A História deificá-los-á
O ano passado, quando Os Golpes se encontraram com Rui Pregal da Cunha, antigo vocalista dos Heróis do Mar, para "Vá lá senhora", deu-se um raro caso de justiça: a banda alcançou o seu primeiro êxito nacional e muita juventude foi à descoberta da antiga banda do senhor mais velho que ali dividia o microfone com Manuel Fúria.
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O ano passado, quando Os Golpes se encontraram com Rui Pregal da Cunha, antigo vocalista dos Heróis do Mar, para "Vá lá senhora", deu-se um raro caso de justiça: a banda alcançou o seu primeiro êxito nacional e muita juventude foi à descoberta da antiga banda do senhor mais velho que ali dividia o microfone com Manuel Fúria.
No melhor dos mundos a canção só teria saído este ano, dando assim um laçarote cósmico no calendário - é que os Heróis do Mar comemoram 30 anos desde a estreia, aproveitando a celebração para reeditar a obra acrescida de um DVD com os vídeos e aparições televisivas.
Figuras totémicas da pop portuguesa sofisticada, viveram bem mais de uma década no esquecimento. "Durante anos era como se não tivessem existido. Não pareciam ter deixado marca", diz-nos Rui Pregal da Cunha, reportando-se a essa época em que ainda não havia Golpes ou Lacraus, gente que começou a cantá-los há uma mão cheia de anos, apresentando-os pela primeira vez à geração de miúdos nascidos depois de 1980. Foi um silêncio estranho para uma banda que desde o início dividiu opiniões e que mesmo antes de dar o primeiro concerto foi apelidada de "fascista". Quando, a 25 de Novembro de 1981, o quinteto apresentou o primeiro álbum no Rock Rendez-Vous, em Lisboa, já o caldo tinha sido entornado: uns dias antes o semanário "Se7e" dedicava quatro páginas ao disco de estreia, insinuando que banda e disco eram de extrema-direita.
Jorge Pires, autor do documentário "Brava Dança", que conta a história da banda: "Na altura existia o ‘Sete', que era um jornal de espectáculos mas queria representar a esquerda comunista, que tinha falta de inimigos. E eles [os Heróis do Mar] foram o inimigo de ocasião". Para o cineasta Edgar Pêra, que fazia parte do grupo de amigos da malta dos Heróis, a questão "fascista" foi empolada de propósito: "Foi uma forma fácil que a geração que estava no poder teve de lhes lixar a vida."
"No dia em que o texto saiu", conta Pregal da Cunha, "entrei no restaurante do costume e estava toda a gente a comentar os putos que vestiam de forma militar e cantavam sobre os descobrimentos". Faz uma pausa, ri-se: "E ninguém tinha ouvido o disco".
Jorge Pires recorda o concerto: "Aquilo começava às escuras, com tambores e quando as luzes se acendiam vias gajos com peles, lanças e dança de africano branco". "Quem não conhecesse", acrescenta José Pinheiro, co-autor de "Brava Dança", "podia pensar que era uma coisa militarista".
A banda nunca se deu ao trabalho de negar o que quer que fosse. "Explicar para quê?", pergunta Pregal da Cunha. Limitaram-se a publicar no "Se7e" uma foto do concerto, da autoria de Paulo Nozolino, em que se via o braço de Pregal da Cunha a apanhar uma coroa de flores e a legenda "A História nos absolverá". Era uma frase do Fidel Castro.
A História absolveu, mas não de imediato. Menos de um ano depois, antes da gravação de um programa de televisão, o produtor do programa foi aos camarins. Pregal da Cunha: "Vinha perguntar-nos se íamos usar braçadeiras com suásticas. Explicámos que não tínhamos nada com suásticas. A seguir perguntou se íamos usar bandeiras com suásticas. Explicámos que não tínhamos bandeiras com suásticas. Parecia um ‘sketch' dos Monty Python".
Mas que havia ali que pudesse levar alguém a falar em fascismo?
"O Estado Novo usava a Cruz de Cristo, embora ela fosse anterior ao fascismo. E eles [Heróis do Mar] pegaram nisso, com a consciência da provocação", conta Edgar Pêra. O problema é que, diz Rui Pregal da Cunha, "Portugal não conhecia a linguagem pop".
A questão fascista saltou barricadas e não só fez aumentar os inimigos dos Heróis como lhes trouxe os mais improváveis apaniguados: os próprios fascistas. Júlio Isidro recorda: "Antes de irem à TV eles estrearam-se na rádio, na Febre de Sábado de Manhã. Houve manifestações à porta da que iam para além do mero nacionalismo. Imensa juventude a saudá-los de braço estendido. Tive de ir acalmar os ânimos".
