Fugazi: quando rock era rebelião

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O projecto Fugazi Live Series permite o acesso (via Internet) às gravações de todos os concertos dos Fugazi: centenas e centenas de cassetes que a banda acumulou até 2002

Tem sido uma das notícias mais comentadas no universo da música popular: os Fugazi interromperam o silêncio de nove anos. Um regresso? Não em carne e osso, mas, ainda assim, um regresso: a banda começou a disponibilizar na Internet as gravações de todos os seus concertos, com fotografias, lista de temas e "downloads" ao preço mínimo de um dólar. Decisão estranha, oportuna, anacrónica? Já lá vamos.

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Tem sido uma das notícias mais comentadas no universo da música popular: os Fugazi interromperam o silêncio de nove anos. Um regresso? Não em carne e osso, mas, ainda assim, um regresso: a banda começou a disponibilizar na Internet as gravações de todos os seus concertos, com fotografias, lista de temas e "downloads" ao preço mínimo de um dólar. Decisão estranha, oportuna, anacrónica? Já lá vamos.

O projecto "Fugazi Live Series" vem documentar a história em palco de uma banda que sempre rejeitou a mercantilização. E tem música, uma síntese séria e sensual de punk, reggae, funk e pós-hardcore. E canções que lançam para o remoinho de um concerto ou de uma audição palavras sobre o assédio sexual, a ganância, a inveja, John Cassavetes ou a espera que antecede a acção (é bom lembrar que os Fugazi são grandes intérpretes do pragmatismo americano).

Música e canções foram coisas pouco ou nada escutadas nos protestos, motins e manifestações que em 2011 varreram ruas americanas e europeias. Daí a surpresa, o incómodo. É que o punk-rock dos Fugazi, invertendo o título de um livro de Michael Azerrad dedicado ao indie-rock dos anos 80, parece cada vez menos a nossa vida. Para Ian MacKaye (Washington D.C., 1962), vocalista e guitarrista da banda, filho de um antigo correspondente do "Washington Post" na Casa Branca, os motivos por trás do lançamento do arquivo são óbvios: "Tínhamos estas gravações e decidimos partilhá-las. Fizemos à volta de mil concertos e começámos a gravar apenas para documentar os primeiros anos. Mas a colecção cresceu e, quando demos por isso, tínhamos centenas de cassetes e fomos continuando até 2002. Até que decidimos torná-las acessíveis não só aos que nos viram nesses concertos, mas aos que não estiveram lá", explica ao Ípsilon.

A qualidade do som e das performances é bem acima da média e o concerto de Lisboa no Paradise Garage, em meados dos anos 1990 (escandalosamente esquecido pela crítica), deve figurar na lista. Estão reunidas as condições para um encontro com públicos mais jovens, mas esse, assegura o músico, não foi o objectivo: "[‘Fugazi Live Series'] deve ser visto como uma biblioteca onde qualquer um pode entrar. Qualquer um pode ouvir. Esse é também um valor desta colecção".

Pode parecer estranho ouvir uma lenda vida do "underground" americano, que cresceu no culto do vinil, elogiar a cultura digital: "Não celebro estas transformações, não inventei a Internet. E a digitalização da música tem aspectos negativos", admite. "O que fizemos foi apenas mostrar algo que não tinha valor, como uma cassete esquecida, e dar-lhe potencial. É irrelevante saber se as pessoas vão ouvir ou não".

Uma banda humanista

Entre os finais dos anos 80 e até 2003, os Fugazi construíram uma discografia que os coloca a par dos Beatles, The Clash, Gang of Four, The Ex e Minutemen no panteão das bandas "humanistas". E a obra por eles deixada não se limitou à música. Estendeu-se à comunidade, com doações ao movimento Pro-Choice, a clínicas estatais e aos serviços públicos da cidade. Se houve um grupo musical do pós-punk americano envolvido directamente no apoio às vítimas de violência doméstica e que durante dez anos, apesar da inflação, não tocou nos preços dos bilhetes dos concertos (cinco dólares), foi este.

É um legado cuja influência actual ou futura Ian MacKaye tenta não comentar: "Não penso no futuro, e não perco muito tempo no passado, embora seja responsável pelo meu passado, de outra forma não estaria ao telefone consigo. A banda nunca foi uma loja ou um negócio. Sempre nos preocupámos com a música, antes, durante e depois dos concertos. E procurámos fazer coisas esteticamente interessantes, que estimulassem as bandas a desafiar o domínio do mercado. Para que fosse a música, e não o dinheiro, a guiar as pessoas".

