Christopher Hitchens: ele aceitaria ser porta-voz de Obama
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Christopher Hitchens veio recentemente a Lisboa, a convite da Casa Fernando Pessoa, falar sobre religião e ateísmo. Em 2007, o colunista das revistas Vanity Fair e Atlantic Monthly publicou um livro polémico contra a fé e a religião "organizada". Se Cristo vendeu sempre bem, o anti-Cristo não fica agora atrás. Deus não é grande, título da edição portuguesa, foi um best-seller dentro e fora dos Estados Unidos. Para muitos, o ensaio de Hitchens está para esta época como o célebre Por que não sou cristão do filósofo inglês Bertrand Russell esteve para o começo do século XX. Hitchens transformou-se numa espécie de Richard Dawkins do jornalismo cultural. E não é uma companhia que ele rejeite, pois uma parte da sua militância ateia apoia-se nas descobertas da ciência sobre a evolução humana.
A polémica, a provocação, a agressividade no debate, são o oxigénio de Christopher Hitchens. Nos últimos dois anos tem passado uma vida peripatética de debate em debate contra filósofos, teólogos e clérigos. Em Deus não é grande, Hitchens identifica a "superioridade moral do ateu" por oposição à "irracionalidade" do crente. O seu livro tornou-o, talvez por isso, mais conhecido e estimado como o ateu preferido dos ateus do que como o grande jornalista e crítico literário que ele acima de tudo é.
Mas, na verdade, convém dizer que Hitchens é antes de mais um brilhante jornalista e colunista, na minha opinião o mais completo da imprensa americana. Não há decerto ninguém tão lido, ninguém a escrever como ele (numa prosa elegante e espontânea de frases longas), ninguém que atraia tantas paixões e ódios. As colunas de Hitchens são muitas vezes análises factuais com que ele refuta posições contrárias às suas ou desacredita certos mitos. O seu escrúpulo e precisão perante os factos lembram um dos seus ícones culturais: George Orwell, que referiu uma vez ter "o poder de encarar factos desagradáveis".
Noutros momentos, tudo o que ocorre dizer é isto: o homem é o estilo. Para quem cresceu politicamente na esquerda, Hitchens manteve uma saudável distância "conservadora" em relação às microcausas da esquerda soissantehuitard: o feminismo e as políticas identitárias. Há uns anos, na Vanity Fair, provocou um vendaval de críticas quando escreveu uma coluna intitulada: Porque é que as mulheres não têm piada, com o argumento simples de que as mulheres não precisam de ter piada. As reacções contra o seu aparente "machismo" foram duras. Ele nunca perdeu tempo com o politicamente correcto.
A força de Christopher Hitchens advém do seu estatuto de intelectual clássico e educado, que conhece bem a História e a literatura.
Nascido em 1949 em Inglaterra mas residente nos Estados Unidos desde a década de 80, Hitchens passou estes últimos 40 anos a escrever em jornais e revistas. Em 2008, um inquérito da revista Prospect colocou-o na 5.ª posição dos 100 intelectuais mais importantes do mundo. É autor de 16 livros. Além das colecções do seu jornalismo, escreveu sobre as figuras políticas e culturais que mais admira (Thomas Paine, Thomas Jefferson ou George Orwell), mas também sobre alguns dos seus ódios de estimação (Bill Clinton, Henry Kissinger ou Madre Teresa de Calcutá). Aos 60 anos, prepara agora novo livro sobre os Dez Mandamentos.
O 11 de Setembro trouxe-o de volta para a primeira frente do combate contra o terrorismo e as teocracias totalitárias, sobretudo no mundo árabe. Os artigos e as posições que tomou sobre a intervenção no Iraque e a guerra do Afeganistão valeram-lhe a censura e excomunhão da esquerda. Desde então, Hitchens passou a denunciar aquilo a que tem chamado de "esquerda reaccionária". Com esse distanciamento, adquiriu novos "amigos" e "inimigos" políticos e uma visibilidade pública que nunca teve no passado.
O regresso a Portugal e o socialismoEm 1975, no pico da erupção revolucionária, Hitchens esteve pela primeira vez em Portugal, país a que só agora regressou. Trabalhava na altura para a New Statesman, uma revista da esquerda britânica que, ao que parece, Salazar processou nos anos 60. Veio, como outros correspondentes estrangeiros, fazer a cobertura da Revolução e sentir o "cheiro" dos acontecimentos.
Nesse mesmo ano, acabou também por visitar Évora, de que gostou muito, e nesta segunda visita a Portugal quis lá voltar. Ao meio-dia de sexta-feira, marcamos encontro no Hotel Tivoli, em Lisboa, para irmos directos a Évora. Hitchens surge com um ar cansado. Confessa que não dormiu na noite anterior. Pede um cigarro e não pára de fumar durante toda a viagem.
