Catadores de papel desviam resíduos do circuito municipal
Quinta-feira, 21h, Avenida de Berna, em Lisboa. A carrinha de mercadorias pára em segunda fila, os três homens saem e vão directos aos contentores municipais de tampa azul, deixados à porta dos prédios e estabelecimentos comerciais para a recolha camarária. Escolhem o papel e cartão em melhor estado e arrumam o material no veículo, já repleto. O carregamento dura dez minutos, a carrinha arranca e segue para completar a ronda ao quarteirão. Para trás deixa os caixotes de lixo meio vazios e nem sinal de fardos de cartão na via pública.
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Quinta-feira, 21h, Avenida de Berna, em Lisboa. A carrinha de mercadorias pára em segunda fila, os três homens saem e vão directos aos contentores municipais de tampa azul, deixados à porta dos prédios e estabelecimentos comerciais para a recolha camarária. Escolhem o papel e cartão em melhor estado e arrumam o material no veículo, já repleto. O carregamento dura dez minutos, a carrinha arranca e segue para completar a ronda ao quarteirão. Para trás deixa os caixotes de lixo meio vazios e nem sinal de fardos de cartão na via pública.
A cena repete-se todas as semanas, em várias zonas da capital e do país, nos dias em que há recolha selectiva de papel e cartão. Só em Lisboa, a Polícia Municipal autuou, desde Novembro, oito catadores por exercerem uma actividade proibida pelo regulamento municipal de gestão de resíduos sólidos urbanos (RSU). Por serem "recentes", os processos de contra-ordenação ainda não estão concluídos, diz a câmara. As multas podem ser de uma a dez vezes o salário mínimo nacional.
Foi no final do ano passado que, segundo a autarquia, se começou a verificar o desvio de papel. Os números falam por si: em 2011, os serviços municipais recolheram menos 12% de papel e cartão do que no ano anterior. Em Janeiro deste ano o decréscimo foi ainda mais acentuado: menos 19% em relação ao período homólogo do ano passado.
A Câmara de Lisboa atribui parte da culpa aos indivíduos que andam em busca do papel na cidade para depois o venderem a operadores de gestão de resíduos não urbanos. A actividade era aceite no passado, quando os sistemas municipais de gestão dos RSU eram ainda deficitários, mas agora é proibida. "A valorização económica deste material no mercado de recicláveis e o contexto actual de crise propiciam estas práticas", admitem responsáveis do Departamento de Higiene Urbana da autarquia. Em 2010, o preço médio da tonelada de cartão foi de 100 euros e actualmente chega aos 120 euros.
O problema não é exclusivo da capital. No Grande Porto, os oito municípios abrangidos pela Lipor (Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Valongo e Vila do Conde) também se queixam dos desvios. Em 2011 foram recolhidos menos cerca de 9% de resíduos de papel e cartão do que em 2010.
Embora ressalve que "não existe uma causa que por si só possa justificar este decréscimo" - a retracção económica e a quebra no consumo são causas óbvias -, a Lipor acredita que a actividade dos catadores (também conhecidos por "farrapeiros") está a acentuar a diminuição. A Câmara do Porto não respondeu às questões do PÚBLICO sobre o assunto. Não se sabe se no Porto já foram multados catadores, mas em Lisboa foi reforçada a atenção policial para estes casos.
As zonas da capital que mais atraem os catadores são as Avenidas Novas, Areeiro, Alvalade, Baixa, Olivais, Alcântara, e também Benfica, Telheiras e o Martim Moniz. Aí, onde abunda o pequeno comércio e escritórios, a Polícia Municipal já autuou alguns reincidentes. "Há famílias inteiras dedicadas à actividade. Algumas vão buscar o cartão directamente aos lojistas e por isso acham que é legal", diz fonte policial. Para os comerciantes, o "crime" dos catadores compensa, pois assim não têm de pagar taxas adicionais à câmara pela produção de resíduos em grandes quantidades.
Nos autos de contra-ordenação não é identificado o operador que iria receber os resíduos. No caso dos catadores abordados pelo PÚBLICO na Av. de Berna, o papel e cartão desviados dos caixotes tinham como destino uma operadora licenciada para a gestão de resíduos não urbanos, em Frielas, Loures.
Confrontada por telefone com o facto de o armazém receber material furtado, a advogada da operadora diz que "é impossível saber se os resíduos vêm todos do produtor [que tem de estar registado no Sistema Integrado da Agência Portuguesa do Ambiente], ou se parte deles são recolhidos na rua", até porque a pesagem só é feita no armazém e não na origem. "Vigora o princípio da boa-fé", sublinha, afirmando que a operadora não tem controlo sobre o percurso dos transportadores de resíduos.
Falta fiscalizaçãoAlém da quebra registada na recolha do papel e cartão e dos testemunhos que dão conta da rotina semanal - em alguns casos, diária - dos catadores, não há muitos dados que permitam apurar a dimensão da actividade. A Sociedade Ponto Verde, que gere a reciclagem da maior parte das embalagens de cartão, diz que os sistemas municipais se queixam, mas acredita que esta é uma "actividade residual sem repercussões".
A verdade é que os desvios não têm grande reflexo nas taxas de reciclagem, uma vez que os resíduos acabam por ser encaminhados para valorização, ainda que por outros circuitos que não os legais. As câmaras é que sentem a diferença nos cofres. No ano passado, a Câmara de Lisboa recebeu menos 15 mil euros após entrega do papel e cartão na Valorsul. "O município faz um investimento nos contentores e no sistema de recolha, que é compensado com as receitas dos materiais recicláveis entregues às operadoras. Mas depois chega aos contentores e não tem os materiais mais valiosos. É um roubo", afirma Rui Berkemeier, da associação ambientalista Quercus.
As autoridades com competência para fiscalizar estas ocorrências não possuem dados conclusivos. "Acreditamos que possa existir um eventual aumento deste tipo de furtos, mas não possuímos dados desagregados que nos indiquem esse fundamento", disse o comissário Paulo Flor, porta-voz da Direcção Nacional da PSP. Já a Inspecção-Geral do Ambiente e do Território descarta responsabilidades na fiscalização destes casos, atribuindo-as ao Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da GNR. O tenente-coronel Costa Lima adiantou que a GNR recebeu apenas uma denúncia relativa ao furto de papel dos ecopontos, em Vila Franca de Xira, que está a ser investigada.
O vereador do Ambiente da Câmara de Vila Franca, Francisco do Vale Antunes, confirma uma diminuição de quase 8% na recolha do papel e cartão em 2011 (o que resultou em menos 44 mil euros para o município) e admite ter conhecimento da ocorrência de furtos. No entanto, diz que esta actividade paralela é "esporádica e pontual". "O facto de não haver uma fiscalização mais apertada e de os contentores estarem na via pública, sem qualquer protecção, são elementos que acabam por facilitar o registo destes desvios", admite a Lipor, que já criou um grupo de trabalho para encontrar soluções para o problema.