Sobreviver para dançar
Nos últimos anos, a cabeça de Koen Augustijnen (Mechelen, 1967) passou demasiado tempo do lado de lá, a construir mentalmente o não-lugar onde a vida continua (isto, claro, é wishful thinking) depois da morte. Au-Delà, a peça com que o bailarino e coreógrafo dos Ballets C de la B abre hoje em Guimarães a segunda edição do GuiDance - Festival Internacional de Dança Contemporânea (Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, às 22h), é exactamente como ele imagina esse não-lugar, e também, admite ao P2 no final de um ensaio, uma maneira de se colocar perante o seu próprio fim. Não é demasiado novo para isso: "Um bailarino de 44 anos é um bailarino velho. Esta peça também foi uma maneira de descobrir o que é que ainda posso fazer com este corpo que está a envelhecer. Tirando um dos bailarinos [o coreano Gil Ho-Yang], todos temos mais de 40 anos."
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Nos últimos anos, a cabeça de Koen Augustijnen (Mechelen, 1967) passou demasiado tempo do lado de lá, a construir mentalmente o não-lugar onde a vida continua (isto, claro, é wishful thinking) depois da morte. Au-Delà, a peça com que o bailarino e coreógrafo dos Ballets C de la B abre hoje em Guimarães a segunda edição do GuiDance - Festival Internacional de Dança Contemporânea (Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor, às 22h), é exactamente como ele imagina esse não-lugar, e também, admite ao P2 no final de um ensaio, uma maneira de se colocar perante o seu próprio fim. Não é demasiado novo para isso: "Um bailarino de 44 anos é um bailarino velho. Esta peça também foi uma maneira de descobrir o que é que ainda posso fazer com este corpo que está a envelhecer. Tirando um dos bailarinos [o coreano Gil Ho-Yang], todos temos mais de 40 anos."
Também é por isso que o corpo (o mesmo corpo que séculos e séculos de liturgia e de iconografia cristã reduziram a pó) é a peça central deste lugar post mortem: há literalmente vida depois da morte (corpos em movimento, e corações que batem dentro deles, como uma irredutível banda sonora interior) no Au-Delàde Koen Augustijnen. Nesse lugar novo, assistimos às diligências de um corpo que tenta perceber se ainda tem carne, se ainda tem ossos, se ainda cá está. Como se, no limite, a nova peça dos Ballets C de la B quisesse responder a isto: como é que se dança, quando já não há corpo?
Mas essa é só a maneira fria de ver a peça. Não era exactamente aí que Koen Augustijnen tinha a cabeça quando isto começou: "Recentemente perdi a minha avó e o meu pai [o pianista de jazz Walter Augustijnen], e comecei a ver mais o fim das coisas, a imaginar como seria. Às vezes (eu sei que é estranho) sinto a presença das pessoas que perdi. Isso deu-me a ideia de situar esta peça no lado de lá."
Temas como a perda, a morte e a aceitação do fim dominaram todo o processo de improvisação com os bailarinos, e antes disso as leituras prévias do coreógrafo: "Quando li o Livro Tibetano dos Mortos,fiquei muito impressionado com a ideia de haver uma sala de espera, um espaço "entre" em que podes olhar para o teu passado, mas ainda não sabes qual é o teu futuro. Como se por momentos não tivesses chão debaixo dos pés."
Podia ser tudo muito negro, mas Koen Augustijnen passou a ver vida onde antes só via morte. Leu muito sobre experiências de quase morte relatadas por pessoas que "voltaram". Nesses relatos, diz, são muito frequentes as referências ao túnel, ou ao filme da vida em flashback, mas também há experiências de felicidade extrema, como se ali, tão perto da morte, tivesse começado uma nova vida. "Muitas pessoas dizem que gostavam de viver essa experiência outra vez. Para mim, é muito difícil aceitar que não continuamos. Esta peça é a minha luta com a ideia de fim. Não é uma luta perdida", sublinha o coreógrafo.
Pelas razões óbvias, Au-Delàé, além de uma forma de luta, também uma forma de luto. Daí que a banda sonora escolhida inclua, além de uma peça do próprio Walter Augustijnen (o pai de Koen), obras do seu pianista de jazz favorito, Keith Jarrett. "Cresci a ouvir esta música, que para mim tem uma qualidade transcendental: tanto é muito pequena e doce, como se torna absurdamente poderosa. Leva-me a algum lado, para longe", aponta Koen Augustijnen. Au-Delàtambém, mas não necessariamente de volta ao pai: "Esta peça não é uma terapia. Mas é uma sublimação de coisas que estiveram muito presentes na minha cabeça ultimamente. E acho que me deu uma certa libertação: não é que eu agora saiba como vai ser... [longo silêncio]. Mas finalmente pude encerrar este capítulo que colonizou a minha vida e seguir em frente."
Em Guimarães, a apresentação de Au-Delàserá assombrada por essa e outras perdas. No acto da compra dos bilhetes, os espectadores são convidados a escrever um curto texto sobre a perda, que pode vir a integrar o espectáculo. Percebemos a mensagem: isto que no palco é só com eles na vida também é connosco.