Morreu Jean Giraud, o autor que mais influenciou os criadores do seu tempo

À excepção da série Forte Navajo, a sua vastíssima obra nunca foi popular. Mas o criador francês foi um autor de dimensão mundial e o primeiro grande desenhador do seu tempo

Foto
Auto-retrato de Moebius, incluído no livro Starwatcher (Casterman, 1992), uma colectânea de trabalhos gráficos DR

O desenhador e argumentista Jean Giraud morreu ontem de cancro em Paris, informou a família. Tinha 73 anos.

O autor de Blueberry, Incal e tantas outras criações de referência da banda desenhada franco-belga estava doente há dois anos e sabia-se que o seu actual estado de saúde era grave. Apesar disso, a notícia foi recebida com muita tristeza no meio da BD. “Toda a profissão está em estado de choque, totalmente arrasada”, declarou à AFP Gilles Ratier, secretário-geral da Associação de Críticos de BD. O desenhador François Boucq afirmou à mesma agência ter “perdido um verdadeiro grande amigo”. Recordou o talento de Giraud como “mestre do desenho realista”. Disse também que ele tinha um “real talento humorístico”, do qual ainda dava boa prova junto das enfermeiras há 15 dias, quando o visitou no hospital.

Yves Frémion, um dos animadores da revista Papiers Nickelés, consagrada à “imagem popular”, foi um dos primeiros a pôr a circular a notícia. As reacções de tristeza e perplexidade não se fizeram esperar. O crítico Gilles Ciment sintetiza bem o espírito dos comentários ao afirmar: “Perdemos de uma só vez um homem requintado e dois autores excepcionais. É terrível.”

Os dois autores que coexistiram no mesmo criador eram Giraud e o seu “duplo" Moebius, surgido em 1969 - um nome que homenageava o cientista August Ferdinand Möbius, a quem se deve o oito deitado que é o símbolo do infinito. É com a primeira assinatura que surge a série western realista Forte Navajo. Com Moebius, irrompe na banda desenhada europeia a vertente fantástica e onírica da sua faceta criativa.

Longa obra
Jean Giraud nasceu em Nogent-sur-Marne (França) a 8 de Maio de 1938. Entra para a Escola de Artes Aplicadas de Paris em 1954, assinando no ano seguinte algumas ilustrações na revista Fiction. Entre 1956 e 1958 publica as suas primeiras bandas desenhadas. Em 1958 conhece Jijé, com quem colabora num episódio da série Jerry Spring.

A sua criação mais popular é Forte Navajo (argumentos de Jean-Michel Charlier), que surge em 1963 na revista Pilote. Narra as aventuras de Mike Blueberry e constitui um dos mais bem conseguidos westerns da BD mundial.

Em 1969 Giraud cria o seu alter-ego Moebius, responsável pelas incursões no universo da science-fiction e do fantástico. O ponto de viragem é a criação, em 1975, da revistaMétal Hurlant, na qual Giraud-Moebius participa ao lado de Jean-Pierre Dionnet, Pilippe Druillet e outros - o impacto no meio da banda desenhada é enorme.

Em 1978, conhece Alejandro Jodorowsky, cujo carisma e universo pessoais influenciam vivamente o artista francês. “Os problemas metafísicos interessavam-me muito”, disse em 2008 ao jornal espanhol El País ao evocar essa colaboração.

Giraud deixa de beber e de fumar, adopta o regime alimentar vegetariano e os seus trabalhos passam a reflectir uma dimensão “espiritual” que não se exime a pincelar com um peculiar sentido de humor. O Incal (1980), Coeur Couronné (1992) e Depois do Incal (2000) são algumas das inúmeras criações comuns.

Giraud-Moebius participa também em diversos projectos cinematográficos, entre os quais o desenho dos fatos de Alien (Ridley Scott) e de O Quinto Elemento (Luc Besson).

A obra de Giraud é vastíssima e muito diversificada, incluindo a ilustração de um episódio da série americana Silver Surfer (argumento de Stan Lee, 1988-89) e a colaboração com o artista japonês Jiro Taniguchi numa revisitação do mito de Ícaro (1997).

"Era o Mestre"
Com a morte de Jean Giraud desaparece um dos últimos ícones da BD mundial e uma referência absoluta de muitos autores de BD. É o caso do português Pedro Morais: “Ele era o Mestre!"

Conheceu-o em 1982, quando veio a Lisboa participar numa iniciativa de banda desenhada na antiga FIL. “Uma fotografia com ele tirada por um amigo continua na parede do meu atelier”, acrescenta. Conserva a imagem de um homem “acessível e simpático”. Mas sobretudo era um “grande artista que não tinha problemas em correr riscos ou usar as novas tecnologias”.

O jornalista e crítico francês Laurent Mélikian não tem dúvidas em afirmar que Giraud-Moebius "teve uma enorme influência sobre muitos outros desenhadores”. Paradoxalmente, disse ao PÚBLICO, “não era um autor popular, não era um Goscinny ou um Hergé”. Mas a sua obra tem “uma importância capital e os seus desenhos têm uma vibração que dá gosto ver”.

Para Didier Pasamonik, editor do site ActuaBD, o criador francês foi um homem que “esteve em todas as grandes batalhas da banda desenhada”. Lembra que Blueberry mudou a imagem do western na BD. Com Métal Hurlant, Giraud-Moebius esteve ligado à primeira experiência de auto-edição e “acompanhou o movimento contracultural”. Foi também o primeiro “a ter uma dimensão artística espiritual” e influenciou “a BD japonesa, sobretudo Katsuhiro Otomo”.

