Sem ironia, sem escândalo
Este título é uma mentira, uma blague com outras que participaram na construção da obra e da persona de Andy Warhol: o seu proclamado sucesso como artista plástico na década de 1950 ou, aquando da sua estreia no circuito galerístico de Nova Iorque, a revindicação de um auto-didactismo que nunca existira. Como lembra Benjamin H. D. Buchloh em “Andy Warhol''s One Dimensional Art: 1956-1966” (artigo publicado na antologia “October Files”, dedicada ao artista) não era uma estratégia inédita. Outros (Duchamp ou Baudelaire) já a haviam utilizado para chocar a burguesia ou meio da arte dominante.
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Este título é uma mentira, uma blague com outras que participaram na construção da obra e da persona de Andy Warhol: o seu proclamado sucesso como artista plástico na década de 1950 ou, aquando da sua estreia no circuito galerístico de Nova Iorque, a revindicação de um auto-didactismo que nunca existira. Como lembra Benjamin H. D. Buchloh em “Andy Warhol''s One Dimensional Art: 1956-1966” (artigo publicado na antologia “October Files”, dedicada ao artista) não era uma estratégia inédita. Outros (Duchamp ou Baudelaire) já a haviam utilizado para chocar a burguesia ou meio da arte dominante.
Portanto, e embora a blague careça hoje da mesma força, “A Filosofia de Andy Warhol - De A a B e de volta a A” não é filosofia. Lançado em 1975, reúne conversas, aforismos, monólogos que Warhol registou num gravador com a assistência de Brigid Berlin e Bob Coacello (editor da revista “Interview”). Chamemos-lhe pois um livro de (um) artista. Um livro modesto, de uma puerilidade e abandono provocadores, que senta o leitor diante de um legado. À espera de perguntas.
Desenganem-se os bisbilhoteiros, os curiosos. Não abundam situações pitorescas e os retratos dos anos 60 ou 70 e Nova Iorque raramente ultrapassam a observação distanciada e solipsista. Uma excepção: “Nos anos 60 todo o mundo se interessava por todo mundo. Nos anos 70 todo mundo começou a derrubar todo o mundo”, escreve a dada altura no capítulo 1, “Amor (Puberdade)”. E o mundo para Andy Warhol era o da cidade, de Nova Iorque, da tecnologia, da televisão. Do consumo, da mediação das imagens. Mais à frente, no capítulo “Amor (Senilidade)”, depois de confessar que esteve casado com o gravador e que no final dos anos 50 começou um caso com a televisão, chega a uma conclusão aterradora: “A fantasia amorosa é o melhor que o amor real. Nunca fazer amor é muito excitante”. O tom é sempre sincero, educado. Não há ironia ou escândalo. Por exemplo, quando faz o culto do consumo e defende a democracia americana (“Na América é preciso misturar. Se eu fosse presidente, faria as pessoas se misturarem mais. Mas a América é um país livre e eu não conseguiria obrigar que fizessem isso”). Ou, numa passagem premonitória: “Gosto de dinheiro na parede. Digamos que você fosse comprar uma pintura de 200 mil dólares. Acho que você deveria pegar esse dinheiro, amarrar e pendurar na parede. Aí quando alguém visitar você, a primeira coisa que vai ver é dinheiro na parede”.
Sobre o seu processo de trabalho, os melhores momentos são aqueles que aludem à rejeição da originalidade e da autoria (excerto delicioso: “Não consigo entender porque não fui um expressionista abstracto, porque com a minha mão que treme eu teria sido um talento natural”), à necessidade do trabalho em equipa e à colaboração. Em convalescença no hospital, enquanto recupera das balas de Valerie Solanas, dá-se conta que o seu ateliê não esperou pelo seu regresso (continuou a produzir obras) e celebra esse facto.
Mas o fascínio de “A Filosofia de Andy Warhol - De A a B e de volta a A” não se encontra verdadeiramente na variedade de tópicos, e sim na problemática que ecoa ao longo das páginas: a tensão entre arte e a cultura de massas, a (im)possibilidade da experiência estética nas condições sociais impostas pela industrialização cultural. E é nesse plano que podemos convocar dois Warhols. Aquele para quem “ganhar dinheiro é uma arte e trabalhar é arte e bons negócios são a melhor arte”, e aquele que preferia a beleza do feio à monotonia do belo.
No primeiro, esconde-se o antigo designer publicitário que legitimou as críticas de Adorno, ao introduzir a mercadologia na arte (contemporânea), o falso cosmopolita que ansiava por um Mcdonalds na China (a História fez-lhe, entretanto, a vontade). No segundo, revela-se o artista que se emocionava com as coisas e as pessoas (professando por elas o seu afecto), que olhava enternecido para o dormir de uma mulher (como a estilista Taxi, porventura uma inspiração para o filme “Sleep”), que gostava do que ficava de fora (os restos). O cineasta que desafiou os códigos de Hollywood (“Nenhuma pessoa é completamente certa para nenhuma personagem, porque uma personagem é um papel que nunca é real”). Os dois são importantes, talvez inseparáveis. Mas preferimos o segundo, mais “benigno”, que no quotidiano conseguia descobrir vislumbres de eternidade. Queremos acreditar, sem ironia ou escândalo.
“A Filosofia de Andy Warhol - De A a B e de volta a A” é uma edição brasileira (o que nem sempre facilita a leitura) e vende-se exclusivamente na livraria do espaço Carpe Diem.