E nós, portugueses, pimba!
Com a revisitação transmontana a que deu o nome de “Corvo” (2008), Rui Lage colocou-se numa posição excepcional na poesia portuguesa contemporânea: uma posição “republicana”, sem contudo ceder aos apelos opostos do verso oratório ou das micropolíticas identitárias. E conseguindo fazê-lo sem abandonar um quadro moderno, ou não reivindicasse o pássaro de Poe, abandonando contudo o anti-humanismo constitutivo da tradição mais áspera (que é também a tradição maior) desse quadro moderno. Lage está interessado numa prática de que a poesia moderna foi abdicando: a de um endereçamento colectivo e de uma interrogação das “palavras da tribo”, sim, mas também da situação histórica em que elas ocorrem. Em “Corvo”, a tribo transmontana era revisitada em modo elegíaco, ou não se tivesse ela reconvertido a um modo litorâneo e surfista de viver, com uma banda sonora, proposta em P.S. ao livro, recolhida na “pop alternativa”, de matriz anglo-americana. Um arraial português propõe, deste o título, um mergulho nessa figura da retórica antropológica, sociológica e política a que damos o nome de “Portugal profundo”. A banda sonora é agora nacional mas dir-se-ia menos portuguesa do que tuga e, para piorar as coisas, genuinamente... pimba. Lage informa-nos, aliás, de que os títulos são quase todos “homónimos de títulos extraídos de canções da música ligeira portuguesa”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Com a revisitação transmontana a que deu o nome de “Corvo” (2008), Rui Lage colocou-se numa posição excepcional na poesia portuguesa contemporânea: uma posição “republicana”, sem contudo ceder aos apelos opostos do verso oratório ou das micropolíticas identitárias. E conseguindo fazê-lo sem abandonar um quadro moderno, ou não reivindicasse o pássaro de Poe, abandonando contudo o anti-humanismo constitutivo da tradição mais áspera (que é também a tradição maior) desse quadro moderno. Lage está interessado numa prática de que a poesia moderna foi abdicando: a de um endereçamento colectivo e de uma interrogação das “palavras da tribo”, sim, mas também da situação histórica em que elas ocorrem. Em “Corvo”, a tribo transmontana era revisitada em modo elegíaco, ou não se tivesse ela reconvertido a um modo litorâneo e surfista de viver, com uma banda sonora, proposta em P.S. ao livro, recolhida na “pop alternativa”, de matriz anglo-americana. Um arraial português propõe, deste o título, um mergulho nessa figura da retórica antropológica, sociológica e política a que damos o nome de “Portugal profundo”. A banda sonora é agora nacional mas dir-se-ia menos portuguesa do que tuga e, para piorar as coisas, genuinamente... pimba. Lage informa-nos, aliás, de que os títulos são quase todos “homónimos de títulos extraídos de canções da música ligeira portuguesa”.
É aliás difícil ler este livro sem nos lembrarmos de uma recente obra maior da interrogação da tribo: “A Rua da Estrada”, de Álvaro Domingues (2009), toda ela empenhada na redescrição, em registo fotográfico hiper-realista com legendas, de um país que já não cabe na dicotomia cidade-campo e se derrama, ao longo de estradas-ruas, numa reinvenção selvagem quer da “arquitectura tradicional” quer do “International Style”: a vida portuguesa em modo de usar, digamos. Ou, se se preferir: o Portugal profundo todo na beira da estrada.
As fotos dessa versão do arraial português em Domingues são em Lage substituídas por música descritiva e por uma poesia com programa, desde o primeiro poema, “Ultimato”: “O país dança? Pois dance agora / ou cale-se para sempre”. Quase no fim do livro, o poeta confessará: “nunca cheguei a partir / deste arraial português” (“Comment ça va”). O pimba, na sua viscosidade sociológica, argumenta o contrato referencial que esta poesia pratica: “(como ir embora deste poema / sem me pôr fora da vida / a que o poema / se agarra?)” (“Quando à noitinha nada apareceu”). O poema estaria para a praça (o espaço público) como o pimba está para o arraial: por um acordo inscrito no corpo de quem dança uma música cuja genealogia é aqui provocatoriamente sabotada, na medida em que se reivindica o popular “inventado” da “Procissão” de Lopes Ribeiro/Villaret para título de poemas e secções do livro. O pimba responderia aos dias de hoje como “Procissão” ou “a aldeia mais portuguesa de Portugal” respondiam pelo “Portugal profundo” na versão do Estado Novo. “O reboco descola / da paisagem aturdida” (p. 25), afirma-se a meio do livro. Desconfiamos que cada geração se esforça por colá-lo à paisagem que imagina, tal como o emigrante que, sonhando todo o ano o regresso estival, sabe: “Inteiro jamais voltarás” (p. 31). A “paisagem aturdida” é restituída por versos como “Virás de bólide quitado / debitando música pneumática / no largo da capela” (p. 32); ou, e está em pauta a “emancipação feminina”: “Fechadas em casas de banho / dedilham telemóveis / com destreza de pianistas. // Em vez de flores no cabelo, / auriculares” (p. 26); ou ainda, e de novo sobre “felinas raparigas”, de “Calças justas, umbigo à mostra / frívolo sorriso, / piercing no ouvido. // Sem cobertura de rede” (“Aperta com ela”).
É este mundo sem rede nem cobertura de uma cultura ou uma moral “institucional” (familiar, burguesa ou escolarmente transmitida), antes inorganicamente produzida por uma modernização drástica e sem retorno, que Lage explora num verso clínico, mas nunca cínico, contido e “hipocrático” o bastante para não alimentar ilusões ou nostalgias pelo “genuíno” da procissão d''antanho ou empatias paternalistas pelo contemporâneo pimba. A “música descritiva” destes versos não deixa de ser aliás filtrada por toda uma tradição que o poeta culto, que Lage é, vai invocando: Cesário Verde e a merenda popular (“E não te é dada permissão / Para vestires blusa mais fresca, / não venha teu seio chamar-se / um figo sobre a mesa”, p. 27); Torga e um mundo e uma sexualidade naturalistas (“e em seus tempos / de ladino soube galar ao som / de rabeca e sanfona / e timorato rebolou pelas encostas / com moças no cio”, p. 43); John Donne e a intimidade sexual em versão de “dueto / de piolho e percevejo” (p. 54); Joaquim Manuel Magalhães e o desamparo do jovem rural: “Por cigarros vieste, os olhos / deitas em roda desarmados, / e dali disparas, metendo / pelo trilho que à treva desce” (p. 30); e reescritas várias, e variamente paródicas, da épica, a de Camões ou a do coitado Lusíada de Nobre, ou da poesia medieval e cortês, em poemas como “Um arraial português” ou “A musa do baile”. E, por sobre toda esta série de descrições, o canto de João Aguardela, figura que poderia ser o “corvo” deste livro, pairante e ressoante como a má-consciência do arraial luso (ou melhor: da representação “urbana” dele). A elegia que lhe é dedicada no fecho do livro, e que abre num elogio da hibridização - “Aboios a toque de sampler e flauta midi” -, termina em plena treva: “Agora quem fica para escutar / esse país sitiado? / E quem fica para tocá-lo? // Que escuridão esta, Senhor.” Mas o livro não termina aí, já que convoca em epígrafe final um pimba medieval, Pero Garcia Burgalês, para nos assegurar a ressurreição deste cantor e deste arraial português: “feze-s'' el em seus cantares morrer,/ mas ressurgiu depois, ao tercer dia”. Assim seja.