O cineasta grego que filmava na Grécia e sobre a Grécia

Foto
Theo Angelopoulos em Cannes em 1998 Reuters

Para todos os efeitos Theo Angelopoulos era o rosto do cinema grego, o vulto maior de uma cinematografia que permanece, para o resto da Europa, largamente desconhecida. Outros gregos adquiriram projecção internacional, Costa-Gavras ou Nico Papatakis, por exemplo, mas como cineastas "emigrantes", com obra feita em França ou nos EUA. Se se tratasse de nomear um grego a filmar na Grécia (e sobre a Grécia), mesmo que fatalmente submetido às regras das co-produções que baralham a nacionalidade dos filmes, o nome a destacar seria Angelopoulos. Morreu ontem, aos 76 anos, vítima de atropelamento, perto de Atenas.

Hoje, há alguns jovens cineastas gregos a conseguirem penetrar nos circuitos internacionais, e até num meio tradicionalmente exíguo (e tão pouco atreito à variedade geográfica) como é o circuito comercial português - Yorgos Lanthimos, de quem aqui vimos "Canino", é um exemplo. Mas isso não muda o essencial: hoje, como durante as últimas décadas, Angelopoulos confundia-se com a própria ideia do cinema grego.

Nascido em 1935, a sua infância sofreu com as atribulações da vida grega da época, a II Guerra Mundial e a Guerra Civil, no dealbar da qual o pai "desapareceu" depois de ter sido preso, episódio que marcou o jovem Theodoros e a que muito anos depois, já conhecido pelo diminutivo Theo, viria a aludir, obliquamente, em mais do que um filme. 

Como o seu contemporâneo Costa-Gavras (só dois anos mais novo do que ele), também o jovem Angelopoulos se deixou fascinar pelas luzes de Paris e pelas suas promessas de cultura e modernidade. Mas se Costa-Gavras ficou por França, Angelopoulos voltou à Grécia. Na sua passagem por Paris (e depois de estudos de Direito em Atenas), estudou Antropologia na Sorbonne (onde foi aluno de Lévi-Strauss), cinema no IDHEC (à época, anos 1950/1960, a principal escola de cinema francesa, procurada por inúmeros candidatos a cineastas de aquém e além fronteiras), e, depois, cruzando antropologia e cinema, foi discípulo de Jean Rouch num estágio no Museu do Homem. Angelopoulos referiu-se várias vezes a Rouch como sendo um seu "mentor", o que é curioso, porque o seu cinema se afastou progressivamente do preconizado por Rouch, não sendo o "cinema directo" do cineasta-antropólogo francês a referência mais imediata a surgir no espírito de quem quer que depare com os filmes de Angelopoulos.

O que é ser grego?

O cineasta construiu a sua obra em reflexão sobre temas extraídos da história grega contemporânea, postos em articulação, directa ou indirecta, com o legado da Grécia clássica. Quase todos os seus filmes - "O Thiassos"/"A Viagem dos Artistas", de 1975, porventura o mais célebre, mas também "Alexandre, o Grande", de 1980, "Viagem a Citera", de 1983, "O Olhar de Ulisses", de 1995, porventura o melhor - interrogam justamente o que é "ser grego", o que é lidar com uma história pessoal e circunstancial e ao mesmo tempo com um passado avassalador. 

Dentro dessa temática, Angelopoulos encontrou algumas figuras que usou e repetiu frequentemente: a errância, personagens que não param de caminhar e de viajar, pequenas "epopeias" desenroladas dentro de um circuito frequentemente fechado; e o insucesso, o inacabamento, sítios aonde não se chega, objectivos que não se cumprem, coisas que não se concluem.A Viagem dos Artistas, sobre umatroupede actores em caminhada para lado nenhum com uma peça que nunca conseguem verdadeiramente montar, é a expressão perfeita deste conjunto de motivos, masO Olhar dos Ulisses, o filme em que Harvey Keitel calcorreava os Balcãs à procura do "cinema original" (umas bobines perdidas dos pioneiros do cinema grego, os irmãos Manakis) perante as imagens da dissolução de um tempo (era a época da "implosão" jugoslava) e dos seus símbolos (a poderosíssima imagem de um busto de Lenine, agora pateticamente à deriva), associava a temática de Angelopoulos a um olhar, cheio deZeitgeist, sobre a Europa sua contemporânea.

Estilisticamente, era um cultor do plano-sequência, um dos últimos grandes estetas do plano-sequência, do plano longo e coreografado, "gramática" a que talvez não seja estranha a influência de cineastas do Leste europeu, do russo Tarkovski ao húngaro Miklos Jancsó - e pondo as coisas assim, o cinema de Angelopoulos sempre teve um travo mais "oriental" do que "ocidental", como que exprimindo as fronteiras geográficas e culturais da Grécia. 

