Parte da praia de Armação de Pêra é privada e o Estado quer comprá-la
O Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) ditou o derrube de casas de praia e de barracas no litoral algarve, mas não tocou no direito de propriedade que uma família detém há 99 anos sobre três hectares da praia de Armação de Pêra. A zona nascente do areal pertence desde 1913 à família Santana Leite e o Estado quer agora comprá-la, por 200 mil euros, apesar de estar integrada no domínio público marítimo e de ser usada por toda a gente.
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O Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) ditou o derrube de casas de praia e de barracas no litoral algarve, mas não tocou no direito de propriedade que uma família detém há 99 anos sobre três hectares da praia de Armação de Pêra. A zona nascente do areal pertence desde 1913 à família Santana Leite e o Estado quer agora comprá-la, por 200 mil euros, apesar de estar integrada no domínio público marítimo e de ser usada por toda a gente.
Não se pode lá construir, nem cobrar a entrada aos banhistas, mas a Administração da Região Hidrográfica (ARH) do Algarve está impedida de receber renda dos apoios balneares, porque o areal tem um dono, embora a propriedade esteja integrada no domínio público marítimo.
A família Santana Leite é proprietária, desde 1913, da maior parte da praia de Armação de Pêra - uma faixa que se estende por 31.696 metros quadrados, abrangendo a área reservada à pesca artesanal.
O Estado não pode exercer o pleno direito público de acesso e utilização da zona balnear, onde se situam os apoios de pesca, lota e três restaurante sem primeiro comprar a praia. O preço de 200 mil euros já foi acordado entre as partes, mas a escritura de aquisição não foi efectuada, porque o Ministério das Finanças ainda não autorizou. A ARH do Algarve devolveu à administração central, há cerca de três semanas, a verba orçamentada para a aquisição, autorizada pelo secretário de Estado do Ambiente no final de Dezembro.
Ao longo dos anos, o Estado tentou separar as águas entre o direito privado e público na área abrangida pelo domínio público marítimo, mas o conflito de interesses permanece.
O caso não será inédito, mas assume especial relevância no Algarve. Algo que o antigo ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território Nunes Correia reconheceu em 2009, ao referir-se a "uma situação muito singular de um terreno comprovadamente privado em plena praia de Armação de Pêra", quando subscreveu a proposta de compra da parcela da praia.
A situação mais comum na região são as tentativas de alguns empreendimentos para condicionar o acesso à praia, quando obtém licenças para construir sobre falésias ou nas proximidades, como se verificou no concelho de Albufeira, na praia dos Tomates e nos Olhos d" Água (Villas d"Água).
Quem recebe a taxa?Com o aproximar da época balnear, os concessionários dos apoios de praia, na zona nascente de Armação de Pêra, perguntam: a quem se paga a taxa de ocupação? Enquanto o assunto não se deslinda, Manuel Lourenço, dono do restaurante Estrela do Mar, opta por ficar à espera: "Falaram em fazer um contrato com um privado, mas achei esquisito." No passado, até à aprovação do POOC Vilamoura-Burgau, publicado em 1999, "pagava a renda à capitania, depois deixaram de cobrar".
A presidente da ARH do Algarve, Valentina Calixto, adiantou que, com a entrada do novo ano económico, "será retomado em breve" o processo de aquisição da parcela privada do areal.
Os actuais donos da praia são os dez herdeiros de João da Costa Sant"Ana Leite - uma família tradicional de Armação de Pêra que fez o negócio quando esta era ainda uma zona piscatória e não se transformara na estância balnear que é hoje uma estância essencialmente turística.
O direito à propriedade foi confirmado por um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Dezembro de 1913. O ex- ministro Nunes Correia defendeu que só a compra do terreno "permite uma plena execução do que está previsto no POOC". A Câmara Municipal de Silves, nos últimos anos, investiu mais de seis milhões de euros na requalificação da frente de mar, mas só na parte poente. A parte nascente ficou por ordenar.
O preço a pagar foi considerado pelos avaliadores do Estado "aceitável, situando-se mesmo abaixo do valor real do imóvel". Até porque, justificam, na parte do terreno a adquirir está prevista a "implantação da totalidade dos apoios e equipamentos balneares".
A ARH do Algarve pagará 130.234,17 euros, com a receita proveniente do Fundo de Protecção dos Recursos Hídricos. A restante parte, 69.785,83 euros, foi assumida pela câmara, que ficará com a posse da parte norte do caminho que limita a praia, onde fica o campo de futebol de Os Armacenses.
João Pedro Santos, dono do Pedros"s Bar, tem a situação ainda mais original - adquiriu a direito à exploração do estabelecimento há 22 anos, por concurso público, lançado pela junta de freguesia. Paga uma renda à autarquia de 500 euros mensais. Para ocupar a via pública com esplanada paga ao município mais 1300 euros ano. Ficou a saber que a praia pertencia a um particular, ao pretender alargar a esplanada, mais 40 metros em direcção ao mar. "A ARH disse que não via inconveniente, deste que obtivesse o acordo da família Leite." Está a ultimar um contrato de arrendamento com o dono da praia: "Vão aplicar a mesma taxa que é cobrada pela ARH - fico a pagar 400 euros ano", adiantou.
A presidente da ARH confirma que este não é o único caso que o POOC não conseguiu resolver. "Há outros casos", acrescenta. À saída da praia da Armação de Pêra, já no concelho de Lagoa, na praia Vale do Olival, volta a repetir-se o conflito entre o direito público e o privado. O restaurante Calixtos tem nas proximidades placas a indicar "perigo" de erosão de falésias. O terreno em redor do apoio de praia, que servia de parque de estacionamento, apesar de se encontrar na faixa do domínio público marítimo, também pertence a um particular.