Cova da Beira vai a julgamento, mas investigação ficou a meio
O grupo HLC/Conegil, cujo patrão começa a ser julgado na quarta-feira por corrupção activa e branqueamento de capitais, terá sido ainda mais favorecido na segunda fase do aterro da Cova da Beira do que na primeira - aquela que está em causa neste julgamento. O que se passou nesse período, entre 2000 e 2002, nunca foi, porém, objecto de qualquer investigação judicial.
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O grupo HLC/Conegil, cujo patrão começa a ser julgado na quarta-feira por corrupção activa e branqueamento de capitais, terá sido ainda mais favorecido na segunda fase do aterro da Cova da Beira do que na primeira - aquela que está em causa neste julgamento. O que se passou nesse período, entre 2000 e 2002, nunca foi, porém, objecto de qualquer investigação judicial.
No centro da acusação pela qual vão ser julgados António José Morais, o antigo professor de José Sócrates na Universidade Independente, a sua ex-mulher, Ana Simões, e Horácio Luis de Carvalho, o presidente do grupo HLC, encontra-se a alegada viciação de um concurso público. Terá sido ela que permitiu, em 1997, a adjudicação, por cerca de 13 milhões de euros, da construção e exploração da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos da Associação de Municípios da Cova da Beira (ETRSU), no concelho do Fundão, a um consórcio liderado pela HLC e pela Conegil.
De fora ficaram os outros suspeitos, entre os quais José Sócrates, secretário de Estado do Ambiente à época do concurso, cuja relação com o caso nunca foi aprofundada pelo Ministério Público, apesar de a Policia Judiciária o ter proposto.
A estação de tratamento foi inaugurada em 2001 - quando a polícia já investigava o negócio há quatro anos -, mas faltava ainda fazer um conjunto de obras (a segunda fase do projecto), que custou mais de 17 milhões de euros de dinheiros públicos e se arrastou até 2006. Tratava-se da selagem e recuperação ambiental das antigas lixeiras de 14 concelhos e da construção de ecocentros e estações de transferência de resíduos.
Das 12 primeiras empreitadas, lançadas entre Setembro de 2000 e Fevereiro de 2002, um total de 11, com um valor próximo dos 4 milhões de euros, foi adjudicado à Conegil, isolada ou em consórcio com a HLC. Destes 12 contratos, nove acabaram por ser rescindidos, por incumprimento, pela Associação de Municípios da Cova da Beira (AMCB), em Junho de 2002. Os três últimos, contudo, foram celebrados já depois de a Conegil e a HLC terem abandonado as obras que tinham a seu cargo. Mas a situação assim criada e a falência da Conegil, ocorrida em 2003 com 20 milhões de euros de dívidas, parte delas ao Estado, e seguida pela falência de outras empresas do grupo, não significou o fim dos negócios duvidosos entre a AMCB e o universo HLC - que entretanto concentrou as suas actividades no Brasil.
Desde Fevereiro de 2002 até finais de 2006, ainda foram lançadas mais 12 empreitadas novas, sem contar com as que tiveram por objecto o acabamento dos trabalhos abandonados pela HLC/Conegil. A maior delas, no valor de 3,7 milhões de euros e relativa ao alargamento da ETRSU, foi adjudicada, em Setembro de 2006, a um consórcio formado pela empresa Tomás de Oliveira e pela HLC. E cinco outras foram entregues à Constrope, uma empresa de que Carlos Manuel Santos Silva - um engenheiro amigo de José Sócrates que partilhava com Horácio Luis de Carvalho a propriedade da Conegil - foi um dos sócios-fundadores.
A documentação disponível permite concluir que as adjudicações feitas ao grupo HLC na segunda fase do projecto, à excepção de um caso em que houve um concurso limitado, foram todas feitas por concurso público - o que suscita ainda mais interrogações quanto aos procedimentos seguidos.Uma informação elaborada em Abril de 2004 por um técnico da Direcção-Geral do Desenvolvimento Regional (DGDR), que tinha competências de fiscalização daqueles concursos, concluiu, aliás, que "a AMCB não salvaguardou o interesse público na celebração de alguns desses contratos".