A nossa conversa inicia-se pela memória que ele tem do 25 de Abril. Hitchens relembra o caso República, "um grande teste para o Partido Socialista", e várias figuras de proa do PS: Mário Soares, que entrevistou, e Jaime Gama, que lhe pareceu dos mais "preparados" e "inteligentes" daquela geração de socialistas. O 25 de Abril português serviu como "vingança para o que aconteceu no Chile com Allende".
Mas foi também o desfecho natural da geração de 1968, que correu para Portugal à espera do milagre que não via nos países do chamado socialismo real.
Com todas as suas óbvias idiossincrasias, Hitchens continua a ser um produto desta geração de 68.
A sua educação política foi marcada por aquele mundo que desabava aos olhos dos jovens politizados dos anos 60. "Naquele tempo, todos os dias iam sucedendo factos novos a que nenhum de nós era indiferente: a guerra contra o Vietname, o movimento pelos direitos civis, o golpe militar de 1967 na Grécia, a Primavera de Praga, o assassinato de Martin Luther King, as Olimpíadas do México, a contestação a De Gaulle", explica.
A maior ambição da geração de 68 consistia em fundar uma nova esquerda. "Lutávamos contra os regimes nos dois lados da fronteira alemã." Porém, 1968 falhou no seu principal objectivo. Nesse ano Hitchens estava em Cuba, confiante de que a revolução poderia ser um momento novo. Quando Fidel Castro discursa a favor dos tanques soviéticos em Praga, o jovem Hitchens tem o seu primeiro momento de desilusão. Por isso diz hoje: "1968 não foi o princípio, mas o fim do socialismo. A última vez que pudemos pensar em algo que pudesse ser uma revolução marxista. Esse período vai até à Revolução portuguesa e vai depois até 1989. De certa maneira, 68 acaba em 1974, em Portugal." Hitchens foi marxista, socialista e trotskista. Hoje reconhece que perdeu qualquer um desses alinhamentos. "Não me considero mais um socialista. Não tenho filiações políticas." Acrescenta que ainda pensa "como um marxista" e que "muitas das coisas que aconteceram ao capitalismo nos últimos anos remetem para coisas que Marx escreveu". Mas, como "método prescritivo", o marxismo já não é utilizável. "Perdi a visão teleológica da História", admite. A distinção entre esquerda e direita também deixou de ser útil.
"Um teste simples para se entender a divisão era este: aqueles que defendessem formas de socialização da propriedade pertenciam à esquerda. Agora, ninguém acredita verdadeiramente nisso. O bem-estar social é defendido por pessoas muito diferentes politicamente." As velhas preocupações da economia política a socialização da propriedade, a redistribuição estatal do rendimento já não o mobilizam.
Do seu tempo como socialista, Hitchens conserva o internacionalismo que o fez apoiar a intervenção militar de George W. Bush no Iraque, para repúdio de muitos dos seus antigos compagnons da esquerda que viram na guerra motivações imperialistas. O fenómeno não é, aliás, exclusivo de Hitchens, uma vez que muitos outros membros da geração de 68 aderiram à intervenção para libertar os iraquianos de Saddam Hussein.
Hoje as suas convicções encontramse na luta pela expansão dos direitos humanos e da secularização, sobretudo dentro do mundo árabe, contra o totalitarismo assente no culto da religião.
Hitchens identifica um conjunto de posições que a esquerda deveria ter assumido com clareza nos últimos 20 anos: festejar a queda do Muro de Berlim, apoiar os manifestantes de Tiananmen, defender Salman Rushdie da fatwa, combater Milosevic e proteger a Bósnia.
O seu percurso tem afinidades com outros intelectuais e activistas da geração que viveu 68. Hitchens identifica hoje sinais de uma "esquerda reaccionária", em especial na transigência com os totalitarismos fora do mundo ocidental. A guerra na antiga Jugoslávia e a indecisão europeia na defesa da Bósnia foram para ele o primeiro indício do aparecimento desta esquerda ausente e retrógrada. Por essa esquerda, diz Hitchens, Milosevic ainda ocuparia o poder e a limpeza étnica na Bósnia teria sido levada a cabo sem oposição.
Em defesa da invasão do IraqueEm 2003, imediatamente após a tomada de Bagdad pelo Exército americano, Hitchens publicou um pequeno livro: A long short war, recolhendo os artigos que escreveu durante a intervenção. Ao contrário de muita gente à direita, ele não defendeu a guerra no Iraque baseando-se na existência das armas de destruição maciça. Admite que o caso da guerra foi defendido e apresentado de forma desonesta pelos governos. Mas o seu argumento de fundo assentou na necessidade de mudar o regime político, afastar Saddam e preparar o caminho para a transformação política do Iraque.