As canções. As canções são importantes para perceber o compromisso que o punk rock anti-autoritário dos Fugazi exige. O que inspira frases como "You should pay rent in my mind" (em "Do You Like Me"), "the answer is there, but there is not a fixed position" ("Long Distance Runner") ou "We owe you nothing, You have no control, You are not what you own" ("Merchandise")? "Apenas a vida, as minhas experiências. Cada canção conta histórias diferentes e lida com assuntos que me fizeram pensar ou sobre as quais conversei com amigos. Leio muitos livros, mas nunca andei na faculdade ou estudei filosofia". O único nome próprio que dá título a uma canção da banda é (John) "Cassavetes". "Foi o Guy [Piccioto, o outro vocalista/guitarrista] que a escreveu. Para nós o Cassavetes representa um espírito indomável, alguém que fez filmes brilhantes que desafiavam Hollywood. E para quem a arte era superior ao mercantilismo".

Não é só a independência face ao mercado que Ian MacKaye cultiva: "Nunca percebi por que razão as pessoas querem estar numa banda, diante de um microfone, para não dizerem nada. Sempre acreditei nas palavras, quero que signifiquem qualquer coisa. E com a actual situação tecnológica, uma coisa de que sinto falta é a interacção humana. Porque a música ao vivo continua a ser uma forma de juntar as pessoas. Acredito que um dia vão parar de olhar para os telemóveis. Vão perceber que é apenas a merda de um telemóvel e vão querer ver um ser humano".

Contracultura em declínio?

Na música dos Fugazi (ou desse bando de mulheres de Portland que dava pelo nome de Sleater-Kinney) escuta-se de facto uma vibração que, se não cura, pelo menos exalta, como se fosse sempre a primeira vez (Frederic Jameson ou Barthes nunca ouviram, nem dançaram, "Suggestion" ou "Waiting room"). Que se manifesta como uma irrupção contra e no quotidiano.

Podemos então sossegar, pois o rock (e com ele quase toda a pop) ainda queima? Mark Fisher, crítico inglês da "The Wire" e da "Sight & Sound", autor de "Capitalism Realism" (Zero Books), duvida e muito: "Já não é possível posicionar o rock fora ou contra a cultura ‘mainstream'. Hoje pedimos aos nossos políticos que revelem o que andam a ouvir nos iPods e personagens como o Bono são membros da classe dominante. E não podemos argumentar que essas são apenas formas integradas do rock. Não há outra forma mais experimental ou independente à espera no ‘underground'".

Porque é que isto aconteceu? Onde estão os culpados? "Bem, o capitalismo é muito voraz, alimenta-se do descontentamento e transforma-o em mercadoria", propõe Fisher. "O que se perdeu no rock foram os elementos que resistiam a essa mercantilização, que a contestavam mesmo quando a música a abraçava. O que estamos a ver e a ouvir são os efeitos a longo prazo do triunfo do capitalismo, a sua infiltração no inconsciente, a forma como corrói a imaginação. O capitalismo neoliberal minou implacavelmente as condições que permitiram o florescimento do rock e da cultura popular, com os ataques ao Estado-providência".

Um dos efeitos desse processo é a ausência de uma banda sonora (popular) para os protestos e motins de 2011. "É verdade. A cultura do rock ‘mainstream' não podia ter menos ligação com a raiva das ruas do Cairo ou de Londres. E não há melhor exemplo disso do que o Festival de Glastonbury. No passado, o rock era onde íamos medir a temperatura do presente, para sentir as tensões e os antagonismos de um momento histórico particular; agora é uma forma de nos desligarmos. Glastonbury transformou-se num enclave, protegido dos tumultos, do que estava a acontecer lá fora. É como se pudéssemos sentir o efeito dos acontecimentos em todo lado, menos na música".

Ian MacKaye não é tão pessimista, mas reconhece a poder do capitalismo e a cumplicidade dos músicos. E recorda uma história: "Os Ramones tornaram-se numa marca, participaram disso. Começaram logo a vender produtos e empenharam-se em criar um visual. Repare, o jazz era uma coisa assustadora, repelente para a maioria da sociedade americana. Agora está em todo lado, como o rock'n'roll. Se batermos uma vez no braço, vai doer. Mas se continuarmos a bater durante uma semana, deixamos de sentir dor. São os efeitos da repetição. Os Ramones representam até certo ponto uma ideia de rebelião, mas transformaram-se numa imagem que qualquer um pode usar".

Restará ainda um epílogo redentor? "Talvez os solos estejam em pousio. Precisamos de esperar que os nutrientes entrem na terra, para a tornar fértil outra vez", diz o músico. E não, não é uma frase gratuita. Ian MacKaye sabe que nos EUA a história da música popular fez-se sem o apoio do Estado e, muitas vezes, com a mão, inquieta, na cara do capitalismo.