Na cabeça de Rui Sanches
Rui Sanches (n. Lisboa, 1954) é um dos escultores portugueses mais notáveis. A sua escultura destaca-se pela maneira como figura, corpo e espaço estão entrelaçados colocando cada trabalho numa zona entre a representação do corpo e a criação arquitectónica do espaço. Não se consegue detectar um tema único naquilo que faz e o artista fala em meditações, em corpos e espacialidades.
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Rui Sanches (n. Lisboa, 1954) é um dos escultores portugueses mais notáveis. A sua escultura destaca-se pela maneira como figura, corpo e espaço estão entrelaçados colocando cada trabalho numa zona entre a representação do corpo e a criação arquitectónica do espaço. Não se consegue detectar um tema único naquilo que faz e o artista fala em meditações, em corpos e espacialidades.
Queria ser médico, não um médico qualquer, mas psiquiatra. E talvez essa inquietação em perceber a mente dos outros tenha transitado para as suas esculturas e, por isso, a figura da cabeça seja um tema tão recorrente no seu trabalho. Uma transição inconsciente e, a fazer-se fé nas palavras do escultor, não se lembra de como e quando a cabeça começou a ser um motivo importante dos objectos que constrói. Tinha já pensado que a medicina estava ligada ao interesse que manifesta pelos corpos, mas, diz, nunca lhe "tinha ocorrido essa ligação da psiquiatria com as cabeças" que surgem recorrentemente no seu trabalho "desde, pelo menos, 1992."
O interesse pela psiquiatria teve origem na ambição de querer "perceber o funcionamento das pessoas e da mente humana", mas Sanches percebeu no terceiro ano do curso que a medicina não era o único caminho. Porque a arte, como diz o escultor, "mesmo não falando de situações singulares e concretas é uma forma de de conhecimento do outro. A arte conhece o mundo de modo físico, afectivo, psicológico, material, revelando aspectos do mundo. Não se trata de um conhecimento linguístico ou cognitivo puro, mas daquele que acontece através do próprio corpo, da emoção e das perguntas que são propostas pelas obras de arte."
Fazer e pensarAs suas cabeças não são uma expressão literal, não pretendem ser figurativas, nem representam sujeitos ou situações singulares, mas são "figuras genéricas: não é um certo homem ou uma certa mulher, mas um estereótipo de cabeça. Não pretendo representar uma pessoa, mas trata-se da abstracção da figura humana", diz ao Ípsilon.
Na sua nova exposição na Galeria Miguel Nabinho, com o título "Porta Entreaberta", as cabeças voltam a estar presentes e surgem como "ensaios das relações das pessoas com o mundo, com o outro e consigo próprias. Relações essas que umas vezes são mais livres, outras mais limitadas e constrangidas, outras mais fáceis, às vezes egoístas", afirma. E é a densidade dessas relações que determina as diferentes espacialidades e os diferentes corpos escultóricos.
Esta relação entre conhecimento do outro e objecto artístico torna-se possível porque Sanches não só acredita nos objectos, como para ele "uma das formas em que arte pode ser reveladora é através da relação que estabelece entre a racionalidade e a afectividade. Não é o objecto enquanto fetiche, mas enquanto coisa feita no mundo que me interessa." E esta ligação da arte à vida é tema continuamente explorado. O qual diz ter começado um pouco como autoanálise: "quando tentei perceber como é que o meu próprio trabalho se relacionava com o mundo."
Esta dimensão de reflexividade e de crítica sobre aquilo que diariamente faz no seu atelier é essencial para Sanches. A arte, afirma, "tem dois momentos: o momento em que se faz e o momento em que se pensa sobre o que se fez. É bom que não se pense demasiado quando se está a fazer, mas depois é imprescindível." Uma prática que não significa a intelectualização do trabalho: "o meu trabalho é muito físico, intuitivo, material, preciso passar tempo no atelier e de mexer muito nos materiais, mas depois há um lado mais teórico ou conceptual."
A extrema liberdade com que faz é um esforço e corresponde a uma conquista que realizou sobre a linguagem que utiliza. Nos seus primeiros trabalhos a preocupação em sancionar a escultura estava presente: "havia sempre uma pintura ou uma figura de iconografia como um santo ou um mártir como pontos de partida. Nas esculturas mais recentes as coisas estão mais sensitivas." Uma alteração com efeitos não só no modo como cada trabalho se faz e constrói, mas no modo como o público se relaciona com ele: "com as outras peças as pessoas andavam à volta delas, com estas não: aproximam-se, mexem e é uma coisa mais táctil e sensorial. Os meus trabalhos iniciais eram mais cerebrais e defensivos sem haver um envolvimento físico e emocional tão grande." E conclui: "Agora continua a haver racionalidade e preocupações com a história da escultura, mas tudo isso é filtrado de um modo mais descontraído. Agora sou menos racional. Antes não queria subjectividade, biografia ou descontrolo. Tudo era filtrado. Agora as coisas saem como saem."
Ainda que seja claro tratar-se de um trabalho escultórico, o processo escapa aos gestos mais genéricos da escultura: a modelação, o talhe ou a fundição, e aproxima-se mais de uma coisa tipo acumulação. "É um misto de construção e modulação. Muitas vezes começo por modelar em barro antes de passar para a madeira. No barro experimento coisas muito intuitivas e a partir dessas maquetas amplio para outra escala."
Nesta sua nova exposição não há rupturas, mas surge o barro como novo elemento escultórico. Material este que é entendido como "uma espécie de desenho em três dimensões. Há o mesmo tipo de rapidez e de não controlo que o desenho dá, mas no barro têm-se logo as três dimensões." Esta imediatez agrada a Sanches porque a ideia de projecto-escultórico lhe é estranha: "não tenho vontade de projectar esculturas, prefiro processos mais intuitivos e manuais. Gosto de ir fazendo e ir acumulando coisas, tempos, estados de coisas que vão acontecendo. É como os escritores que vão buscar blocos de texto e os vão mudando de sítio. Com a escultura acontece-me um bocadinho a mesma coisa. Gosto deste lado de não ter as coisas planeadas."
O título da nova exposição apresenta a preferência de Sanches pelos espaços que não se apresentam imediatamente, mas que exigem demora, tempo e descoberta: portas que só deixam entrever o espaço, janelas que só mostram uma frecha da paisagem. Indeterminação e abertura estas que depois a escultura completa e preenche.