Tábua rasa
Adulai regressou à Guiné-Bissau em Abril de 1980. A filha mais velha nascera havia quatro anos. Apareceu-lhe logo a sogra decidida a submeter a criança a mutilação genital. Ele não deixou
Encontrei-o em casa, uma manhã, no Gabú, interior da Guiné-Bissau. Conduziu-me ao escritório – demasiado apertado para acolher as três mesas e a estante que ali estão, repletas de livros e de cadernos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Encontrei-o em casa, uma manhã, no Gabú, interior da Guiné-Bissau. Conduziu-me ao escritório – demasiado apertado para acolher as três mesas e a estante que ali estão, repletas de livros e de cadernos.
“Eu sou um combatente”, identificou-se Adulai Djau, líder da Rede Nacional de Luta Contra a Violência de Género. “Sou um combatente pela cidadania. Enquanto continuarmos a alimentar certas práticas, algumas consideradas nefastas, não podemos ir lá.”
Muito magro, cabelo rapado, já grisalho, mantém voz firme. “Não luto por mim.” Está com 60 num país com uma esperança média de vida inferior a 50 anos. Tem filhas. A mais velha não se via – tem a vida dela. A mais nova estava lá fora – a mãe penteava-a, pacientemente.
Estudou em Cuba – como muitos guineenses depois da independência. Regressou à Guiné-Bissau em Abril de 1980. A filha mais velha nascera havia quatro anos. “Tive a sorte de a encontrar intacta.” Apareceu-lhe logo a sogra decidida a submeter a criança a mutilação genital. Ele não deixou.
Naquela altura, aquela era uma atitude muitíssimo ousada. Adulai até foi chamado ao colégio de anciãos. Apresentou-se, com um discurso sólido, inteligente: “Não recusei. Só quero que me expliquem porquê”. Conhecia bem os 114 capítulos do Alcorão. Pediu-lhe que lhe indicassem um único versículo a defender tal prática. E não lhe indicaram. Não podiam.
Não ficou sossegado. Passou a andar com a criança para todo o lado, “como uma sacola”, não fosse a avó apanhá-la.
O episódio mostra a coerência deste homem, que produz algum pensamento sobre o país. “O Estado devia dar prioridade absoluta a programas de educação que permitam o exercício de cidadania às raparigas. Sem informação, nem sensibilidade, o que faz a população?”
Regressei ao Porto-casa. Encontrei esta conversa ao passar os olhos pelos cadernos – dedico-me agora a escrever aquela que haverá de ser a primeira publicação da Casa dos Direitos, um conjunto de histórias exemplificativas do exercício ou da violação dos direitos das mulheres.
O programa alimentar está a puxar as meninas para as salas de aula. “Está bem levar as meninas para a escola, mas que escola?”, perguntava-me ele. “Chegam à quarta classe, vêm os pais, tiram, dão em casamento forçado. O Estado não diz nada: ‘É sua filha.’ É sua filha, mas quem a protege?”
Uma vez, convidaram-no para ministro da Educação. Respondeu que só aceitaria se pudesse fechar as escolas uns dois anos e criar um sistema educativo de raiz. Loucura? Quem é que nunca teve vontade de fazer tábua rasa?