Estes argumentos aproximaram-no do grupo dos neoconservadores (grupo que sempre achou "sobrevalorizado") que floresceu em torno do subsecretário da Defesa de Bush, Paul Wolfowitz.
Hitchens, de resto, não rejeita que essa aproximação existiu. Mas continua a recusar ser visto como conservador e mais ainda como "neo" de qualquer tipo.
Hoje mantém integralmente as razões que o fizeram apoiar a guerra. A intervenção criou uma dinâmica secularista que já é visível no Médio Oriente. Sobre o Iraque de hoje, reconhece que a situação se tem pacificado mais. Os radicais estão mais isolados e, apesar das incertezas que rodeiam as próximas eleições, parece-lhe cada vez mais seguro de que são os iraquianos que irão rejeitar ser manietados pela Al-Qaeda e pelos extremistas religiosos.
A última vez que o crítico e colunista esteve no Iraque foi há dois anos, mas o seu contacto com as forças democráticas do país é permanente. Fala regularmente com os seus amigos e activistas iraquianos, recebe-os na sua casa em Washington. Não por acaso, Hitchens afirma que "a secularização do Iraque será a coisa mais importante à qual estive ligado".
Obama e o IrãoPergunto-lhe sobre o Irão. Ele diz-me que precisamos olhar para a questão do Irão destacando dois aspectos diferentes. "Temos, por um lado, um regime que está a adquirir armas nucleares e que engana toda a comunidade internacional sobre a forma como o tem vindo a fazer em breve veremos o que isso significa. Por outro, vemos o aparecimento de uma opinião pública, sobretudo mais jovem, crescentemente antiteocrática e mais próxima dos Estados Unidos." Será correcta a estratégia de suavização diplomática de Obama? "Não é fácil saber o que é que ele pensa", diz Hitchens.
"Ele acha que o nosso problema com o Irão assenta num equívoco cultural. Não é. É uma divergência radical." O que Obama tem de reforçar é a "sincronização das suas políticas com a oposição interna".
E dá o seguinte exemplo: "O Irão corre o risco de sofrer, a qualquer momento, um tremor de terra de grandes proporções, sem que as suas populações estejam protegidas.
As autoridades iranianas estão indiferentes a estes avisos. Os Estados Unidos deveriam suscitar esta questão perante as Nações Unidas." Hitchens sublinha que os iranianos não querem uma guerra contra o Ocidente. E, se quiserem, irão "certamente perdê-la". E depois acrescenta, no seu tom provocatório. "Mas é claro que ninguém quer que isto aconteça. Excepto talvez eu."
Um acto de generosidadePerto das 2h chegamos finalmente a Évora. Elogia a Praça do Giraldo, um dos centros da malha histórica. Não se lembra de quase nada da cidade, tirando o Templo de Diana, por causa, diz ele, de algumas reuniões do Movimento das Forças Armadas (MFA).
Entramos no restaurante para almoçar. Imediatamente, Hitchens pede um whisky. Como ele escreve na introdução ao livro de Kingsley Amis Everyday drinking, beber é "um acto de generosidade" sem o qual não há conversação possível, porque a conversa exige generosidade recíproca. Beber e fumar.
Hitchens passou os anos 90 a escrever crónicas devastadoras sobre a hipocrisia de algumas das sonantes figuras públicas dessa década. O seu livro sobre Madre Teresa de Calcutá, que classifica como "a amiga da pobreza e não dos pobres", brilhantemente intitulado The Missionary Position, esteve para se chamar The sacred cow.
Dedicou livros a Henry Kissinger, o mais influente estratego da política externa norte-americana dos anos 70, e o Presidente Bill Clinton.
Quis demonstrar que Kissinger deveria ter sido acusado como "criminoso de guerra", devido ao bombardeamento ilegal do Camboja e à queda de Allende no Chile.
E quanto a Clinton, é impossível mencionar o tema sem que Hitchens adquira de rompante um tom de reprovação e nojo. No livro em que denuncia as "triangulações" e o inesgotável jogo de "mentiras" do ex-Presidente americano, pintou-o como um mentiroso sádico e compulsivo e um criminoso de guerra (pelo bombardeamento no Sudão, apenas para subir nas sondagens). Não obteve resposta. "A Madre Teresa afirmou que me perdoava.
Clinton, apesar de eu o acusar três vezes de ter violado mulheres, nunca disse nada", conta. O seu desprezo pelos Clinton está vertido para muitas colunas desse período.
Recentemente, por causa da candidatura de Hillary nas primárias do partido democrata, Hitchens expeliu mais uma vez a sua aversão ao casal. Um novo livro sobre o último processo eleitoral, Game Change, parece demonstrar o modo como os Clinton tentaram lançar ataques explicitamente racistas contra Obama.
