James Ferraro, o supremo fantasista

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Ferraro (o artista do século XXI) dedica-se a mostrar outra dimensão da infra-estrutura em que estamos metidos enquanto membros da sociedade pós-industrial

"Sou um artista e um músico ao mesmo tempo. Se vivesse na Idade Média, faria pinturas intensas ou grotescas, ao estilo de Bosch, sobre o Inferno, a vida para além da morte, ou escreveria textos religiosos, teologia. Mas sou um ser humano no século XXI", diz James Ferraro, em Los Angeles, à conversa com o Ípsilon no Skype, esse símbolo do mundo globalizado.

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"Sou um artista e um músico ao mesmo tempo. Se vivesse na Idade Média, faria pinturas intensas ou grotescas, ao estilo de Bosch, sobre o Inferno, a vida para além da morte, ou escreveria textos religiosos, teologia. Mas sou um ser humano no século XXI", diz James Ferraro, em Los Angeles, à conversa com o Ípsilon no Skype, esse símbolo do mundo globalizado.

Ferraro, o artista do século XXI, dedica-se a "mostrar outra dimensão da infra-estrutura" em que estamos metidos enquanto membros da sociedade pós-industrial. Ele é o coleccionador de gravações de campo, já não da natureza ou de tradições perdidas, mas da nossa vida em rede: o som do Skype, o muzak de lobby de hotel ou do Starbucks, logótipos sonoros, toques polifónicos, máquinas que falam connosco, avatares do mundo virtual Second Life, mil sons que, em sintonia, tecem loas a uma utopia capitalista.

São estes elementos que fazem de "Far Side Virtual" um dos melhores discos do último ano para várias publicações. Ferraro pegou neles e orquestrou-os, o que resultou num disco que pode ser visto com uma provocação ou crítica anticapitalista (nada mais errado, mas já lá vamos).

Com "Far Side Virtual", James Ferraro, que começou a fazer noise nos Skaters e lançou-se depois numa série infindável de álbuns lançados em CD-R artesanais, chegou às páginas da bíblia de moda "Elle". Cereja em cima do bolo: inicialmente queria editar o álbum como 16 toques para telemóvel.

"Se calhar, ‘Far Side Virtual' teve impacto numa audiência maior por ser mais relevante para as suas vidas. As outras coisas eram as minhas impressões sobre o mundo, a minha presença estava mais no disco. Talvez ‘Far Side Virtual' me tire do cenário, talvez as pessoas se coloquem lá", teoriza. Faz sentido: o disco está repleto de sons que nos são familiares (ou existem no nosso dia-a-dia ou podiam muito bem existir). "Tons genéricos que estão embebidos no teu ser", confirma.

Detritos do capitalismo

Ferraro tem um fascínio antigo pelos detritos do capitalismo. Se nos Skaters, duo que ajudou a definir o noise da década passada, construiu uma mitologia baseada no oculto, no mágico e no esotérico, a solo construiu um universo com múltiplas vias, mas quase todas em torno das zonas mais esconsas da sociedade moderna.

Acercou-se na new age de gosto duvidoso (no maravilhoso "Memory Theatre"), atirou-se ao hair rock e aos Sigue Sigue Sputnik (no caricatural "Night Dolls With Hairspray"), fez blues para a ruína americana ("Last American Hero"). Sempre partindo de conceitos, muitas vezes vagos e fantasiosos, num labirinto fascinante, como a música independente não gerava há muito tempo.

"Trata-se de ser inspirado pelo ambiente. Música new age, MTV, hair metal... são coisas que estão na infra-estrutura. Sou muito inspirado por estímulos externos", conta. "É apenas um sintoma de existir num cenário ou infra-estrutura louca e pós-industrial".

Durante anos, ajudou a fazer das gravações roufenhas uma tendência na música independente. Agora, faz um álbum com um som cristalino: um registo feito no computador que não se parece com nada do que tinha feito. "Apesar das diferenças de fidelidade [sonora], não sinto que seja tão diferente das coisas que fazia no passado", reflecte.

