O mundo perdido de Delmore Schwartz
Nos Sonhos Começam as Responsabilidades evoca indirectamente o momento em que a cultura imigrante judaica retratada (entre outros) por Henry Roth já dera lugar a uma segunda geração emancipada, que decidiu refazer-se à escala americana e transcender os hábitos e costumes herdados do Velho Mundo dos pais
O narrador instala-se numa sala de cinema, sentindo “o longo braço da luz a atravessar a escuridão” na direcçao dos seus olhos. A película é de fraca qualidade e as imagens sucedem-se aos repelões, mas consegue discernir uma tarde de Domingo de 1909, reconhecendo a pessoa que será seu pai a atravessar as ruas de Brooklyn para ir conhecer a pessoa que será a sua mãe. O resto do filme acompanha esse primeiro encontro: uma viagem de eléctrico até ao passadiço de Coney Island, e um jantar a dois, onde o pai, num gesto impulsivo provocado em parte pela valsa que tocava no restaurante, pede a mãe em casamento. Ao ver o pedido, o narrador ergue-se do seu lugar, perante a consternação do resto do público, e grita para o ecrã: “Não façam isso! Não é tarde para ambos mudarem de opinião. Nada de bom vai sair daí, apenas remorsos, ódio, escândalo e dois filhos com personalidades monstruosas”. O arrumador percorre prontamente a coxia, e arrasta o desordeiro até à rua, onde a luz dissolve tudo o que acabámos de presenciar, permitindo ao narrador acordar no seu quarto, na manhã do seu 21.º aniversário.
"Nos Sonhos Começam as Responsabilidades” (o título vem do verso de uma peça apócrifa, inventada por Yeats) é um dos mais célebres contos americanos do século XX, uma daquelas ficções curtas - como “The Lottery”, de Shirley Jackson, ou “The Swimmer”, de John Cheever - que marcam presença frequente em programas escolares e antologias, e que parecem ter a capacidade de tocar nervos colectivos em décadas sucessivas. Relendo hoje o conto de Delmore Schwartz, não se acreditaria estarmos perante um candidato a este género de persistência curricular. A prosa é árida - competente, mas não particularmente memorável; e a efabulação central, ao nível do “twist” de um episódio de “Dallas” (foi tudo... um sonho!), soa algo absurda. Acima de tudo o conto parece datado, um artefacto tão preso ao seu tempo como os protagonistas que o narrador vê no ecrã, “vestidos com roupas ridiculamente fora de moda”. Ao contrário dos contos de Jackson e Cheever, que são essencialmente fábulas, e portanto intemporais, lê-se como um grito de alma que não envelheceu muito bem.
A sua juventude, no entanto, não fica a dever nada a ninguém. Cada nova reedição da esparsa obra de Schwartz (que foi também poeta e ensaísta) vem acompanhada de um intimidante aparato de contextualização, especificamente organizado para lembrar a tremenda influência que “Nos Sonhos...” exerceu. A editora Guerra e Paz publicou recentemente uma recolha traduzida de alguns dos seus contos, munida de nada menos do que três prefácios: James Atlas, Irving Howe - e Lou Reed (cujo nome na capa, compreensivelmente, tem direito a uma tamanho de fonte maior). A admiração não é apenas retrospectiva. Na altura em que saiu, recebeu elogios de T. S. Eliot e Nabokov, normalmente parcimoniosos na distribuição de encómios, e permitiu a Schwartz o acesso aos cintilantes meios intelectuais nova-iorquinos de Lionel Trilling, Philip Rahv, Mary McCarthy e Saul Bellow.
