Yasmina Reza: a mulher que ri por último

Foto
O sistema teatral, sobretudo francês, nunca lidou com o sucesso de Yasmina INDIRA CESARINE/ CORBIS OUTLINE

Não gosta de dar entrevistas. Prefere fazer tudo por e-mail. Não deixa de ser um detalhe delicioso sobre quem se quis sempre apresentar como disponível, de trato fácil e distante das imagens de frieza que sempre a caracterizaram.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Não gosta de dar entrevistas. Prefere fazer tudo por e-mail. Não deixa de ser um detalhe delicioso sobre quem se quis sempre apresentar como disponível, de trato fácil e distante das imagens de frieza que sempre a caracterizaram.

Quando, em 2007, Yasmina Reza escreveu "L'Aube, le soir ou la nuit" ("Madrugada, tarde ou noite. Um ano com Nicolas Sarkozy", 2008), a partir da experiência que a levou a acompanhar um ano da campanha para a reeleição presidencial de Sarkozy, disse que "não havia lugar na tragédia" e que - era a frase inicial - "o homem sozinho é uma ilusão". Yasmina Reza, 52 anos, filha de judeus húngaros e iranianos exilados em França, dramaturga de sucesso e actriz sofrível, romancista em busca de afirmação e cineasta por capricho mas, sobretudo, mulher de escrita seca, musculada, narcísica, foi acusada de ter passado uma barreira perigosa. Disse-se que se tinha apaixonado pela figura de um homem que era "o seu espelho perfeito": ambos "secos, impiedosos, ambiciosos, sem dúvidas ou subtilezas, tipo balzaquianos que adoram montar um grande espectáculo e cuja força de vontade é a sua única redenção", escreveu Philippe Lançon no "Libération" .

Yasmina Reza defendeu-se como pôde e, a partir de então, recusou dar entrevistas que não fossem por e-mail. Usando como desculpa os múltiplos afazeres mas, sobretudo, acusando o medo da exposição. Ao Ípsilon diz: "Escrevo o que vejo e o que sinto, procurando nunca trair nem os detalhes da realidade, nem as palavras nem os ambientes. Mas sou eu que escolho o enquadramento, tal como num filme ou numa fotografia. Importa tanto o que é visto nessa imagem como o que foi suprimido. O meu desejo é que nada seja supérfluo, o que não significa que não exista algo que seja banal."

Nicolas Sarkozy não era uma "ficcionalização da realidade" diz-nos, mas o modo como o descreveu - a ele, a quem depois disse que tinha escrito um livro sobre uma personagem que nem o próprio Sarkozy sabia que existia - era uma figura que não se distanciava tanto das que Reza criou para o seu teatro. E é aqui que entra a ideia de tragédia e de solidão: "Penso no meu teatro, e em geral em tudo o que escrevo, como tragédias cómicas onde os lugares são, sobretudo, neutros e simbólicos. É o tempo que importa, mais do que o lugar", diz-nos.

Rien

Reza chega a Lisboa este fim-de-semana para o Lisbon & Estoril Film Festival. Vem apresentar o filme "Chicas", pouco mais do que uma curiosidade a partir de "Une piéce espagnole", texto seu de 2004, protagonizado por Carmen Maura e Emmanuele Seigner (Nimas, amanhã, 21h30), e "Carnage", adaptação que Roman Polanski fez da sua peça "Le Dieu du Carnage" (hoje, 22h, Centro de Congressos do Estoril), escrita em 2006 a pedido da Schaupielhaus Zurich, encenada pela própria autora em 2008, em Paris, com Isabelle Huppert, e apresentada pelo Teatro Aberto, em Portugal, com o título "O Deus da Matança", encenada por João Lourenço, em 2009.

Reza diz que não aprendeu nada sobre a sua escrita com a passagem de "Le Dieu du Carnage" do teatro para cinema. "Rien", diz-nos. E nem entra em detalhes sobre a relação com Polanski, que conhece desde que o polaco a convidou, há vinte anos, para traduzir um monólogo que ele queria fazer a partir de "A Metamorfose", de Kafka. A amizade ficou. Foi depois de ver a sua encenação em 2008 que Polanski a convenceu a trabalhar no argumento do filme. Mas.."rien", diz Reza, mesmo que o filme, interpretado por Jodie Foster, Kate Winslet, Christopher Waltz e John C. Reilly, tenha uma camada mais esperançosa, a pedido do próprio Polanski.

É esta frieza que não esconde - "rien" - que contrasta com a maior força dos seus textos: "Fazer as pessoas rir de si próprias", como disse Christopher Hampton, o autor da adaptação "As Ligações Perigosas", a partir de Chordelos de Laclos, que foi tradutor de "Le Dieu du carnage" e de "Arte", peça de 1997 que Reza escreveu aos 37 anos e que lhe rendeu os prémios Moliére, em França, Laurence Oliver, em Inglaterra, e Tony, nos EUA. E 200 milhões dólares. E produções em 35 línguas. E um olhar desconfiado do um sistema teatral, sobretudo francês, que nunca lidou com esse sucesso. "Orgulho-me do sucesso que significa as pessoas gostarem do meu trabalho. Sinto-me muito orgulhosa do eco que encontro no que faço. Mas aborreço-me no interior desse sucesso. Não é o sucesso que me aborrece mas as formas mundanas que isso engendra", diz-nos.

