Reportagem: Beja não tem memória de um crime tão hediondo como este

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Vestido de negro da cabeça aos pés, entra no snack-bar de paredes garridas do casal ucraniano e pede um bitoque para almoço. Meia dose, que não está com muito apetite. Por esta altura já os corpos de Benvinda, a mulher, Cátia, a filha de 28 anos, e Maria, a neta de cinco, jazem há vários dias sem vida na vivenda que lhes tem servido de casa nos últimos anos. Como não o conhecem por aqui, ninguém lhe estranha a cor da farpela. Francisco Esperança insiste em comer ao balcão em vez de se sentar à mesa e vai emborcando cervejas umas atrás das outras. Um cliente habitual da tasca, Carlos Paquete, conta seis. Um dia depois ainda lhe martelam na cabeça as palavras do outro: "Sabe quanto tempo tenho de vida? Três meses. Tenho um cancro nos intestinos que alastrou aos pulmões. É por isso que estou a beber. Prefiro viver dois meses à minha maneira que os três que os médicos me deram de vida". Não fala nunca na família.

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Vestido de negro da cabeça aos pés, entra no snack-bar de paredes garridas do casal ucraniano e pede um bitoque para almoço. Meia dose, que não está com muito apetite. Por esta altura já os corpos de Benvinda, a mulher, Cátia, a filha de 28 anos, e Maria, a neta de cinco, jazem há vários dias sem vida na vivenda que lhes tem servido de casa nos últimos anos. Como não o conhecem por aqui, ninguém lhe estranha a cor da farpela. Francisco Esperança insiste em comer ao balcão em vez de se sentar à mesa e vai emborcando cervejas umas atrás das outras. Um cliente habitual da tasca, Carlos Paquete, conta seis. Um dia depois ainda lhe martelam na cabeça as palavras do outro: "Sabe quanto tempo tenho de vida? Três meses. Tenho um cancro nos intestinos que alastrou aos pulmões. É por isso que estou a beber. Prefiro viver dois meses à minha maneira que os três que os médicos me deram de vida". Não fala nunca na família.

"Teve um comportamento normal, simpático", recorda Carlos. Só quando vê as imagens televisivas de Francisco a sair de casa em tronco nu, algemado pela polícia, Carlos Paquete descobre que o desconhecido que meteu conversa com ele escassas horas antes é o principal suspeito do crime mais macabro de que Beja tem memória. Os corpos das duas mulheres e da menina de cinco anos foram desfeitos com uma catana. Nem os animais domésticos, o cão e um gatito, escaparam à fúria do homicida. Só quando vê as imagens Carlos percebe que as calças, as camisas e o blazer negro do antigo funcionário bancário eram, afinal, de luto.

Família problemática

À porta do tribunal de Beja, algumas dezenas de pessoas esperam a chegada de Francisco, que passou a noite nos calabouços depois da descoberta dos três cadáveres. A cidade está em estado de choque - não se fala noutra coisa. Toda a gente viu o homem de 59 anos a cirandar por ali nos últimos dias, a fazer as coisas que sempre tinha feito. A beber demais como nunca tinha conseguido parar de fazer, por muito que tivesse tentado. Era o seu pecado - até agora só lhe conheciam esse e mais o do desfalque, e esse tinha passado tanto tempo que até quase já se havia tornado motivo de galhofa.

Há 20 anos, quando trabalhava no Crédito Predial Português, fugira com 35 mil contos (175 mil euros). Acabou por se entregar depois de andar anos escondido, e até o curso de Direito conseguiu tirar na cadeia. Quando o libertam, a filha já se tornou adolescente. Bonita e namoradeira, acaba por ser mandada estudar para Lisboa. Anda cá e lá. Também viaja com o pai até ao Algarve, onde a família tem uma loja. Engravida. A família resguarda-se, não dá confiança a ninguém, mas os testes de paternidade acabam por ser motivo de falatório: "Deram todos negativo".

Homem de poucas falas, excepto quando bebia, Francisco não era tido como mau pai de família. Uma sobrinha sua que mora na Amadora, em casa de quem ficou várias vezes quando ia fazer tratamentos ao Instituto Português de Oncologia, dá uma resposta enigmática quando se lhe pergunta sobre o tio: "Toda a vida tem sido uma peste. Era bom marido e bom avô".

Quando lhe nasceu a menina de paternidade incerta, Cátia voltou a morar com os pais na pacata vivenda da Rua de Moçambique, onde todos se recordam de ver Francisco a passear com a neta no ameno jardim pegado às moradias. "Sempre apoiou a filha solteira", recorda um vizinho, Ricardo Maio. Também por isso, a vizinhança nunca soube as razões de a rapariga se ter atirado da janela do segundo andar abaixo, vai para pouco mais de um ano. "O pai embebedava-se, a filha tentava matar-se. Era uma família um pouco problemática. Mas nunca notámos nenhuns sinais de violência", diz o mesmo vizinho.