Num certo sentido, é esse mundo desvanecido que “Nos Sonhos...” evoca indirectamente. O momento em que a cultura imigrante judaica retratada, entre outros, por Henry Roth já dera lugar a uma segunda geração emancipada, que decidiu refazer-se à escala americana, dedicando-se a transcender hábitos e costumes herdados através de uma vocação secular auto-imposta (outra espécie de paroquialismo), mas que ainda era incapaz de se definir a não ser através de uma relação de curiosa hostilidade nostálgica com o passado. O Velho Mundo dos pais, que exaltava fantasias de assimilação e unidade ao mesmo tempo que tentava preservar as tradições transportadas dos guetos europeus, foi substituído por outro, com as suas próprias contradições. A “vocação intelectual” adoptada pela geração que recebeu Schwartz como um debutante - foi nesta altura e neste meio que se redefiniu o “intelectual público” - nascera de uma estranha aliança entre um cosmopolitismo cultural especialmente receptivo à vanguarda modernista de Joyce, Eliot e Kafka e uma noção de participação cívica assente em ideias políticas radicais (a linha editorial da mítica “Partisan Review”, onde muitas destas personalidades convergiram, definia-a como pertencendo à “esquerda não-estalinista”, o que significava que podiam ser alternadamente insultados como anti-comunistas e anti-americanos; faziam, como é evidente, poucos amigos).
O desejo de unir as duas vanguardas - a da consciência estética e a da consciência política - gerou os esperados desaires e equívocos. Num célebre ensaio, intitulado precisamente “Os Intelectuais Nova-Iorquinos”, o crítico Irving Howe (um dos “padrinhos” de Schwartz) identificava como causa da frenética intensidade e permanente instabilidade deste círculo o simples facto de terem chegado demasiado tarde: tarde de mais às grandes batalhas travadas em defesa da arte moderna, tarde de mais à formação e aplicação de ideiais revolucionários, tarde de mais até à própria experiência de emigrante, que não sentiam como sua, mas que continuavam a sentir-se compelidos a enfrentar, psíquica e imaginativamente.
O meio acabaria por legar contribuição valiosa às letras americanas, legitimando um estilo de polémica intelectual ainda hoje em vigor, e um estilo de ficção tipicamente associado aos grandes escritores judeus: a ficção da alienação urbana; a ficção das personagens em crise, imersas em história intelectual, debatendo trivialidades ou assuntos de vida e morte com a mesma loquacidade intensa e a mesma densidade alusiva; a ficção que demonstra um respeito quase supersticioso pela religião antiga ao mesmo tempo que exulta com o materialismo, com a vida “da rua”, com o glamour dos pequenos “gangsters” e políticos de bairro; acima de tudo, a ficção que tenta transformar criativamente a sua penosa condição de segunda vaga - a cruz da segunda geração - numa metáfora com saliência universal.
"Nos Sonhos...”, apesar do talento em evidência, não consegue este truque de alquimia. Invertendo o esquema de Howe, Schwartz terá chegado demasiado cedo ao filão; o conto, tal como “Uma Espécie de Sono”, de Henry Roth, é a crisálida de uma literatura ainda em fase embrionária, e um dos factores determinantes para a consagração a que foi submetido terá sido a percepção da promessa que encerrava. Delmore tinha 21 anos anos quando escreveu o conto, publicado, com honras de capa, no primeiro número da “Partisan Review”.
Nunca viria a cumprir a promessa, nem a recuperar a mesma energia condensada que esses primeiros esforços exibem. O resto da sua vida foi uma tumultuosa caminhada da precocidade à decadência, um circuito de fiascos intercalados com planos megalómanos (vastas sequências de poemas épicos, uma versão americana de “Os Irmãos Karamazov” em que os protagonistas seriam os Kennedy, etc.) dos quais sobram algumas dúzias de páginas dispersas. Alcoolismo, episódios depressivos, zangas públicas e privadas, um batalhão de ex-amigos e admiradores na sua esteira. Viria a morrer sozinho, num decrépito hotel de Manhattan, com 53 anos; o corpo só foi reclamado ao fim de dois dias. Como tantos outros artistas, converteu a virtuosidade perdida numa espécie de performance constante. Incapaz de consolidar uma reputação, optou por consolidar uma lenda; não podendo produzir Arte, transformou-se intencionalmente num arquétipo: o do Artista Condenado.
Nas últimas linhas do conto que continua a perpetuar o seu nome, o arrumador perplexo, ao expulsá-lo da sala de cinema imaginária, admoesta o narrador: “Não sabes que não podes fazer tudo o que queres? Porque é que um rapaz como tu, com toda a vida pela frente, fica assim tão histérico? Porque é que não pensas no que estás a fazer? (...) Vais arrepender-te se não fizeres aquilo que deves fazer, não podes continuar assim, não está certo, em breve vais descobrir que tudo o que fizeres importa muito”. Mesmo aos 21 anos, com “toda a vida pela frente”, Delmore Schwartz já ensaiava os seus epitáfios.