Pasamonik conclui: “Foi o primeiro grande autor de dimensão mundial, quando até ali o que havia era personagens, e o primeiro grande desenhador do seu tempo.”

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O desenhador e argumentista Jean Giraud morreu ontem de cancro em Paris, informou a família. Tinha 73 anos.

O autor de Blueberry, Incal e tantas outras criações de referência da banda desenhada franco-belga estava doente há dois anos e sabia-se que o seu actual estado de saúde era grave. Apesar disso, a notícia foi recebida com muita tristeza no meio da BD. “Toda a profissão está em estado de choque, totalmente arrasada”, declarou à AFP Gilles Ratier, secretário-geral da Associação de Críticos de BD. O desenhador François Boucq afirmou à mesma agência ter “perdido um verdadeiro grande amigo”. Recordou o talento de Giraud como “mestre do desenho realista”. Disse também que ele tinha um “real talento humorístico”, do qual ainda dava boa prova junto das enfermeiras há 15 dias, quando o visitou no hospital.

Yves Frémion, um dos animadores da revista Papiers Nickelés, consagrada à “imagem popular”, foi um dos primeiros a pôr a circular a notícia. As reacções de tristeza e perplexidade não se fizeram esperar. O crítico Gilles Ciment sintetiza bem o espírito dos comentários ao afirmar: “Perdemos de uma só vez um homem requintado e dois autores excepcionais. É terrível.”

Os dois autores que coexistiram no mesmo criador eram Giraud e o seu “duplo" Moebius, surgido em 1969 - um nome que homenageava o cientista August Ferdinand Möbius, a quem se deve o oito deitado que é o símbolo do infinito. É com a primeira assinatura que surge a série western realista Forte Navajo. Com Moebius, irrompe na banda desenhada europeia a vertente fantástica e onírica da sua faceta criativa.

Longa obra
Jean Giraud nasceu em Nogent-sur-Marne (França) a 8 de Maio de 1938. Entra para a Escola de Artes Aplicadas de Paris em 1954, assinando no ano seguinte algumas ilustrações na revista Fiction. Entre 1956 e 1958 publica as suas primeiras bandas desenhadas. Em 1958 conhece Jijé, com quem colabora num episódio da série Jerry Spring.

A sua criação mais popular é Forte Navajo (argumentos de Jean-Michel Charlier), que surge em 1963 na revista Pilote. Narra as aventuras de Mike Blueberry e constitui um dos mais bem conseguidos westerns da BD mundial.

Em 1969 Giraud cria o seu alter-ego Moebius, responsável pelas incursões no universo da science-fiction e do fantástico. O ponto de viragem é a criação, em 1975, da revistaMétal Hurlant, na qual Giraud-Moebius participa ao lado de Jean-Pierre Dionnet, Pilippe Druillet e outros - o impacto no meio da banda desenhada é enorme.

Em 1978, conhece Alejandro Jodorowsky, cujo carisma e universo pessoais influenciam vivamente o artista francês. “Os problemas metafísicos interessavam-me muito”, disse em 2008 ao jornal espanhol El País ao evocar essa colaboração.

Giraud deixa de beber e de fumar, adopta o regime alimentar vegetariano e os seus trabalhos passam a reflectir uma dimensão “espiritual” que não se exime a pincelar com um peculiar sentido de humor. O Incal (1980), Coeur Couronné (1992) e Depois do Incal (2000) são algumas das inúmeras criações comuns.

Giraud-Moebius participa também em diversos projectos cinematográficos, entre os quais o desenho dos fatos de Alien (Ridley Scott) e de O Quinto Elemento (Luc Besson).

A obra de Giraud é vastíssima e muito diversificada, incluindo a ilustração de um episódio da série americana Silver Surfer (argumento de Stan Lee, 1988-89) e a colaboração com o artista japonês Jiro Taniguchi numa revisitação do mito de Ícaro (1997).

"Era o Mestre"
Com a morte de Jean Giraud desaparece um dos últimos ícones da BD mundial e uma referência absoluta de muitos autores de BD. É o caso do português Pedro Morais: “Ele era o Mestre!"

Conheceu-o em 1982, quando veio a Lisboa participar numa iniciativa de banda desenhada na antiga FIL. “Uma fotografia com ele tirada por um amigo continua na parede do meu atelier”, acrescenta. Conserva a imagem de um homem “acessível e simpático”. Mas sobretudo era um “grande artista que não tinha problemas em correr riscos ou usar as novas tecnologias”.

O jornalista e crítico francês Laurent Mélikian não tem dúvidas em afirmar que Giraud-Moebius "teve uma enorme influência sobre muitos outros desenhadores”. Paradoxalmente, disse ao PÚBLICO, “não era um autor popular, não era um Goscinny ou um Hergé”. Mas a sua obra tem “uma importância capital e os seus desenhos têm uma vibração que dá gosto ver”.

Para Didier Pasamonik, editor do site ActuaBD, o criador francês foi um homem que “esteve em todas as grandes batalhas da banda desenhada”. Lembra que Blueberry mudou a imagem do western na BD. Com Métal Hurlant, Giraud-Moebius esteve ligado à primeira experiência de auto-edição e “acompanhou o movimento contracultural”. Foi também o primeiro “a ter uma dimensão artística espiritual” e influenciou “a BD japonesa, sobretudo Katsuhiro Otomo”.

Pasamonik conclui: “Foi o primeiro grande autor de dimensão mundial, quando até ali o que havia era personagens, e o primeiro grande desenhador do seu tempo.”