Revolução ou morte

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Miguel Borges, o Danton de Jorge Silva Melo JORGE GONÇALVES

Houve um tempo em que para Jorge Silva Melo, vindo do catolicismo, a "rondar o anarquismo", ler "A Morte de Danton" era ver "nos abusos da juventude uma prova da decadência do Ocidente". No colégio de frades onde o encenador andou, não se falou da Revolução Francesa. E esta peça de Büchner, uma peça de tese e de reflexão, confrontando a defesa do terror e a defesa da liberdade, pareceu-lhe ir ao encontro do que lera em S. Paulo e em Inácio de Loiola: a exigência "de um caminho doloroso até à virtude".

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Houve um tempo em que para Jorge Silva Melo, vindo do catolicismo, a "rondar o anarquismo", ler "A Morte de Danton" era ver "nos abusos da juventude uma prova da decadência do Ocidente". No colégio de frades onde o encenador andou, não se falou da Revolução Francesa. E esta peça de Büchner, uma peça de tese e de reflexão, confrontando a defesa do terror e a defesa da liberdade, pareceu-lhe ir ao encontro do que lera em S. Paulo e em Inácio de Loiola: a exigência "de um caminho doloroso até à virtude".

Jorge Silva Melo regia-se, então, por essa "disciplina ascética da virtude", confessa. "Era um puritano, anti-drogas" e em 1966 ou 1967 viu "ali, no elogio descarado de Robespierre, a condenação da juventude do Woodstock que queria flores, poder, drogas e o prazer": "Nunca fui conscientemente movimentado pela procura do prazer e nunca fiz a defesa do prazer como sendo o destino da humanidade como Danton teria feito".

Com pouco mais de 20 anos, Jorge Silva Melo estaria na fundação do Teatro da Cornucópia, com Luís Miguel Cintra, e esta peça escrita por Georg Büchner "em sístole e diástole" ao longo de cinco semanas do ano de 1835, escondido na casa dos pais, depois de ter estado exilado por ser perseguido pela polícia, era, como havia sido antes, lida ao sabor do tempo. "A leitura desta peça é permanentemente mutável e variável", diz o encenador, que se estreou no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, e agora chega ao Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. "Tinha sido assim em 1939, quando foi encenada perante os nazis, em êxtase com a hipótese de a violência poder ser o caminho para a virtude, e foi assim em 1946, na França do pós-guerra, país que lidava tão mal com os acontecimentos da Revolução Francesa e via agora, nesta peça de um alemão sobre o país deles, o embate directo com o mesmo dilema: o que se espera do homem?", prossegue.

Robespierre em Cunhal e Danton em Sá Carneiro

"A morte de Danton pressupõe a morte do diálogo revolucionário, mas não a morte da utopia", diz Silva Melo. Era este o assunto do seu primeiro filme, "Passagem ou a meio caminho" (1979), que nunca teve estreia comercial. A vida de Büchner como metáfora para uma "meditação dolorosíssima" sobre o falhanço dos seus anseios e a ausência dos seus interlocutores. Silva Melo não terá dito então, como não dirá hoje, mesmo que aqui passe um desencanto com a revolução e com a sua geração, que "nada disto existiu, tudo isto é pesadelo". Mas verá no confronto entre Robespierre e Danton a defesa de um principio utópico que teria de se distanciar da sua concreta aplicação para resistir no tempo. E, no diálogo entre estes dois anti-heróis, espelhos de si mesmos, o reflexo de outros diálogos interrompidos pela morte, que é como quem diz pela História: Bertolt Brecht e Walter Benjamin, Rosa Luxemburgo e Lenine, Federico Fellini e Carl T. Dreyer.

Num plano imaginado e imaginário, Jorge Silva Melo também não descarta a hipótese de ver Robespierre em Cunhal e Danton em Sá Carneiro. "Mas se projectasse Cunhal em Robespierre e o pusesse nas noites solitárias, que deve ter tido, a ir à sede do partido dizer que a vida era sonho e nada disto tinha existido, as pessoas riam-se". É desta "meditação sobre os excessos da revolução, o terror e as atitudes suicidárias" que fala esta peça, nunca pensada para ser representada, antes "uma espécie de recado [de Büchner] para os seus amigos presos".

