aliás Anne Desclos), Alan Hollinghurst, o erotismo, em todas as suas combinações e vertentes, marca como um ferro em brasa os séculos e as civilizações.
Quando se trata especificamente de poesia, e de poesia erótica, existem vários caminhos, passíveis de serem decifrados nos versos desta Antologia exemplar. Tudo começa para nós, ocidentais, na Antiguidade Clássica, e Maria Teresa Horta não foge à matriz, à marca desse esplendor solar e mediterrâneo: existem aqui os ecos de Safo, essa mulher tão misteriosa que ensinava às jovens a arte de amar, e o desassombro de Ovídio que se intitulou o “mestre do amor”; são evidentes os traços do famoso livro do Antigo Testamento, o Cântico dos Cânticos, principalmente nas referências ao travo da amêndoa, ao leite e ao mel, ao prazer da contemplação da beleza dos corpos e ao deslumbramento das sensações; há vestígios das cantigas de amor e de amigo medievais em que o amor físico era descrito como uma arte, um sinal requintado de cultura, de delicadeza, de bem estar e de entendimento entre os sexos, na luta pela derrota da barbárie. Tal como, no século XII, mulheres como Marie de Champagne e Beatriz de Diaz sublinharam a vontade soberana da mulher nos jogos do prazer, Maria Teresa Horta não se coloca num papel submisso ou passivo. Ela nunca é um mero receptáculo do desejo masculino mas, isso sim, a ardente amazona que toma as rédeas e parte à desfilada nessa aventura, e nessa batalha, que é o amor carnal.
Existem também em Maria Teresa Horta, como é óbvio, fortes sinais da poesia romântica, mas a poetisa subverte estes conceitos, experimentando vezes sem conta essa “pequena morte” (o orgasmo) e no entanto celebrando a vida, levantando-se uma e outra vez, pronta para mais um duelo, para mais um torneio amoroso. Por isso a sua poesia é feita de ânsia e de desejo, mas também de consumação, e o seu erotismo é o da saciedade e não o da privação e da ausência, como o que nos é dado a entrever nas famosas Cartas Portuguesas de Soror Mariana Alcoforado.
E se Maria Teresa Horta escreve com o corpo todo, é impossível não mencionar a importância dos sentidos na prática do erotismo, uma vez que o tacto, o olfacto, o gosto, o olhar e o ouvido são os mais extraordinários detonadores (e também “guias”) da paixão amorosa. Neste versos estão sempre presentes, ligados a uma cartografia dos corpos que, de tão completa e exaltada, se transforma num quase “sistema” ao jeito de Sade ou num continente esplendoroso onde cada parte do corpo equivale a um mar, uma montanha, um rio, uma caverna, um bosque, um céu infinito.
E assim, do prazer blasfemo sadeano ao prazer sagrado - mas não religioso - de Bataille, o caminho é longo, belo e exaltante. Como encararia Sade uma mulher de uma coragem sem limites, que não recua perante nada nem ninguém na prática do prazer e no pleno uso da palavra e que afirma, logo no primeiro poema: “o desejo revolvido,/ a chama arrebatada,/ o prazer entreaberto,/ o delírio da palavra”?
Usar palavras para replicar eternamente o acto físico do amor e a aprendizagem do erotismo é, certamente, difícil. As palavras de Maria Teresa Horta remetem para o sexo, o bom sexo, o sexo partilhado, excitante, desejado, consentido e transfigurado pela arte em algo transcendente e poderoso, num hino à vida, ao amor e ao desejo, fonte inspiradora e afirmação de existência plena.?