Uma vida (quase) normal

O acidente deixou sequelas. Fonte próxima da família conta que se chegou a temer que a jovem mãe ficasse tetraplégica. Cátia fez a recuperação devagarinho - primeiro de cadeira de rodas, depois de muletas. Ainda não estava totalmente restabelecida quando se deu a tragédia. Francisco, esse, continuava a ser visto a passear a neta. "Adorava a miúda", descreve outro vizinho. Quase da família, Mariana Carapinha vai mais longe: "Tratava-a como se fosse filha". Como se fora pai da menina. A frase parece ingénua, mas correu pela cidade fora como um rastilho, única maneira de explicar um crime que parece impossível e inexplicável: "Dizem que era avô e pai da criança".

Companheira de criação de Francisco, Mariana Carapinha ficou ontem o dia todo à porta do tribunal, à espera de o ver aparecer para ser ouvido por um juiz. Debalde: o alegado homicida ficou detido o dia inteiro nos calabouços da PSP. "Os pais do Chico eram caseiros da Escola Agrária", conta Mariana Carapinha, ainda mais incrédula do que todos quantos aguardam com ela, sem arredarem pé, a chegada do suspeito ao tribunal, como que para verem o horror com os seus próprios olhos. Uma semana é quanto se calcula que os três corpos tenham ficado fechados em casa, com Francisco a viajar até Lisboa, a regressar a Beja, a ser visto por toda a cidade a fazer uma vida perfeitamente normal.

Antes de ir almoçar ao snack-bar do casal ucraniano tinha estado a tomar o pequeno-almoço na pastelaria defronte da loja de lingerie que Benvinda montou a seguir ao desfalque, no centro da cidade. À empregada do estabelecimento disse por estes dias para não o contactar, nem a ele nem à mulher: iam para fora de Beja resolver uns problemas. Calhou ter sido visto sozinho em Lisboa pelo namorado de Cátia.

À medida que os dias passavam, as suspeitas entre os mais chegados à família avolumavam-se. Mariana Carapinha conta que os últimos dias antes de Francisco ser detido já foram passados em sobressalto: o seu companheiro passou a fazer rondas de carro à vivenda da Rua de Moçambique, à espera de ver movimento lá dentro. "Foram quatro dias com o coração aos saltos", descreve. À espera do pior. Uma lágrima corre-lhe devagarinho pela cara: "Que loucura levou o Chico a fazer isto?!".

Beja, "cidade triste"

Tanto o ex-funcionário bancário como a mulher eram clientes do mais famoso café de Beja, o Luiz da Rocha. Quando a viam mais triste, os empregados tentavam roubar um sorriso a Benvinda com uma brincadeira inocente: em vez dos habituais Slims, os cigarros fininhos de senhora, pespegavam-lhe tabaco sem filtro. "Era mesmo só para a vermos sorrir, mesmo que fosse um sorriso triste", contam. Não é que ela se queixasse. Quando muito, soltava um desabafo, dizendo que o marido tinha mudado muito com o tratamento do cancro, a bebida e os antidepressivos.

Há uns anos, a família viu-se envolvida no atropelamento mortal de um motociclista, acidente de que Benvinda sofreu consequências prolongadas. A vivenda onde moravam estava à venda há muito tempo. A família tentou desfazer-se dela logo um ano a seguir a se ter mudado para a Rua de Moçambique. Nunca conseguiu. Há pouco mais de uma semana, numa conversa informal com o correspondente do PÚBLICO em Beja, Francisco Esperança dizia-se desgostoso de Beja, que se tinha tornado, na sua opinião, uma cidade "triste, com todos a dizer mal de todos". Nada que se comparasse com a vida social de há uma década. "Agora todos se enfiam nas suas casas e já não há convivência", queixava-se. A vivência colectiva que "fazia de Beja uma cidade especial morreu", observava.

Na passada sexta-feira, Francisco foi comprar almoço para levar para casa ao Luiz da Rocha, como era costume. "Bebeu uma cerveja, riu-se um bocadinho com a gente e abalou, já o acto devia estar mais que consumado", relata, revoltado, um empregado, que descreve o pai de Cátia como "um homem que quando bebia fervia em pouca água e se tornava mau". "Numa manhã era capaz de consumir meia garrafa de Macieira", calcula.

No muro da vivenda onde tudo aconteceu alguém deixou três rosas brancas - uma por cada vítima. Na montra da loja de lingerie anunciam-se saldos. A pequena montra tem agora os estores corridos, mas pelas frestas ainda se conseguem vislumbrar as t-shirts e os boxers vermelhos e negros. Nome da colecção: corações partidos.

Suspeito ouvido hoje

Suspeito de ter matado mulher, filha e neta com uma catana e de ter ocultado os cadáveres em casa durante uma semana, Francisco Esperança, de 59 anos, deverá ser ouvido hoje de manhã pelo juiz de instrução criminal. Saber-se-á então se será mandado aguardar julgamento em liberdade ou se ficará detido preventivamente. Fonte policial adiantou ontem à agência Lusa que ainda falta conhecer os resultados das perícias efectuadas pela Polícia Judiciária.

O antigo funcionário bancário entregou-se na segunda-feira, por volta das 19h40, à PSP, que cercava a residência da pacata Rua de Moçambique. O cadáver da mulher foi encontrado num quarto tapado com um lençol, enquanto os da filha e neta estavam noutro.

Os corpos das três vítimas foram autopsiados durante a tarde de ontem na delegação do Instituto Médico-Legal de Beja, estando os respectivos funerais marcados para hoje, às 14h.