À notícia da sua morte, atropelado por uma motocicleta, enquanto rodava um filme que se chamaria "O Outro Mar", lembramo-nos de que foi ele o autor de um dos mais espantosos planos-sequência dos últimos anos. Precisamente, o final de "O Olhar de Ulisses", as personagens a desaparecerem na neve e no nevoeiro de Sarajevo, até que no ecrã não restava mais do que uma imensidão branca.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Para todos os efeitos Theo Angelopoulos era o rosto do cinema grego, o vulto maior de uma cinematografia que permanece, para o resto da Europa, largamente desconhecida. Outros gregos adquiriram projecção internacional, Costa-Gavras ou Nico Papatakis, por exemplo, mas como cineastas "emigrantes", com obra feita em França ou nos EUA. Se se tratasse de nomear um grego a filmar na Grécia (e sobre a Grécia), mesmo que fatalmente submetido às regras das co-produções que baralham a nacionalidade dos filmes, o nome a destacar seria Angelopoulos. Morreu ontem, aos 76 anos, vítima de atropelamento, perto de Atenas.

Hoje, há alguns jovens cineastas gregos a conseguirem penetrar nos circuitos internacionais, e até num meio tradicionalmente exíguo (e tão pouco atreito à variedade geográfica) como é o circuito comercial português - Yorgos Lanthimos, de quem aqui vimos "Canino", é um exemplo. Mas isso não muda o essencial: hoje, como durante as últimas décadas, Angelopoulos confundia-se com a própria ideia do cinema grego.

Nascido em 1935, a sua infância sofreu com as atribulações da vida grega da época, a II Guerra Mundial e a Guerra Civil, no dealbar da qual o pai "desapareceu" depois de ter sido preso, episódio que marcou o jovem Theodoros e a que muito anos depois, já conhecido pelo diminutivo Theo, viria a aludir, obliquamente, em mais do que um filme. 

Como o seu contemporâneo Costa-Gavras (só dois anos mais novo do que ele), também o jovem Angelopoulos se deixou fascinar pelas luzes de Paris e pelas suas promessas de cultura e modernidade. Mas se Costa-Gavras ficou por França, Angelopoulos voltou à Grécia. Na sua passagem por Paris (e depois de estudos de Direito em Atenas), estudou Antropologia na Sorbonne (onde foi aluno de Lévi-Strauss), cinema no IDHEC (à época, anos 1950/1960, a principal escola de cinema francesa, procurada por inúmeros candidatos a cineastas de aquém e além fronteiras), e, depois, cruzando antropologia e cinema, foi discípulo de Jean Rouch num estágio no Museu do Homem. Angelopoulos referiu-se várias vezes a Rouch como sendo um seu "mentor", o que é curioso, porque o seu cinema se afastou progressivamente do preconizado por Rouch, não sendo o "cinema directo" do cineasta-antropólogo francês a referência mais imediata a surgir no espírito de quem quer que depare com os filmes de Angelopoulos.

O que é ser grego?

O cineasta construiu a sua obra em reflexão sobre temas extraídos da história grega contemporânea, postos em articulação, directa ou indirecta, com o legado da Grécia clássica. Quase todos os seus filmes - "O Thiassos"/"A Viagem dos Artistas", de 1975, porventura o mais célebre, mas também "Alexandre, o Grande", de 1980, "Viagem a Citera", de 1983, "O Olhar de Ulisses", de 1995, porventura o melhor - interrogam justamente o que é "ser grego", o que é lidar com uma história pessoal e circunstancial e ao mesmo tempo com um passado avassalador. 

Dentro dessa temática, Angelopoulos encontrou algumas figuras que usou e repetiu frequentemente: a errância, personagens que não param de caminhar e de viajar, pequenas "epopeias" desenroladas dentro de um circuito frequentemente fechado; e o insucesso, o inacabamento, sítios aonde não se chega, objectivos que não se cumprem, coisas que não se concluem.A Viagem dos Artistas, sobre umatroupede actores em caminhada para lado nenhum com uma peça que nunca conseguem verdadeiramente montar, é a expressão perfeita deste conjunto de motivos, masO Olhar dos Ulisses, o filme em que Harvey Keitel calcorreava os Balcãs à procura do "cinema original" (umas bobines perdidas dos pioneiros do cinema grego, os irmãos Manakis) perante as imagens da dissolução de um tempo (era a época da "implosão" jugoslava) e dos seus símbolos (a poderosíssima imagem de um busto de Lenine, agora pateticamente à deriva), associava a temática de Angelopoulos a um olhar, cheio deZeitgeist, sobre a Europa sua contemporânea.

Estilisticamente, era um cultor do plano-sequência, um dos últimos grandes estetas do plano-sequência, do plano longo e coreografado, "gramática" a que talvez não seja estranha a influência de cineastas do Leste europeu, do russo Tarkovski ao húngaro Miklos Jancsó - e pondo as coisas assim, o cinema de Angelopoulos sempre teve um travo mais "oriental" do que "ocidental", como que exprimindo as fronteiras geográficas e culturais da Grécia. 

À notícia da sua morte, atropelado por uma motocicleta, enquanto rodava um filme que se chamaria "O Outro Mar", lembramo-nos de que foi ele o autor de um dos mais espantosos planos-sequência dos últimos anos. Precisamente, o final de "O Olhar de Ulisses", as personagens a desaparecerem na neve e no nevoeiro de Sarajevo, até que no ecrã não restava mais do que uma imensidão branca.