Da noite para o dia os Heróis tornaram-se fascistas para uns e vanguardistas para outros. Menos de um ano mais tarde tornar-se-iam estrelas para uns e vendidos para outros, graças a um hábito que nunca mais abandonariam: lançar, entre cada disco, singles destinados a serem êxitos dançáveis. Em 1982 a primeira tentativa foi "Amor", tema excepcional que foi ouvido da Galiza a Marraquexe, de Macau a Peniche. Deixou estupefactas as pessoas e tornou-se nacional graças às aparições em programas como o Passeio dos Alegres, que Isidro apresentava nas tardes de sábado e que tinha a particularidade de "juntar o José Cardoso Pires, uma companhia chinesa a fazer bailado e a seguir a Lena D'Água": "As pessoas podiam vomitar depois. Mas antes ouviam".
Como é possível que o mesmo conjunto de cinco pessoas consiga criar tamanho maremoto, ser em meio ano vanguarda, fascista, iconoclasta, infantil, produtor de êxitos, vendido, exportador e depois consensual ao ponto de haver muitas mães e avós que eram fãs?
A épocaA resposta é: a época. É a época que explica a noção de espectáculo que os Heróis criaram, que explica a reacção de alguma esquerda, que explica que o povo da província tenha aceite os Heróis do Mar porque, lembra Pêra, "as pessoas desses sítios sabiam que aquilo era um espectáculo e aceitavam. Não sentiam carga ideológica".
Como é que os cinco Heróis do Mar viveram a época? Pêra recorda que gostavam de música de dança. "Todos iam dançar todas as noites. Isso era visto como uma militância". Mas dançar não era a coisa que é hoje. Não havia seis mil bares à escolha, DJs de tecno e de hip-hop e de rock. Eram sempre as mesmas pessoas, saltando de um sítio para o outro. Pêra: "Era um grupo pequeno. O movimento new wave começou no Yes, passou pelo Trump's e depois foi para o Bairro Alto. O ambiente ainda era muito dominado pelo machismo setentista. Nos concertos era só homens".
Os detalhes são tão caricaturais que hoje nos parecem risíveis. "Como era complicado arranjar discos, levavam-se discos debaixo do braço, para emprestar ao DJ", começa Pregal da Cunha. "Acontecia tocarem Kraftwerk e Wailers ao mesmo tempo e nós em comunhão por estarmos a celebrar aquela mistura".
O farol que permitia encontrar almas gémeas era a roupa. "Era a forma de identificarmos quem ouvia coisas diferentes, quem dançava. É uma coisa do corpo e como animais precisamos do corpo. E ao mesmo tempo este era um país em que vestiam todos de igual".
As vicissitudes da época implicavam o trabalho em comunidade, acrescenta José Pinheiro. "Por razões económicas tinhas de encontrar pessoas. Se querias fazer surf compravas uma prancha a quatro. Se querias fazer skate juntavas-te e fazias uma rampa com os outros". E se alguém quisesse mostrar cosmopolitismo na escola levava "o seu dossier com os recortes das bandas dentro de um saco do ‘freeshop' - era sinal de que alguém na família tinha viajado".
Pelas descrições soa a um país com pouca sofisticação, muita ingenuidade, muita indignação. E musicalmente? Não havia discos de Springsteen. O disco dos Sex Pistols chegou mais tarde. "Com a democracia galgámos quilómetros", diz Pregal da Cunha. "Fomos para trás viver os anos 1960 e 1970, com o canto de intervenção e as camisas de flanela. E isso já não nos interessava, já não nos dizia nada".
Esse não dizer nada pode ser tido como o vector por trás da formação dos Heróis do Mar: uma vontade de presente, de agora, sem as barreiras ideológicas do passado. Nas palavras de Pêra: "O pessoal procurava formas de identidade que nos distinguisse dos baladeiros e das músicas de protesto".
O "casting"A história é contada em "Brava Dança" mas segue assim: o cerne inicial dos Heróis do Mar consiste na união de Pedro Ayres Magalhães, baixista, letrista e "motor sem o qual não havia barco" (Edgar Pêra), e Paulo Pedro Gonçalves, que se conhecem entre experiências no teatro e misticismos. Mais tarde resgatam Carlos Maria Trindade para as teclas, Tozé Almeida para a bateria e Rui Pregal da Cunha para a voz.
"Eu estava no meio da pista a dançar quando o Pedro me convidou para ir à sala de ensaios. Nem sabia que ia para uma audição. Cantei ‘Sitting on the dock of the bay' [de Otis Redding], que era a única canção de cuja letra me lembrava".
