"Uivo": monta-me histórias
Primeiro aviso à navegação: quase tudo o que se passa neste filme é verídico e baseia-se em transcrições, citações, entrevistas e arquivos. Mas "Uivo" não é um documentário.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Primeiro aviso à navegação: quase tudo o que se passa neste filme é verídico e baseia-se em transcrições, citações, entrevistas e arquivos. Mas "Uivo" não é um documentário.
Segundo aviso à navegação: não é possível traduzir poesia para prosa, como diz alguém a certa altura no filme - ou, no caso, para cinema. É por isso também que "Uivo", esta semana nas salas, não é uma adaptação do poema homónimo escrito em 1955 por Allen Ginsberg e que é, a par de "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, um dos textos fundadores da "Beat Generation" americana. Nem é uma biografia filmada do seu autor, que surge no filme sob os traços do actor James Franco.
"Nunca sequer considerámos essa ideia," diz o realizador Rob Epstein ao telefone de São Francisco. "Daria certamente um grande filme para quem o quiser fazer, mas a nossa missão foi sempre e apenas o poema: o que levou Allen a escrevê-lo, o que aconteceu depois da sua publicação."
Eis, então, "Uivo": Allen Ginsberg faz a primeira leitura pública do poema na Six Gallery de São Francisco em Outubro de 1955, dá uma longa entrevista (fictícia), acompanha o julgamento por obscenidade de 1957 que opôs o Estado americano a Lawrence Ferlinghetti, editor do poema através da City Lights.
Tudo isto aconteceu na realidade, tudo isto foi reconstituído para efeitos do filme devido à ausência completa de imagens de arquivo de época. "Não havia nada daquilo com que costumamos trabalhar quando criamos um documentário histórico," diz Epstein. "E estávamos interessados em forçar os limites da forma, em fazer algo de mais experimental usando as técnicas do documentário para contar uma narrativa. Não partimos com a ideia de fazer um filme experimental, mas sentimos uma certa responsabilidade de criar algo que fosse tão diferente e audacioso como o poema o foi no seu tempo."
Daí que o que começou como uma proposta dos herdeiros de Ginsberg para um documentário celebrando o 50.º aniversário da criação de "Uivo" se tenha tornado no primeiro "não-documentário" (à falta de melhor palavra) de Epstein e Jeffrey Friedman. Apesar de 25 anos de trabalho em comum, de dois Óscares de Melhor Documentário ("Os Tempos de Harvey Milk", 1985, assinado só por Epstein, e "Common Threads - Stories from the Quilt", 1989) e de uma reputação de cronistas das questões LGBT, os dois realizadores não se tinham ainda abalançado a uma longa-metragem narrativa. E a experiência como documentaristas acabou por vir a jeito no trabalho de estruturação e montagem da história que queriam contar. "A maior parte dos documentários é criada na montagem, e nós estamos muito habituados a montar histórias, porque os filmes que fizemos até agora contavam histórias individuais que convergiam numa história colectiva. Embora ‘Uivo' siga de muito perto o guião que escrevemos, foi um filme muito construído na montagem."
O que complicou o trabalho da dupla foi a multiplicidade de referências estilísticas e cinéfilas que "Uivo" arvora deliberadamente. Para as sequências de tribunal que recriam o julgamento, com um elenco de luxo que inclui Jon Hamm (da série "Mad Men"), David Strathairn, Jeff Daniels ou Bob Balaban, os realizadores olharam "para filmes clássicos de Hollywood onde o julgamento era o centro dramático, como ‘Na Sombra e no Silêncio'." Para a reconstituição a preto e branco da primeira leitura pública do poema na Six Gallery, estudaram "muitas referências ‘beat'" e deixaram-se "inspirar pelo trabalho do fotógrafo Robert Frank"; já a entrevista a Ginsberg (uma construção a partir de várias citações e entrevistas do poeta) deve muito à cineasta independente americana dos anos 1950 Shirley Clarke e ao seu filme "Portrait of Jason".
No entanto, falta abordar aquele que é o elemento mais controverso do filme: a ilustração de "Uivo" em animação criada pelo grafista Eric Drooker, que Epstein e Friedman vão intercalando com a acção e que definem nas notas de imprensa como uma tentativa de criar "uma versão ‘beat' da ‘Fantasia' de Walt Disney" ao som de música original de Carter Burwell. Ao telefone, Epstein confessa que sabia que a animação ia ser o elemento menos unânime - "desde que levámos o projecto ao ‘workshop' de argumento no festival de Sundance que sabíamos que muita gente ia objectar" -, mas justifica a sua inclusão. "O poema aparecia ao longo do filme de vários modos diferentes: havia a leitura pública, a desconstrução que teve lugar no julgamento, a própria análise do Allen na entrevista. Quisemos ter a par dessas uma experiência puramente visual, cinematográfica. E sentimos que havia uma relação orgânica com o Allen ao chamar o Eric para criar a animação: eles tinham trabalhado juntos num livro chamado ‘Illuminated Poems' e sabíamos que o Allen queria que o Eric fizesse qualquer coisa com ‘Uivo'. Era como se fosse um sinal."
"Uivo", no entanto, não é o filme que Allen Ginsberg possa ter pensado , mas o filme que Rob Epstein e Jeffrey Friedman queriam fazer. "Sabíamos que a certa altura íamos ter de seguir o nosso instinto enquanto artistas. Sempre soubemos que ia ser um filme muito cerebral, mas o realmente importante para nós era chegar ao núcleo emocional do poema. Fazer com que a voz do Allen no filme fosse a de um artista a descobrir-se a si próprio."