A peça opõe, uns anos depois da tomada da Bastilha e do descontrolo do projecto da Comuna, um Robespierre "maltratado ainda hoje pela História" ao Danton herói da revolução. A sua morte, para quem a defende, é a condição necessária para a prossecução dos objectivos traçados em nome do povo. Para quem a recusa, é a falência definitiva desses mesmos objectivos.

Büchner terá pensado, com alguma razão, que o seu manifesto esquerdista "O Mensageiro de Hesse" (1834) não encontrara o meio certo de divulgação. "Esqueceu-se que os camponeses eram analfabetos". Será essa a sua tragédia. Mas "A Morte de Danton" marca também, sobretudo, a falência do sonho dos intelectuais revolucionários. Zizek dirá, cita Silva Melo de cor, que a morte da utopia tem de ser prevista por quem a defende. "O desejo de virtude e de terror de Robespierre inclui em si mesmo a morte da revolução." E, assim, repete, a morte de Danton "presupõe a morte do diálogo revolucionário, mas não a morte da utopia."

O princípio do prazer

"A Morte de Danton" é também uma peça de "contradições extraordinárias". "As personagens não tem aqui uma pulsão de vida, mas uma pulsão de morte. E não há revolução sem essa pulsão de vida, sem a promessa de futuro. A revolução acontecerá sempre amanhã, e será melhor se nós vivermos", diz o encenador.

Por isso, "há em Robespierre uma ascese impossível, vontade ontológica de superar a condição humana", ao passo que habita em Danton "uma aceitação da natureza como contraditória, volúvel e movida pelo desejo". Este confronto interessa muitíssimo a Jorge Silva Melo, que nele sustenta a sua encenação, feita de massas e de corpos negros que se movem na semi-obscuridade, falam em sussurros e se abraçam longamente. Daí que, no início do terceiro acto, o discurso de Tom Payne, "uma vulgata espinosista", surja como um corpo estranho, procurando colocar ao mesmo nível a fé, a política e o homem. É o jogo de teatro no seu estado mais puro: "O grande desejo de toda a gente que faz teatro é que o que está a acontecer entre o palco e a plateia saia do teatro, e o último desejo é que as paredes do teatro caiam como as muralhas de Jericó". Um desejo de revolução.

Büchner, jovem de 23 anos, lia Shakespeare na altura, e por isso roubará cenas a "A Tragédia de Coriolano" (o povo que muda de opinião e que tanto está do lado de Danton como, no momento seguinte, apoia Robespierre). Como não ver em Robespierre e Danton o que há de dual em Hamlet? "Poucos na Alemanha o poderiam fazer", diz o encenador. Há ecos de frases de "Medida por Medida" e "As you like it", lado a lado com discursos retirados das assembleias da Convenção Nacional. E é a Danton que Brecht vai buscar, quase um século depois, o modelo para o seu Baal, que tanto reescreveu. É esta contaminação de discursos que interessa a Jorge Silva Melo e foi isso que o levou a dar Danton a Miguel Borges, que foi Coriolano (1998) e foi Baal (2003): "[Miguel Borges é um] mito de toda a intuição, da liberdade, da eterna juventude, da agilidade, da destreza", sublinha o encenador, que coloca o actor ao nível de Eunice e João Perry.

Será isso que ainda quer agarrar, através dos corpos dos 44 actores que leva para o palco. Tantos anos depois, "A Morte de Danton" ainda coloca um "tremendo dilema": "O que queremos dos homens? O que queremos? O caminho da virtude exigente ou a aceitação de que somos movimentados para o prazer e de que essa procura é o nosso destino final?" Jorge Silva Melo continua sem saber: "Não tenho, hoje, no meu horizonte, a procura da virtude. É ainda a procura do prazer que me motiva. Se calhar, por todas estas porcarias de que fui feito, ainda quero o prazer para os outros".

Mas o prazer de Jorge Silva Melo é o de sujar as mãos. "O teatro que me interessa é aquele onde os problemas são evocados e não representados. Comecei, há dois ou três anos, a embirrar com essa ideia. Não é ‘mise-en-scéne', é ‘mise-en-pied', é erguer, tornar carne a palavra, chamar os fantasmas e interessarmo-nos pelos fantasmas da narrativa e pelos estilhaços da historia."