Era gente de mundos diferentes, o que leva Pêra a dizer que "o Pedro [Ayres Magalhães] fez um óptimo ‘casting'". Carlos Maria vinha da clássica e era professor de música; Tozé vinha dos Tantra, banda de rock-progressivo; Rui vinha de estudar Mobiliário. Numa fase inicial chegou a haver dois bateristas e um coro de três vozes. Para o lugar de vocalista ouviram um tal António Variações - não se adequava ao cargo, mas permaneceram amigos e colaboraram mais tarde nos discos deste a solo.
Mas por trás de tudo isto havia, lembra Pêra, "um grupo ainda maior". Esse grupo "cindiu-se por causa de uma ideia de transcendência da nação. E começou a haver reuniões em que isso era discutido". Como se vê em "Brava Dança", havia leituras obrigatórias, como a "História de Portugal" de Oliveira Martins, escreviam-se panfletos.
Tudo decorreu dessa visão do que um novo Portugal devia ser. Algo tão simples, como "o uso do termo ‘cachopa', demonstra", diz Pêra, "humor e pesquisa. Havia pesquisa até para o uso do léxico".
"Quando começámos a perceber que tínhamos uma lírica própria", continua Pregal da Cunha, "tivemos de criar uma imagética. Ensaiávamos oito horas por dia e ainda passávamos mais duas a pensar nos fatos e restante imagem".
Logo no primeiro disco usaram acordeão e cavaquinho. Também pilharam música africana. "Dávamo-nos com músicos africanos. Eram os melhores guitarra-ritmo". Essas experiências tiveram um resultado curioso: "Chamaram àquilo neo-colonialismo", conta Pêra.
Os momentos fundamentais foram vividos numa época que hoje nos parecerá - como dizer? - curiosa. Entre 1981 e 1984, com a presença do FMI por cá, a miudagem andava à solta, porque "os pais", segundo José Pinheiro, "na altura tinham muito com que lidar: havia despedimentos, saneamentos, restrições de consumo de energia. Havia irmãos que se deixavam de dar porque um ia para a esquerda e outro para a direita".
É neste contexto que surge O Passeio dos Alegres, programa de Júlio Isidro, em que os Heróis aparecem com "Amor", que os torna uma banda pop gigante. "Havia uma coisa que era o passeio dos tristes", conta Isidro. "Aquela coisa de ao fim-de-semana pegar no carro, dar uma volta a Sintra, parar para comer um pastel de nata e os miúdos calados porque o pai queria ouvir o relato. Pelo que fiz o Passeio dos Alegres em contraponto à tristeza vigente".
Numa sequência alucinante os Heróis são abordados por um jornalista francês, Serge Thomas, que conhecera o disco de estreia e queria perceber o que acontecia em Portugal. Trabalhava para a revista "Actuel" que tinha um certo domínio sobre uma sala de Paris, o Rex, onde os Heróis acabaram por actuar, em Abril de 1982, na noite anterior aos Associates de Billy Mackenzie. Pouco depois abririam para os Roxy Music em Portugal e acabariam por acompanhá-los por França.
Quando perguntamos a Pêra se a internacionalização dos Heróis ficou por cumprir a resposta é clara: "O projecto dos Heróis do Mar não falhou. Passou de eléctrico a acústico e internacionalizou-se sob o nome Madredeus. Que também são pop".
A banda duraria para um disco que hoje é olhado de lado ("Mãe, 1983), um terceiro bem conseguido ("Macau", 1986) e o último, "IV" (1988), menos homogéneo, fruto das cisões internas que resultaram na criação dos Madredeus (de Pedro Ayres Magalhães e com Carlos Maria Trindade) e dos LX90 (Paulo Pedro Gonçalves e Rui Pregal da Cunha). Pelo meio ainda fizeram extraordinários singles pop: "Paixão" (1983), "Alegria" (1985), "Fado" (1986), "O Inventor" (1987) e "Eu Quero" (1988). Mas mesmo que não tivesse existido nada disto, o fundamental estaria entre "Saudade", o primeiro single (1981), e "Amor" (1982): música tão avançada quanto qualquer outra, era pop(ular), portuguesa, dançável e, graças à imagem, apetitosa.
Nesse período lançaram a matriz sem a qual não existia hoje: a) ar puro; b) Os Golpes, Os Lacraus, Samuel Úria, João Coração, Pontos Negros...
Como diz Manuel Fúria, líder d'Os Golpes, "a lição que eles dão é a de serem populares, de não ficarem fechados num nicho de artistinhas, cobertos pela manta da legitimação de vanguarda. Em todo o país onde há uma cultura desenvolvida faz-se esse salto. Por isso este regresso [com os Golpes e os Lacraus a homenageá-los] era inevitável. Foi o tempo de uma ressaca geracional".
É assim, pequenada: o inventor de Portugal foi um português; já os Heróis do Mar foram heróis do éter, do vinil, do vídeo, do CD e agora do Youtube e do mp3.