Nos bastidores de Wall Street

Há uns anitos largos, “O Dia Antes do Fim” seria uma produção de um dos grandes estúdios de Hollywood assinada por um dos cineastas que injectaram uma dimensão simultaneamente humanista e política no cinema americano - Sidney Lumet, Alan Pakula, Sydney Pollack. Poderíamos até tê-lo visto, uns anitos mais à frente, assinado por um David Mamet da sua fase de ouro (pense-se “Jogo Fatal”) ou por um James Foley (“Sucesso a Qualquer Preço”, que não por acaso adaptava uma peça de Mamet).

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Há uns anitos largos, “O Dia Antes do Fim” seria uma produção de um dos grandes estúdios de Hollywood assinada por um dos cineastas que injectaram uma dimensão simultaneamente humanista e política no cinema americano - Sidney Lumet, Alan Pakula, Sydney Pollack. Poderíamos até tê-lo visto, uns anitos mais à frente, assinado por um David Mamet da sua fase de ouro (pense-se “Jogo Fatal”) ou por um James Foley (“Sucesso a Qualquer Preço”, que não por acaso adaptava uma peça de Mamet).


Mas estamos em 2012, e hoje em dia um filme destes, onde tudo repousa no diálogo e nas personagens, onde os actores são a chave, só pode ser feito como este: com financiamentos independentes arrancados a ferro daqui e dali, à revelia dos estúdios que já não sabem como fazer ou sequer vender estes filmes, indo buscar actores de nome que já não têm espaço numa Hollywood cada vez mais mecânica. Tudo porque J. C. Chandor, o seu realizador e argumentista estreante, não tem currículo - para lá de ter trabalhado numa corretora, o que é fulcral para a sensação de veracidade que esta fita ambientada no “ponto zero” do “crash” bolsista nova-iorquino de 2008 mantém sem esforço. Tudo porque Hollywood prefere apostar numa coisa tão falsa e anónima como a desastrosa sequela de “Wall Street” de Oliver Stone, que “O Dia Antes do Fim” reduz à sua verdadeira insignificância de fantasia pateta. Em tempos, é certo, Stone até poderia ter estado à altura de filmar o argumento de Chandor - e, vamos ser honestos, este é um filme de argumentista, mais do que de realizador: visualmente mais funcional do que inspirado, demasiado cheio de campos-contra-campos ilustrativos de aluno aplicado. Mas, de algum modo, essa banalidade é essencial para o filme resultar como resulta, tenso, urgente, ficcionando quase em tempo real sobre as 24 horas que antecipam o “crash”, com um analista financeiro a descobrir a extensão real dos problemas da sua empresa (modelada na Lehman Brothers) e Chandor a “seguir o dinheiro” até à cúpula do poder.

O argumento e os diálogos são de uma solidez a toda a prova - e a referência a Mamet que fizemos há umas linhas atrás não é casual, porque tudo em “O Dia Antes do Fim” remete para o seu dom com as palavras, para a sua capacidade de dar corpo físico e humano a dilemas abstractos (mesmo que Chandor não esteja ainda ao seu nível). E o elenco de absoluto luxo (Kevin Spacey no seu papel mais sóbrio em muito tempo, Stanley Tucci, Paul Bettany, Demi Moore a brincar com a sua imagem de “cabra”, um Jeremy Irons magnificamente oleoso) ferra os dentes com extraordinário prazer neste diálogo, como se há anos que não lhes aparecesse à frente nada deste calibre (e, provavelmente, não aparecia). Isso não faz de “O Dia Antes do Fim” uma obra-prima, atenção - apenas um bom filme como é raro hoje em dia vermos vindo de Hollywood. Não por acaso, não vem de Hollywood.