Intelectuais procuram-se!
O que terá feito com que a romancista e ensaísta Susan Sontag deixasse, em 1993, o conforto do seu apartamento, em Manhattan, em Nova Iorque, e decidisse ir para o Inverno de Sarajevo, no meio de uma guerra fratricida, encenar "À Espera de Godot", de Samuel Beckett? Seria, porventura, uma atitude legada dos intelectuais comprometidos que foram Zola, Sartre, Simone de Beauvoir ou Camus, intervindo na rua em defesa da justiça e lutando manifestamente por uma causa pública? Seria, eventualmente, uma acção comprometida com a necessidade de agir, Sontag realizando-se assim como pensadora e conciliando, por um momento, o grande conflito entre a acção e o pensamento, que é o fantasma de todo o intelectual, na perspectiva de Hannah Arendt, que a este assunto dedicou grande parte das suas obras? Nunca o saberemos, provavelmente; no entanto, numa entrevista curta a Allan Gregg, Sontag afirma que foi para Sarajevo não como escritora, mas como pessoa que não podia deixar de intervir; considerando, aliás, que o seu envolvimento naquele genocídio era, mais do que normal, normativo. Encenou, por isso, uma das peças que melhor significam o absurdo (a esperar por uma entidade exterior que possa resolver os nossos destinos) e trabalhou na área cultural e de educação. O facto de dizer que não foi enquanto escritora é essencialmente uma questão de pudor.
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O que terá feito com que a romancista e ensaísta Susan Sontag deixasse, em 1993, o conforto do seu apartamento, em Manhattan, em Nova Iorque, e decidisse ir para o Inverno de Sarajevo, no meio de uma guerra fratricida, encenar "À Espera de Godot", de Samuel Beckett? Seria, porventura, uma atitude legada dos intelectuais comprometidos que foram Zola, Sartre, Simone de Beauvoir ou Camus, intervindo na rua em defesa da justiça e lutando manifestamente por uma causa pública? Seria, eventualmente, uma acção comprometida com a necessidade de agir, Sontag realizando-se assim como pensadora e conciliando, por um momento, o grande conflito entre a acção e o pensamento, que é o fantasma de todo o intelectual, na perspectiva de Hannah Arendt, que a este assunto dedicou grande parte das suas obras? Nunca o saberemos, provavelmente; no entanto, numa entrevista curta a Allan Gregg, Sontag afirma que foi para Sarajevo não como escritora, mas como pessoa que não podia deixar de intervir; considerando, aliás, que o seu envolvimento naquele genocídio era, mais do que normal, normativo. Encenou, por isso, uma das peças que melhor significam o absurdo (a esperar por uma entidade exterior que possa resolver os nossos destinos) e trabalhou na área cultural e de educação. O facto de dizer que não foi enquanto escritora é essencialmente uma questão de pudor.
Vem isto a propósito da recorrência com que o tema do intelectual tem aparecido nos últimos tempos: num suplemento Ípsilon deste Verão e numa crónica de Vitor Belanciano, no PÚBLICO, ele era exaustivamente abordado; um número recente da revista francesa "Les Inrockuptibles" incluía um dossier sobre a matéria; e o ensaísta João Barrento acaba de publicar um livro - "O Mundo está Cheio de Deuses" - cujo ensaio mais extenso aborda este mesmo tema de um modo particularmente elaborado.
O que está em causa neste conjunto de intervenções é sumário: porquê o regresso desta figura, caso o regresso fosse possível? que condições tem para cumprir a sua missão? e, finalmente, qual é o seu perfil?
O regresso ao tema desta figura terá necessariamente a ver com a possibilidade de que haja uma leitura do mundo que, não vindo de fora do sistema, se evidencie com um ponto de vista do exterior e que, sendo embora crítico, seja portador de esperança. Com efeito, isto quer dizer que continua a fazer sentido expressar a realização do humano com propostas alternativas ao pensamento único. Também diz da necessidade do aparecimento de alguém que faça o contraponto aos fazedores de opinião, e que, a partir do que é a doxa e a informação generalista, formule, nesses instrumentos de condicionamento social que são parte substantiva dos média, o que nestes fazedores de opinião é a ambição de poder mais recalcada. Na verdade, nada mais contrário existe à racionalidade e à Filosofia do que as prestações dos opinadores profissionais.
As condições de exercício da actividade dos intelectuais são escassas e, para citar João Barrento, que cita Pasolini, mais parecem pirilampos na negra noite actual, embora piscando e iluminando parte dela. A sua fragilidade é uma constante, mas também o é a sua perseverança. Pouco crédito terá o intelectual que se afirme exclusivamente como portador da XI tese de Karl Marx sobre Feuerbach: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo." Contudo, a esperança no regresso do intelectual é a de que ele não abdique de ler o mundo e de o entender. Resta, portanto, saber como proceder "a posteriori". O que fazer, uma vez que ninguém pode pedir que todos se comportem como Susan Sontag, agindo com o próprio corpo, comprometendo-se na deslocação para o terreno da intervenção. Aqui a tese de João Barrento é oportuna, porque ao considerar que a figura do intelectual se pluralizou, reconhece a multiplicidade de acções e de perfis que o intelectual contemporâneo pode reivindicar. E, sendo assim, podemos admitir que cumprem o papel de intelectual, participando por via do discurso, o linguista Noam Chomsky, um dos maiores críticos e interventivos cientistas sobre as políticas dos EUA, em especial dos governos Reagan e Bushes, ou Jürgen Habermas, que ainda muito recentemente, numa conferência em Paris, no cansaço dos seus 80 anos, solicitava a intervenção de todos no espaço público para evitar o que se avizinha na Europa: o fim da democracia (palavras dele). E ainda no plano que é do dizer, mas também do fazer, a um conjunto de intelectuais oriundos das ex-colónias europeias que, por conveniência de linguagem, se apelidam ora de teóricos do pós-colonialismo, ora de teóricos dos estudos de cultura e de política, se devem formas performativas de intervenção. Seja no caso de Homi K. Bhabha, criador de um dos mais felizes conceitos e ferramentas operativas, propondo a dúvida global seguida pela negociação cultural na resolução de conflitos e colaborador de ONG; de Arjum Appadurai, estudioso dos efeitos dos média na representação condicionada do mundo e da criação de limites ao funcionamento das democracias, sendo, ao mesmo tempo, responsável por uma organização que intervém, na Índia, solucionando conflitos de natureza étnica ou motivados pela pobreza; ou de Benjamin Arditi, paraguaio, autor de análises pertinentes sobre o mundo pós-liberal e também responsável por organizações de jornalistas que, no Paraguai, fazem um trabalho de desconstrução da produção de notícias pelos média.
Esta pluralidade e esta deslocação para outros perfis admite que o intelectual possa passar do plano do dizer para o plano do mostrar, e aí artistas, performers, realizadores, curadores, programadores podem intervir revelando como e onde estamos. Em abono deste tipo de intelectuais para quem pensar e agir resulta no mostrar estão agora, para evocar Jacques Rancière, razões de fundo dos nossos tempos. Primeiro: a arte e a política ocupam agora o lugar que durante muitos anos foi da estética; porém como é, hoje, possível admitir uma resistência desta quando toda a política se esteticizou?! Segundo: a política tornou-se lúdica e teatral, e, para além disso, muitas formas de arte provêm do mais interior do social. Terceiro: a arte e o pensamento activo criam não obras mas formas de vida que, na sua hibridez, ganham um novo potencial crítico. Mostrando, dizendo ou agindo na pluralidade das suas figuras. Intelectuais procuram-se!