Um dos traços "conservadores" do pensamento de Hitchens está nesta preocupação insistente com o carácter das figuras políticas. O exemplo de Richard Nixon: apesar de psicopata perigoso, Nixon foi também um Presidente que lançou algumas políticas progressistas no domínio da saúde. Deveremos valorizar apenas este último aspecto? A importância do carácter está na sua permanência, argumenta. "Os políticos podem mudar de políticas de saúde, mas não o facto de serem psicopatas." As entradas alentejanas estendem-se em cima da mesa. Hitchens vai hesitando a cada prato. Quando o empregado ameaça remover alguns, pede que não o faça. Comenta que tudo o que está à sua frente "é uma grande combinação antijudaica porque tem demasiadas proibições". Durante todo o almoço é sempre o mesmo conversador torrencial.
A discussão funciona para ele como um desporto mental e um manual de sobrevivência. Ouvilo e interpelá-lo é ficar sujeito em permanência ao bombardeio dos seus argumentos e provocações.
Alguém menciona a princesa Diana e ele recorda um episódio passado numa festa da Vanitiy Fair. Um amigo que estava sentado ao jantar na mesma mesa de Diana suplica a Hitchens que se junte a eles porque a princesa não dizia nada de jeito e o momento estava a ser penoso. Hitchens acede e confirma o enorme desinteresse que ela suscita.
Depois dá os parabéns a Diana, dizendo-lhe: "Você fez mais pela abolição da monarquia do que eu em décadas a escrever contra ela." A resposta dela foi uma gargalhada cínica e sonora.
Os políticos e a mentiraHitchens votou em Obama nas últimas eleições. Diz que está longe de ser um obamista, mas acaba por revelar que "aceitaria ser seu porta-voz".
Dependendo do que pagassem, bem entendido, e desde que não fosse obrigado a mentir. Lembra-se do porta-voz de Bill Clinton, George Stephanopolous, que muitas vezes mentia para proteger Bill Clinton no processo de impeachment, sem saber que mentia. "A mentira é inevitável na política. Mas quando os políticos mentem, precisam de envolver todo o seu gabinete." (Para Portugal, o comentário vem mesmo a propósito.) Caminhamos da Praça do Teatro Garcia de Resende em direcção à Sé e ao Templo de Diana. Évora é uma cidade religiosa, que deve o seu "desenvolvimento" ao empenhamento de religiosos.
Pergunto a Hitchens se, no seu ateísmo, ele não vê nada de positivo na religião. Lembro-me de Tocqueville, por exemplo, que elogiava as virtudes sociais da religião. Hitchens responde que sim. Sempre que alguém consegue um prémio ou uma glória, a religião produz uma espécie de efeito de desprendimento e modéstia perante o seu próprio feito. "É como dizer que o crédito do que se fez não me cabe a mim mas a Deus. Tem de haver uma maneira de uma pessoa evitar a auto-glorificação. Os gregos tinham essa modéstia. Se não existisse religião, precisaríamos de alguma coisa semelhante." Junto ao Templo de Diana, Hitchens observa a planície.
Entramos de passagem no museu mesmo ali ao pé e instala-se uma certa informalidade na nossa conversa. Por fim dirigimo-nos para a Capela dos Ossos, que o deixa curioso e intrigado, apesar de fechada. Faz perguntas enquanto dois adolescentes brincam com skates à sua frente. Subitamente circunspecto, aponta-lhes o dedo e diz: "Não gosto disto." "Lei e ordem?", pergunto. "Não é lei e ordem. Não sei bem o que é. Não gosto. Talvez decoro."
A arte da transparência
São seis horas. Regresso a Lisboa. No caminho, Hitchens é entrevistado ao telefone. Os temas do costume: Deus, religião, ateísmo. Imparável, discute, provoca, ironiza. À chegada ainda temos tempo para uma última bebida no hotel. Sabendo que ele é provavelmente o mais importante jornalista inglês depois de George Orwell, não resisto a uma confissão: "Recordarei esta tarde muito vivamente", digo. Hitchens agradece a atenção que tenho dedicado aos seus livros e percebo que fica sinceramente reconhecido com o interesse que provoca em quem o lê. Numa coluna recente, escreveu sobre o caso de um jovem militar americano que perdeu a vida no Iraque e cujos pais lhe explicaram por carta que o filho tinha decidido alistar-se por causa dos seus textos.
A história muda-lhe o rosto, como se sentisse a terrível responsabilidade de ter influenciado um jovem que acabou por morrer.
Escrever uma coluna é frequentemente exercer a arte da pose. Só em casos mais raros, como o de Christopher Hitchens, se torna em algo superior: a arte da transparência.