"Arte", que em Portugal foi estreada em 1998 no Teatro São João, antes de prosseguir uma carreira de sucesso, com encenação de António Feio e interpretações do próprio, de José Pedro Gomes e Miguel Guilherme, tinha um ponto de partida imbatível: um quadro branco, com riscas brancas, mais ou menos branco, ou talvez menos branco em algumas partes, dependendo do que se entende por branco, é ou não arte?

A peça era um tiro ao coração de uma classe social bem-pensante, burguesa já sem virtudes, de vícios comprados nas revistas e no diz-que-disse vazio. "Teatro do vestidinho preto", chamaram-lhe, por essa dissecação dos costumes através de frases atiradas por entre as gargalhadas de quem nelas se identificava. "Teatro de actores", sem o "vício intelectual" que ajudava a "dissecar a burguesia com a leveza e despreocupação de uma criança, descobrindo a vida desmembrando insectos", escreveu Agnes Poirier num perfil publicado em 2008 no "Independent". Daqui às acusações de moralismo foi um passo: "Os grandes dramaturgos são moralistas", diz-nos Reza, quando lhe perguntamos se com o sucesso não vem também, escondido e ligeiro, um desejo de manipulação e confronto. "Sem moral não há acções e se elas se sucedem, à posteriori, num palco, é porque o fazem de acordo com uma escala moral. Mas por moral não se deve entender ideologia". Reza não se compromete, não escolhe, não diz, Reza sugere, propõe, identifica e deixa-nos escolher, à queima-roupa, na evidência de que aqueles são iguais a nós, mas expostos num espelho de feira que deforma. "Nunca escrevo de perspectiva temática. O processo é intuitivo, de maneira nenhuma intelectual", disse em 2007 ao "Berliner Zeitung". Nunca escondeu que o seu era um teatro de actores.

Formada na École Jacques Lecoq, nunca conseguiu fazer vingar uma carreira de actriz. Mas o que aprendeu serviu-lhe para a escrita: "Quando escrevo para teatro, é realmente a pensar na musicalidade de uma voz futura que o faço. Divirto-me ao imaginar todas as possibilidade do jogo que vai acontecer." E é aqui que o teatro de Reza se começa a desmoronar. Quando, depois de dois anos de sucesso, os produtores decidiram retirar "Arte" de cartaz, por incapacidade de atracção de um público que não se interessou em ir ver talentos cómicos descobertos na televisão, Lyn Gardner, num ácido artigo no "The Guardian", revelou as fraquezas do teatro de Reza: "Tudo o que esta noite prova é que uma peça tão deslavada e fraca como esta necessita de actores que não só sejam heroicamente talentosos mas também possuam uma perícia formidável".

"Le Dieu du Carnage" não é diferente. Reza descreve-a assim: "Dois casais, de início extremamente civilizados, encontram-se para preencher um formulário para uma seguradora, porque uma das crianças bateu na outra. Mas basta uma palavra erada para tudo descambar". Para a autora não lhe interessa a família dramatúrgica onde esta peça se possa inserir. "Desconfio delas", diz-nos quando sugerimos Harold Pinter com "The Birthday Party", Noel Coward com "Private Lives" ou Edward Albee com "Quem tem medo de Virginia Woolf?", pelo modo como escalpelizam o quotidiano, o desmontam sem cedências e relevam, a partir do microcosmos familiar, o mal-estar social. Como nas suas outras peças, como no perfil de Sarkozy, como se depreende do modo como responde, ao mínimo detalhe, onde o diabo se esconde, acontecem as mudanças. E, como sempre, as personagens fazem, rapidamente, estalar a fina camada de verniz polido: "A falta de paciência é um tema maior no meu trabalho. É um modo de falar da relação com o tempo. Os impacientes não são, normalmente, os melhores jogadores na vida social. A impulsividade, a perda de controlo, pode ser uma derivação da falta de paciência". E repete: "O tempo conta mais do que o lugar".

É por isso que a história de Reza é uma história de sucesso: "Definem, normalmente, o meu teatro como um teatro de sucesso, o que não é apenas uma visão parcelar como mesmo falsa", riposta. "Não é tanto o que se ganha ou perde, mas como se conta o que se segue".A frase vem do seu último romance, onde uma autora exige ter as perguntas de uma jornalista por escrito antes de poder responder. "É uma definição formidável da literatura e, no meu ponto de vista, da própria existência. É por isso que os casos de sucesso ou falhanço são tão relativos". E mais não disse.