"No mínimo estranho"
O documento salienta que "é considerado no mínimo estranho e imprudente que, em sede de avaliação de propostas e de decisão de adjudicação dos últimos contratos [os três anteriores à falência da Conegil], não tenha sido tomado em conta o facto de haver sinais claros de incumprimento por parte destas empresas [Conegil e HLC] em contratos anteriores".
Alguns dos problemas identificados prendiam-se com a "utilização sistemática", nos 12 concursos, "de critérios indevidos e inaceitáveis em sede de avaliação de propostas" e com a aceitação "como bons" de "prazos muito inferiores aos previstos e nitidamente irrealistas, como se veio a comprovar".
Paralelamente a estes indícios de favorecimento do grupo HLC/Conegil nos contratos de empreitada, a verificação dos nomes das empresas a quem foi adjudicada a fiscalização das obras e a execução dos projectos levanta mais dúvidas sobre o assunto. No caso dos contratos de fiscalização, quase todos eles foram atribuídos à Patrício & Valente, criada por Joaquim Valente, à época administrador da AMCB, actual presidente da Câmara da Guarda e muito próximo de Sócrates. Na altura da assinatura dos contratos, a empresa - que também tinha feito a fiscalização da primeira fase do projecto - já estava nas mãos de Armando Trindade, sócio de Santos Silva (dono da Conegil) na empresa de engenharia EFS.
Quanto aos projectos das obras, pelo menos seis foram encomendados à Proengel, outra firma de Santos Silva, enquanto um sétimo foi atribuído à Enaque, igualmente pertencente a Santos Silva. Sobre estas adjudicações, a DGDR concluiu que havia "indícios de fraccionamento de despesa para subtracção a procedimentos de concurso público internacional". A documentação referente às mesmas nunca apareceu, "desconhecendo-se quais os resultados das consultas e a justificação das escolhas".
Já em 2005 e 2006, a empresa de capitais públicos Águas do Zêzere e Côa, que tinha assumido entretanto as responsabilidades da AMCB, ainda celebrou oito contratos de fiscalização com a EFS de Santos Silva. Um incidia sobre a ampliação da ETRSU, cuja obra tinha sido adjudicada à HLC e à Tomás de Oliveira.
Para tentar evitar que as anomalias detectadas levassem as autoridades europeias a cortar os financiamentos, a DGDR tomou algumas medidas, mas os factos nunca foram participados ao Ministério Público. Em meados de 2007, a Inspecção-Geral de Finanças recusou-se a certificar as contas referentes à segunda fase e a Comissão Europeia suspendeu os pagamentos em Setembro desse ano, situação que ainda se mantinha em Novembro de 2008. O PÚBLICO não conseguiu esclarecer, até ao fecho desta edição, a decisão final de Bruxelas.
Adjudicações do MAI também favoreceram
Outro caso que poderia pôr em evidência alguns aspectos da trama envolvendo os protagonistas do caso Cova da Beira, mas que também nunca foi investigado, foi o da adjudicação de 17 grandes obras do Ministério da Administração Interna (MAI) à Conegil.
Os factos registaram-se entre 1996 e 1999, quando decorria a primeira fase do aterro da Cova da Beira, numa época em que o Gabinete de Estudos e Planeamento de Instalações (GEPI) do MAI era dirigido por António José Morais. Nomeado para a função por Armando Vara, o então professor de Sócrates liderou a adjudicação à Conegil de 17 das 86 empreitadas lançadas pelo GEPI naquele período. Essas adjudicações ascenderam a cerca de 16 milhões de euros, num total de 58 milhões.
As restantes 69 empreitadas foram distribuídas por mais de cinquenta empresas. Destas, a que mais contratos obteve ficou apenas com seis. Mas, entre as empresas que participavam no projecto da Cova da Beira, não foi só a Conegil, de Horácio de Carvalho e de Carlos Santos Silva, que foi contemplada com as adjudicações de Morais no GEPI. Também a EFS, da qual Santos Silva é um dos donos, foi das que mais contratos de fiscalização de obras obtiveram, embora tenha ficado atrás do falecido arquitecto Pinto de Sousa, pai de Sócrates.
Na forma como o GEPI adjudicava as empreitadas e processava os pagamentos, a Inspecção-Geral da Administração Interna detectou numerosas "ilegalidades" e propôs, em 2002, a instauração de um inquérito contra o seu director. António José Morais demitiu-se e nada foi participado ao MP.
Notícia actualizada às 15h32