Trazer o corpo para a luta
O Piauí fica no Nordeste do Brasil. Não há mar, nem muito turismo, é uma região pobre, de pasto, sem grandes recursos, feita de e por resistentes com uma história terrível que se cruza com a história da construção do próprio Brasil. É lá que vivem "aqueles que não têm rosto", uma população que perdeu as suas raízes índias, ao ser dizimada pelos oficiais durante a insurreição popular que teve na Baía o seu epicentro. Com ela desapareceram as ligações à terra que mostravam de que matéria era feita o cabouclo, esse homem surgido do encontro entre o índio e o africano. "É uma terra selvagem", diz Marcelo Evelin, o coreógrafo que entre o seu Brasil ancestral e a Europa pós-colonial criou Matadouro, que hoje e amanhã se apresenta no Maria Matos, em Lisboa.
Matadouro conclui a trilogia que Evelin construiu a partir da leitura de Os Sertões, livro fundamental de Euclides da Cunha. Iniciada em 2003 com Sertão e continuada depois, em 2006, com Bull Dancing, segue as três partes dessa obra - terra, homem, luta - para falar da "luta entre o oficial e o não oficial", dos conflitos entre "o que é organizado e o que ainda é selvagem", "entre a história e a memória".
Matadouro, diz-nos o coreógrafo, emocionado por se apresentar em Portugal, é uma "luta contra o corpo", que se estabelece entre "o capitalismo e o colonialismo", entre "o virtual e o tradicional", entre "o que é e o que não é".
Evelin fala de um bando, de um sistema e de um círculo. Diz que serão esses princípios, "muito simples, quase minimais", que problematizam a ideia de ritual e alimentam a condição mística que a peça pode conter. A ele interessa-lhe "a resistência", "a energia", "a hipnose". "Há quem veja na peça um lado arcaico" e, nele, como que numa leitura histórica e política, a saída dos índios da Amazónia. Não será por acaso. A imagem inicial, onde se constituiu o que o coreógrafo apelida de "pelotão de fuzilamento", vai pontuando a partitura de Schubert com o ritmo da percussão. Os corpos nus dos bailarinos são, no modo despojado como se apresentam, corpos que carregam uma carga ritualista e um desejo de resistência que, ao longo da coreografia, vão traduzindo, por uma resiliência, uma energia e um desejo de evasão hipnótico.
Evelin fala de "trazer o corpo para a luta", fazendo ecoar a frase de Pier Paolo Pasolini sobre a implicação do corpo na construção de uma memória. E do modo como os bailarinos criam, através do cansaço evidente dos corpos, da sua profunda exaustão, do abandono da racionalidade, "um estado de excepção" onde confluem poder, política e intuição. E silêncio, feito por corpos que não cessam de se bater por um ideal.
O coreógrafo conversa com o público domingo às 18h30
Notícia corrigida no dia 6/12 às 12h28
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O Piauí fica no Nordeste do Brasil. Não há mar, nem muito turismo, é uma região pobre, de pasto, sem grandes recursos, feita de e por resistentes com uma história terrível que se cruza com a história da construção do próprio Brasil. É lá que vivem "aqueles que não têm rosto", uma população que perdeu as suas raízes índias, ao ser dizimada pelos oficiais durante a insurreição popular que teve na Baía o seu epicentro. Com ela desapareceram as ligações à terra que mostravam de que matéria era feita o cabouclo, esse homem surgido do encontro entre o índio e o africano. "É uma terra selvagem", diz Marcelo Evelin, o coreógrafo que entre o seu Brasil ancestral e a Europa pós-colonial criou Matadouro, que hoje e amanhã se apresenta no Maria Matos, em Lisboa.
Matadouro conclui a trilogia que Evelin construiu a partir da leitura de Os Sertões, livro fundamental de Euclides da Cunha. Iniciada em 2003 com Sertão e continuada depois, em 2006, com Bull Dancing, segue as três partes dessa obra - terra, homem, luta - para falar da "luta entre o oficial e o não oficial", dos conflitos entre "o que é organizado e o que ainda é selvagem", "entre a história e a memória".
Matadouro, diz-nos o coreógrafo, emocionado por se apresentar em Portugal, é uma "luta contra o corpo", que se estabelece entre "o capitalismo e o colonialismo", entre "o virtual e o tradicional", entre "o que é e o que não é".
Evelin fala de um bando, de um sistema e de um círculo. Diz que serão esses princípios, "muito simples, quase minimais", que problematizam a ideia de ritual e alimentam a condição mística que a peça pode conter. A ele interessa-lhe "a resistência", "a energia", "a hipnose". "Há quem veja na peça um lado arcaico" e, nele, como que numa leitura histórica e política, a saída dos índios da Amazónia. Não será por acaso. A imagem inicial, onde se constituiu o que o coreógrafo apelida de "pelotão de fuzilamento", vai pontuando a partitura de Schubert com o ritmo da percussão. Os corpos nus dos bailarinos são, no modo despojado como se apresentam, corpos que carregam uma carga ritualista e um desejo de resistência que, ao longo da coreografia, vão traduzindo, por uma resiliência, uma energia e um desejo de evasão hipnótico.
Evelin fala de "trazer o corpo para a luta", fazendo ecoar a frase de Pier Paolo Pasolini sobre a implicação do corpo na construção de uma memória. E do modo como os bailarinos criam, através do cansaço evidente dos corpos, da sua profunda exaustão, do abandono da racionalidade, "um estado de excepção" onde confluem poder, política e intuição. E silêncio, feito por corpos que não cessam de se bater por um ideal.
O coreógrafo conversa com o público domingo às 18h30
Notícia corrigida no dia 6/12 às 12h28