Sempre fez discos diferentes, mas o "lo-fi" unia: o meio era a mensagem e a névoa que filtrava todos os seus trabalhos era central no seu universo psicadélico. "É assim que estou, em 2012: os meus pensamentos são mais digitais, mais ‘online' e mais ‘hi-fi'".

Num mundo indie que virou "lo-fi", Ferraro dá uma guinada e procura a suprema claridade digital. Fá-lo também no projecto Bebetune$, onde inventa mais uma "persona" e torna-se produtor de hip-hop alienígena. "Em Bebetune$ e ‘Far Side Virtual', estou muito interessado em claridade digital. A gravação, a forma como o som é captado digitalmente... tem um espectro cheio de tons, timbres e sons", explica. "Prefiro quando os sons não são masterizados para soar a analógicos. Gosto do cru, estou fascinado com isso".

Provavelmente, será uma mistura de "Far Side Virtual" e Bebetune$ aquilo que ouviremos dia 9, no espaço lisboeta Kolovrat 79, e dia 10, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. "Música para ‘smartphones'", antecipa, a rir-se. "Não sei se as pessoas estão prontas para ouvir ‘Far Side' ao vivo. Faço alguma aproximação, quero representar essa zona".

Sem futuro?

É um dos agentes centrais da música que tomou conta do "underground" americano, um caldeirão que absorve fontes de várias eras (a música cósmica alemã dos anos 70, a new age mais obscura, a pop mais descartável dos anos 80). Acompanham-no artistas como Ariel Pink, Ducktails e Oneohtrix Point Never.

A soma de referências é tal, numa voracidade típica da Internet, que há quem teorize sobre uma suposta falência criativa. No polémico livro "Retromania" (2011), Simon Reynolds aborda este alegado estado de coisas, concluindo que há longos anos que a pop não gera uma mudança de paradigma, como foram, por exemplo, o punk, o pós-punk e a música de dança. Reynolds diz que multiplicam-se as fusões de estilos, por vezes surpreendentes, mas não se gera nada de novo.

Ferraro discorda violentamente: "Penso o oposto. A fusão e a mistura são, intrinsecamente, algo de novo. A história é construída a partir de fusão, da tecnologia". Para o músico, mais do que procurar um "novo punk" ou uma nova "acid house", importa perceber que "o crescimento de um planeta globalizado" "é a mudança": "é essa a música punk ou o acid drum beat [dos nossos tempos]". "As pessoas ainda estão a produzir história, mas têm mais simbolismos para trabalhar, podem usar elementos do passado para falar do que acontece agora", conclui.

Uma observação comum sobre esta comunidade de artistas prende-se com a inexistência de mensagem política na música que fazem. "Far Side Virtual" é um simulacro da sociedade capitalista (estatuto reforçado pelos títulos das canções, onde figuram a Starbucks, o Google, wi-fi, a Pixar, Richard Branson e sushi). Podemos detectar um subtexto crítico, mas estamos por nossa conta: o que Ferraro quer é mostrar e criar com o que existe, não subvertê-lo ou destruí-lo.

É, por isso, que uma das canções se chama "Dubai Dream Tone", dedicada à "cidade mitológica" que abriu uma nova utopia capitalista. "As empresas do Dubai são donas de ruas onde existem casas", lembra Ferraro, que não gosta de tomar partidos. "Tenho ideias políticas e opiniões, mas o que quero é mais expressar a fenomenologia. O Dubai é uma cidade mítica, é o céu na terra de um ponto de vista capitalista".

Diverte-se com o relativo sucesso de "Far Side Virtual" e está excitado com o que pode construir a partir daqui. Diz que está a escrever uma instalação artística e um livro. Gosta de sonhar com argumentos para filmes - garante que está a trabalhar com gente que faz "filmes de vampiros" para levar "Far Side Virtual" ao grande ecrã (Ferraro é particularmente fértil neste tipo de sugestões em entrevistas) - ou conceitos para "reality shows". O livro será "uma obra de ficção, é como um ‘reality show' passado no Death Valley", conta.

No Verão deve haver novo álbum em torno de um universo semelhante a "Far Side Virtual". Uma sequela? "De certa forma... mas não, não é uma sequela. A sequela de ‘Far Side Virtual' vai ser um filme de Pixar que podes descarregar para o teu iPhone. A sério."