We Trust: todo o tempo do mundo
As indicações do Google Maps não serviram de muito. Sabíamos que o estúdio Meifumado ficava em Mouquim, uma minúscula freguesia de Famalicão. Mas não mais do que isso e a sucessão de curvas, contracurvas, curvinhas, contracurvinhas e pequenas estradas não nos ajudou. Às tantas, lá cedemos e pegámos no telefone: "André, precisamos de ajuda".
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As indicações do Google Maps não serviram de muito. Sabíamos que o estúdio Meifumado ficava em Mouquim, uma minúscula freguesia de Famalicão. Mas não mais do que isso e a sucessão de curvas, contracurvas, curvinhas, contracurvinhas e pequenas estradas não nos ajudou. Às tantas, lá cedemos e pegámos no telefone: "André, precisamos de ajuda".
André é André Tentugal, rapaz do Porto que ainda não tinha lançado o seu primeiro álbum e já dava que falar por culpa de uma viciante canção, "Time (Better Not Stop)". Mas já lá vamos. Antes disso, situemo-nos: chegamos, finalmente, ao estúdio onde André cozinhou durante um longo período "These New Countries", sob o nome We Trust.
Cenário de sonho: o estúdio é uma ínfima parte de um enorme espaço onde cabem mato, casa, campo de ténis, canas de bambu e um cão feliz da vida, com milhares de metros quadrados para vaguear à vontade. Estamos a cem metros de uma estrada nacional (informação que o Google Maps, matreiramente, nos sonegou), mas não se ouve vivalma. "É especial saíres do trabalho e vires para o meio do nada, sem rede no telefone. Estás concentrado no que estás a fazer. É tipo casa de férias", conta André. Durante três meses, este foi o ritual diário dele e dos músicos que o ajudaram a pôr em disco a ideia de pop que ia no seu cérebro há muito tempo (gosta da pop expansiva dos Stereolab e dos Air, mas também das canções de carpir de Nick Drake e das múltiplas faces de Sufjan Stevens).
André, que fora sempre o tipo que tocava nos projectos dos outros, não conseguia "escrever canções". Era o tipo que "executava". "Quando dava um acorde na guitarra lembrava-me logo de uma música com a qual tinha aprendido a tocar. Mas houve um clique, há quatro ou cinco anos, que mudou tudo, do oito para o 80. Comecei a criar melodias minhas", recorda. Como ouvinte compulsivo de pop, foram "melodias simples e bastante directas" que lhe ocorreram. "Muitas surgiram-me no trânsito. Vinha-me uma melodia à cabeça e eu gravava com o iPhone. Surgiam-me palavras, refrões, como o ‘better not stop' [de ‘Time']", recorda (bendito trânsito por tão bendito refrão).
Em casa, no Porto, pela madrugada dentro, começou a gravar maquetes, ainda sem pensar num disco. Mantinha este passatempo a par do seu trabalho em cinema e vídeo (é autor de vários telediscos, dos Mind Da Gap aos Kap Bambino). Das três às sete da manhã ficava a compor, depois dormia até à uma. "Costumo trabalhar até às seis da manhã em vídeo, tirei três horas [para criar canções]. Não funciono de manhã. À noite, não tenho de atender telefones, não há Facebook, estou sossegado. Uma noite de trabalho rende-me mais do que dois dias com manhãs", descreve.
As maquetes que saíram dessas noites solitárias, nas quais André tocava todos os instrumentos, chegaram aos ouvidos de Zé Nando Pimenta, dono do estúdio e da editora Meifumado. "As tuas ‘demos' estão incríveis", disse-lhe o também músico (Type, Zany Dislexic Band). "Ou melhoramos o som disto ou então gravamos mesmo a sério e fazemos um disco à moda antiga". André não hesitou.
Sem pressasQuis fazer tudo "à antiga". Chamou mais de uma dezena de músicos (que trouxeram trompetes, guitarras, "samples"), entre os quais Fernando Sousa, dos X-Wife, Rui Maia, também dos X-Wife e autor de música de dança cósmica em nome próprio, e Graciela Coelho, a voz dos Dear Telephone. Depois de nove meses de trabalho, meteram-se no Meifumado, onde passaram mais três meses, num aturado apuro perfeccionista (quando o Ípsilon conversou com André, em Outubro, ainda havia coisas a polir).
A reclusão funcionou. Sair de casa ajudou a criar um quadro mental criativo. "As pessoas já vinham imbuídas desse espírito", confirma. A experiência de realizador é capaz de ter ajudado, reconhece. "Há duas características que trouxe da realização. Uma é a visão global do projecto: embora cada pessoa tenha a sua especialidade, é bom que haja alguém que monte o ‘puzzle'; outra é o lugar visual que cada música tem. Se te sentares numa sala escura vais perceber que cada música tem um lugar visual. Foi isso que me levou ao título ‘These New Countries'. Cada música tem um sítio, pode ser a cena de um filme".
Em Abril, quando ainda estava longe de ter o álbum pronto, André decidiu oferecer um "cartão-de-visita" aos fãs. Libertou uma canção para a Net e para as rádios, a que juntou um teledisco do sueco Rickard Bengtsson, elogiado em todo o lado. Era, claro, "Time (Better Not Stop)".
O até então quase secreto projecto We Trust tornava-se (atenção, vem aí palavra da moda) viral: foi incluído na "playlist" oficial do "site" da Hugo Boss; a americana Anticon, editora muito respeitável, pediu a Tentugal que mostrasse mais canções; gente de 70 países, da Índia à Arábia Saudita, fazia "replay" no vídeo insistentemente; a cadeia de moda Acne, aconselhada por Jay-Jay Johanson, passou a canção nas lojas.
Suprema ironia: "Era uma música que nem sequer ia gravar. Vim para o estúdio com 16 músicas, seleccionámos 14 e a ‘Time' era uma das que iam sair". André percebeu o apelo da canção depois de deixar a secção de sopros improvisar (eleva esta pérola pop a píncaros de felicidade). "É bom quando fazes as coisas com tempo: tens calma para os teus instintos. Naquele momento senti: esta música tem alguma coisa de especial".
O estrondo foi tanto que "criou uma certa pressão". Mas Tentugal continuou a fazer o álbum "sem pressas". "Só para gravar as baterias foram 20 dias. É de loucos". Mas este disco à antiga tem outras particularidades: foi inteiramente gravado em fita analógica e sem grandes truques de estúdio ("O Zé Nando é um purista").
Depois de toda esta saga, Tentugal só quer ver o povo a apreciar as canções ao vivo. "Sabia que tinha de chegar ao fim e a música ser quase um entretenimento. Quis fazer um disco que eu próprio pudesse ouvir e curtir. Às vezes, vou no carro e apetece-me ouvir We Trust."