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O narrador instala-se numa sala de cinema, sentindo “o longo braço da luz a atravessar a escuridão” na direcçao dos seus olhos. A película é de fraca qualidade e as imagens sucedem-se aos repelões, mas consegue discernir uma tarde de Domingo de 1909, reconhecendo a pessoa que será seu pai a atravessar as ruas de Brooklyn para ir conhecer a pessoa que será a sua mãe. O resto do filme acompanha esse primeiro encontro: uma viagem de eléctrico até ao passadiço de Coney Island, e um jantar a dois, onde o pai, num gesto impulsivo provocado em parte pela valsa que tocava no restaurante, pede a mãe em casamento. Ao ver o pedido, o narrador ergue-se do seu lugar, perante a consternação do resto do público, e grita para o ecrã: “Não façam isso! Não é tarde para ambos mudarem de opinião. Nada de bom vai sair daí, apenas remorsos, ódio, escândalo e dois filhos com personalidades monstruosas”. O arrumador percorre prontamente a coxia, e arrasta o desordeiro até à rua, onde a luz dissolve tudo o que acabámos de presenciar, permitindo ao narrador acordar no seu quarto, na manhã do seu 21.º aniversário.
"Nos Sonhos Começam as Responsabilidades” (o título vem do verso de uma peça apócrifa, inventada por Yeats) é um dos mais célebres contos americanos do século XX, uma daquelas ficções curtas - como “The Lottery”, de Shirley Jackson, ou “The Swimmer”, de John Cheever - que marcam presença frequente em programas escolares e antologias, e que parecem ter a capacidade de tocar nervos colectivos em décadas sucessivas. Relendo hoje o conto de Delmore Schwartz, não se acreditaria estarmos perante um candidato a este género de persistência curricular. A prosa é árida - competente, mas não particularmente memorável; e a efabulação central, ao nível do “twist” de um episódio de “Dallas” (foi tudo... um sonho!), soa algo absurda. Acima de tudo o conto parece datado, um artefacto tão preso ao seu tempo como os protagonistas que o narrador vê no ecrã, “vestidos com roupas ridiculamente fora de moda”. Ao contrário dos contos de Jackson e Cheever, que são essencialmente fábulas, e portanto intemporais, lê-se como um grito de alma que não envelheceu muito bem.
A sua juventude, no entanto, não fica a dever nada a ninguém. Cada nova reedição da esparsa obra de Schwartz (que foi também poeta e ensaísta) vem acompanhada de um intimidante aparato de contextualização, especificamente organizado para lembrar a tremenda influência que “Nos Sonhos...” exerceu. A editora Guerra e Paz publicou recentemente uma recolha traduzida de alguns dos seus contos, munida de nada menos do que três prefácios: James Atlas, Irving Howe - e Lou Reed (cujo nome na capa, compreensivelmente, tem direito a uma tamanho de fonte maior). A admiração não é apenas retrospectiva. Na altura em que saiu, recebeu elogios de T. S. Eliot e Nabokov, normalmente parcimoniosos na distribuição de encómios, e permitiu a Schwartz o acesso aos cintilantes meios intelectuais nova-iorquinos de Lionel Trilling, Philip Rahv, Mary McCarthy e Saul Bellow.
Num certo sentido, é esse mundo desvanecido que “Nos Sonhos...” evoca indirectamente. O momento em que a cultura imigrante judaica retratada, entre outros, por Henry Roth já dera lugar a uma segunda geração emancipada, que decidiu refazer-se à escala americana, dedicando-se a transcender hábitos e costumes herdados através de uma vocação secular auto-imposta (outra espécie de paroquialismo), mas que ainda era incapaz de se definir a não ser através de uma relação de curiosa hostilidade nostálgica com o passado. O Velho Mundo dos pais, que exaltava fantasias de assimilação e unidade ao mesmo tempo que tentava preservar as tradições transportadas dos guetos europeus, foi substituído por outro, com as suas próprias contradições. A “vocação intelectual” adoptada pela geração que recebeu Schwartz como um debutante - foi nesta altura e neste meio que se redefiniu o “intelectual público” - nascera de uma estranha aliança entre um cosmopolitismo cultural especialmente receptivo à vanguarda modernista de Joyce, Eliot e Kafka e uma noção de participação cívica assente em ideias políticas radicais (a linha editorial da mítica “Partisan Review”, onde muitas destas personalidades convergiram, definia-a como pertencendo à “esquerda não-estalinista”, o que significava que podiam ser alternadamente insultados como anti-comunistas e anti-americanos; faziam, como é evidente, poucos amigos).
