A forma como ilustramos a memória
Em "O Pintor Debaixo do Lava-Loiças", Afonso Cruz mostra que sempre se encontram "histórias que dariam histórias" na vida dos antepassados
Além de escritor, Afonso Cruz (n. 1971) é músico, cineasta e ilustrador (como se não bastasse, também produz a sua própria cerveja). Como escritor e ilustrador vem sendo premiado em Portugal, destacando-se, entre os livros da sua ainda curta obra, o fragmentário "Enciclopédia da Estória Universal", o juvenil "Os Livros que Devoraram o Meu Pai", ou o notável "A Boneca de Kokoschka". A sua escrita transparece um gosto especial pela construção de um imaginário narrativo denso e rico, muitas vezes labiríntico e consciente do peso especial que a fantasia pode ter quando surge de surpresa numa base realística.
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Além de escritor, Afonso Cruz (n. 1971) é músico, cineasta e ilustrador (como se não bastasse, também produz a sua própria cerveja). Como escritor e ilustrador vem sendo premiado em Portugal, destacando-se, entre os livros da sua ainda curta obra, o fragmentário "Enciclopédia da Estória Universal", o juvenil "Os Livros que Devoraram o Meu Pai", ou o notável "A Boneca de Kokoschka". A sua escrita transparece um gosto especial pela construção de um imaginário narrativo denso e rico, muitas vezes labiríntico e consciente do peso especial que a fantasia pode ter quando surge de surpresa numa base realística.
É essa construção a partir do verídico que acontece em "O Pintor Debaixo do Lava-Loiças", baseado num pintor eslovaco que os avós de Afonso Cruz albergaram deveras em 1940. Com medo da PIDE (ainda PVDE, na altura), o pintor dormia debaixo do lava-loiças. No entanto, a maior parte do livro é a história prévia da vida de Jozef Sors (o nome do homem real era Ivan Sors), de tudo aquilo que o levou até ao refúgio na casa de uma família da Figueira da Foz.
Nasce em Bratislava, em 1985, filho de uma engomadeira conformista e de um mordomo incapaz de entender metáforas. Os pais trabalham para o coronel Möller, pai de Wilhelm, um rapaz da mesma idade que vive obcecado pelas palavras, tal como Jozef cedo se compromete a desenhar o mundo. O seu espírito sensível impede-o de seguir a retidão e o ascetismo que defende como sendo a única forma de chegar mais alto, como uma árvore que crescesse melhor por não ter de suportar a dispersão dos ramos.
Porque deves ler este livro?
Além de todas as ilustrações que se percebem logo ao folhear o livro, nomeadamente os inúmeros olhos que invocam os cadernos onde Josef Sors desenha, este romance é polvilhado com diversas reflexões convocadas pelos personagens sobre temas como a arte, o amor, o tempo, a guerra, a cultura e as palavras, entre outros, brincando com conceitos de forma por vezes surpreendente, e sempre poética e filosófica. Os aforismos diluem-se na prosa e aparecem sem grande alarido, o que, juntamente com uma narrativa incisiva mas constante, resulta numa escrita fluida servindo uma história imaginativa e rica.
À medida que vamos conhecendo a vida de Josef Sors desde a infância e adolescência em Bratislava, onde desenha no "livro infinito" o seu amor incorpóreo por Frantiska, a sua vizinha neurótica e cruel, até à sua chegada a um Portugal fatalmente sufocado pelo pessimismo ("o nosso sucesso é uma ponte entre dois fracassos"), assistimos também a parte da história e cultura europeia. Sors estuda arte em Praga e vive alguns anos nos Estados Unidos até acabar em Portugal, ansiando sempre pela cura - ou redenção - de um problema de visão que o vem cegando desde o gás mostarda das trincheiras da primeira guerra mundial.
Afonso Cruz criou esta história a partir do pouco que sabia - alguns dados biográficos e dois quadros - sobre o pintor que em tempos viveu debaixo de um lava-loiças. O que nela é verdadeiro descobre-se num curto epílogo encantador e pungente, onde se entrelaçam as histórias das vidas dos seus antepassados mais próximos, uma vez que "por vezes é uma viagem muito mais difícil: chegar a quem está perto".