A portugalidade em “Sangue do Meu Sangue”

Ao forçar o retrato de uma realidade social degradada como o faz, Canijo já não está a falar (só) de Portugal. E colocar meia dúzia de “bandeiras” nacionais (música pimba, relatos de futebol, etc.) não altera essa evidência

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Em “Sangue do Meu Sangue”, é notório (não o podia ser mais) o interesse de João Canijo em documentar a portugalidade séc. XXI – feia, porca e má. Nada contra isto, muito pelo contrário. A questão está na forma como isso pode ser feito.

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Em “Sangue do Meu Sangue”, é notório (não o podia ser mais) o interesse de João Canijo em documentar a portugalidade séc. XXI – feia, porca e má. Nada contra isto, muito pelo contrário. A questão está na forma como isso pode ser feito.

A meu ver, Canijo fá-lo no formato mais "telenovesco" possível, o mesmo é dizer, do modo mais fácil, gratuito e imediatista. Será que é preciso bombardear o espectador durante quase três horas com posters do Tony Carreira a piscar o olho ao plano, música pimba ou relatos de futebol em voz "off"? Não é, e fazê-lo só demonstra uma certa dificuldade em retratar um determinado tema com algo mais para além do superficial e do folhetinesco. Basta pensarmos em Teresa Villaverde ("Mutantes", uma obra que também incide sobre a juventude, a marginalidade e a falta de rumos), Manuel Mozos (o fabuloso “Xavier”, filme-fronteira do Portugal pré e pós União Europeia) ou César Monteiro (a trilogia de João de Deus) para se encontrar essa mesma portugalidade filmada, mas, desta feita, sem o recurso a estereótipos cristalizados. É que não o fazendo, o que ressalta é uma incomparavelmente maior genuinidade do objecto que se retrata, das suas idiossincrasias, seus tiques e vícios.

Esses filmes de Villaverde, Mozos e César Monteiro captam, na perfeição, o nosso país e o que é "ser português" – ou alguém tem dúvidas? Está tudo lá, mas agora introduzido de forma sóbria, subtil, dando ao espectador menos a "ver" (como faz flagrantemente Canijo, que nos espeta pelos olhos adentro todas as marcas imagéticas da portugalidade) e mais a procurar, a reflectir, a (re) descobrir. O que acaba também por constituir, está bom de ver, um maior campo de liberdade (e de interesse, et por cause) para um espectador que não queira identificar tudo na primeira jogada.

Arrisco mesmo perguntar o seguinte: de tão exacerbado que é o retrato do nosso portuguesismo (o tal bombardeamento de "etiquetas"), não sairá a própria realidade falseada? Eu creio que sim. Por circunstâncias várias, tive e tenho contacto com muitas pessoas que podiam ser as deste filme, a viver ali, num bairro como aquele. E as coisas não são "tão" assim – a realidade portuguesa, a dos bairros sociais e das vidas que aí se cruzam, não é como João Canijo a descreve, ou, pelo menos, não é tão suja, tão porca e tão má. Isto poderá ser refutado – sim, existirão muitos lugares do país onde a vida é assim ou pior ainda. Só que esses lugares existirão não só em Portugal como em qualquer bairro social marginalizado de uma grande metrópole, pelo que, logo aí, se desvanece o suposto olhar genuíno e sociológico sobre a portugalidade que “Sangue do Meu Sangue” reclama.

Ao forçar um retrato de uma realidade social degradada como o faz, Canijo já não está a falar (só) de Portugal. E colocar meia dúzia de “bandeiras” nacionais (música pimba, relatos de futebol, etc.) não altera essa evidência.

Uma sugestão: é só ver o filme de Mozos e compreender como o cinema, por mais realista que pretenda ser, pode, com uma simplicidade desarmante, captar uma realidade, uma cultura, de um modo muito mais honesto e verosímil quando as deixa respirar, por si, em frente a uma câmara, ao invés de delas extrair, à força, quase as violentando, as suas marcas mais epidérmicas. Um povo é todo o iceberg, e não apenas as suas pontas.