O desejo de unir as duas vanguardas - a da consciência estética e a da consciência política - gerou os esperados desaires e equívocos. Num célebre ensaio, intitulado precisamente “Os Intelectuais Nova-Iorquinos”, o crítico Irving Howe (um dos “padrinhos” de Schwartz) identificava como causa da frenética intensidade e permanente instabilidade deste círculo o simples facto de terem chegado demasiado tarde: tarde de mais às grandes batalhas travadas em defesa da arte moderna, tarde de mais à formação e aplicação de ideiais revolucionários, tarde de mais até à própria experiência de emigrante, que não sentiam como sua, mas que continuavam a sentir-se compelidos a enfrentar, psíquica e imaginativamente.
O meio acabaria por legar contribuição valiosa às letras americanas, legitimando um estilo de polémica intelectual ainda hoje em vigor, e um estilo de ficção tipicamente associado aos grandes escritores judeus: a ficção da alienação urbana; a ficção das personagens em crise, imersas em história intelectual, debatendo trivialidades ou assuntos de vida e morte com a mesma loquacidade intensa e a mesma densidade alusiva; a ficção que demonstra um respeito quase supersticioso pela religião antiga ao mesmo tempo que exulta com o materialismo, com a vida “da rua”, com o glamour dos pequenos “gangsters” e políticos de bairro; acima de tudo, a ficção que tenta transformar criativamente a sua penosa condição de segunda vaga - a cruz da segunda geração - numa metáfora com saliência universal.
"Nos Sonhos...”, apesar do talento em evidência, não consegue este truque de alquimia. Invertendo o esquema de Howe, Schwartz terá chegado demasiado cedo ao filão; o conto, tal como “Uma Espécie de Sono”, de Henry Roth, é a crisálida de uma literatura ainda em fase embrionária, e um dos factores determinantes para a consagração a que foi submetido terá sido a percepção da promessa que encerrava. Delmore tinha 21 anos anos quando escreveu o conto, publicado, com honras de capa, no primeiro número da “Partisan Review”.
Nunca viria a cumprir a promessa, nem a recuperar a mesma energia condensada que esses primeiros esforços exibem. O resto da sua vida foi uma tumultuosa caminhada da precocidade à decadência, um circuito de fiascos intercalados com planos megalómanos (vastas sequências de poemas épicos, uma versão americana de “Os Irmãos Karamazov” em que os protagonistas seriam os Kennedy, etc.) dos quais sobram algumas dúzias de páginas dispersas. Alcoolismo, episódios depressivos, zangas públicas e privadas, um batalhão de ex-amigos e admiradores na sua esteira. Viria a morrer sozinho, num decrépito hotel de Manhattan, com 53 anos; o corpo só foi reclamado ao fim de dois dias. Como tantos outros artistas, converteu a virtuosidade perdida numa espécie de performance constante. Incapaz de consolidar uma reputação, optou por consolidar uma lenda; não podendo produzir Arte, transformou-se intencionalmente num arquétipo: o do Artista Condenado.
Nas últimas linhas do conto que continua a perpetuar o seu nome, o arrumador perplexo, ao expulsá-lo da sala de cinema imaginária, admoesta o narrador: “Não sabes que não podes fazer tudo o que queres? Porque é que um rapaz como tu, com toda a vida pela frente, fica assim tão histérico? Porque é que não pensas no que estás a fazer? (...) Vais arrepender-te se não fizeres aquilo que deves fazer, não podes continuar assim, não está certo, em breve vais descobrir que tudo o que fizeres importa muito”. Mesmo aos 21 anos, com “toda a vida pela frente”, Delmore Schwartz já ensaiava os seus epitáfios.