El dia que me quieras
A obra de Solveig Nordlund, ainda que sofra com a intermitência que afecta a maior parte dos realizadores portugueses, está cheia de coisas singulares, e não se trata de uma cineasta que se deixe “apanhar” (quer dizer: “classificar”, “catalogar”) facilmente. O chamado “grande público” talvez guarde, sobretudo, a memória de “Dina e Django”, uma história de marginalidade lisboeta que foi um relativamente famoso sucesso (de estima, pelo menos) no princípio dos anos 80. Mas também se deve a Solveig um dos (apesar de tudo, raros) filmes “madeirenses” do cinema português, “Até Amanhã, Mário”, feito nos anos 90, ou, mais peculiar ainda, uma frágil mas feliz adaptação de J.G. Ballard, “Aparelho Voador a Baixa Altitude”, no princípio da década passada. Também filmou Richard Zimler, numa curta-metragem, “Espelho Lento”, com data do ano passado.Depois de 8 anos sem filmar longas-metragens (tínhamo-la deixado com “A Filha”, de 2003, talvez o mais indistinto dos seus filmes), ei-la de regresso com novo “aparelho” razoavelmente singular: uma adaptação de um livro de António Lobo Antunes, “A Morte de Carlos Gardel”, na primeira vez que o cinema português se aventura pela obra do escritor. Ajuda que se trate, como a própria Solveig sublinhou, do mais “linear” e mais “descritivo” dos relatos de Lobo Antunes, mas sobeja, ainda assim, complexidade suficiente para que o filme precise de ter uma estrutura intrincada, sobretudo na gestão dos diferentes tempos narrativos e dos pontos de vista das várias personagens. É uma história de impasse e introspecção: no tempo presente há um miúdo que está no hospital entre a vida e morte, e segue-se a ansiedade dos seus familiares e amigos (pai e mãe, separados, a tia, a madrasta, a namorada), um frenesi que se confunde com um estado de “suspensão”, uma “paragem no tempo” que implica um mergulho na revisão das várias biografias em causa. A estes “flash backs” e alternâncias temporais acresce uma espécie de tempo “imaginário”, nascido da fixação do protagonista masculino (Rui Morrison, no registo impecavelmente seco que lhe é habitual) pelas canções de Carlos Gardel, simultaneamente um bálsamo e uma maldição (ou pelo menos ele assim o sugere). As cenas que directamente exploram esta fixação são as melhores, as mais assombradas: “el dia que me quieras”, com certeza, mas sobretudo o ambiente irreal do cabaret aonde Morrison vai ouvir um “impersonator” de Gardel (Rui de Carvalho), em “playbacks” que, todas as devidas diferenças consideradas, não deixam de evocar, em registo menos alucinado, o “playback” de Dean Stockwell (uma canção de Roy Orbison) no “Blue Velvet” de Lynch. Em todo o caso, o efeito pretendido, narrativa e poeticamente, não anda longe, e é crucial.Crucial para introduzir um negrume, uma perturbação, que vem interromper o registo “claro” com que Solveig conta a sua história, uma “clareza” que tem virtudes (por exemplo, uma certa aspereza na introdução dos “flash-backs”) mas também se deixa cair, porventura demasiadas vezes, num naturalismo que parece excessivamente casual, perigosamente próxima da “espontaneidade” banal da “ficção televisiva” (a iluminação, a ausência de espessura da fotografia digital, ajuda a que se fique com essa sensação). Dentro destes limites e desequilíbrios, é proposta digna e séria, que acerta no que para Solveig talvez fosse o essencial: embeber o quotidiano comum da carga fantasmática e nocturna do “espírito” de Gardel. Semanas depois de visto o filme, essas cenas aindas nos permanecem vívidas na memória.
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A obra de Solveig Nordlund, ainda que sofra com a intermitência que afecta a maior parte dos realizadores portugueses, está cheia de coisas singulares, e não se trata de uma cineasta que se deixe “apanhar” (quer dizer: “classificar”, “catalogar”) facilmente. O chamado “grande público” talvez guarde, sobretudo, a memória de “Dina e Django”, uma história de marginalidade lisboeta que foi um relativamente famoso sucesso (de estima, pelo menos) no princípio dos anos 80. Mas também se deve a Solveig um dos (apesar de tudo, raros) filmes “madeirenses” do cinema português, “Até Amanhã, Mário”, feito nos anos 90, ou, mais peculiar ainda, uma frágil mas feliz adaptação de J.G. Ballard, “Aparelho Voador a Baixa Altitude”, no princípio da década passada. Também filmou Richard Zimler, numa curta-metragem, “Espelho Lento”, com data do ano passado.Depois de 8 anos sem filmar longas-metragens (tínhamo-la deixado com “A Filha”, de 2003, talvez o mais indistinto dos seus filmes), ei-la de regresso com novo “aparelho” razoavelmente singular: uma adaptação de um livro de António Lobo Antunes, “A Morte de Carlos Gardel”, na primeira vez que o cinema português se aventura pela obra do escritor. Ajuda que se trate, como a própria Solveig sublinhou, do mais “linear” e mais “descritivo” dos relatos de Lobo Antunes, mas sobeja, ainda assim, complexidade suficiente para que o filme precise de ter uma estrutura intrincada, sobretudo na gestão dos diferentes tempos narrativos e dos pontos de vista das várias personagens. É uma história de impasse e introspecção: no tempo presente há um miúdo que está no hospital entre a vida e morte, e segue-se a ansiedade dos seus familiares e amigos (pai e mãe, separados, a tia, a madrasta, a namorada), um frenesi que se confunde com um estado de “suspensão”, uma “paragem no tempo” que implica um mergulho na revisão das várias biografias em causa. A estes “flash backs” e alternâncias temporais acresce uma espécie de tempo “imaginário”, nascido da fixação do protagonista masculino (Rui Morrison, no registo impecavelmente seco que lhe é habitual) pelas canções de Carlos Gardel, simultaneamente um bálsamo e uma maldição (ou pelo menos ele assim o sugere). As cenas que directamente exploram esta fixação são as melhores, as mais assombradas: “el dia que me quieras”, com certeza, mas sobretudo o ambiente irreal do cabaret aonde Morrison vai ouvir um “impersonator” de Gardel (Rui de Carvalho), em “playbacks” que, todas as devidas diferenças consideradas, não deixam de evocar, em registo menos alucinado, o “playback” de Dean Stockwell (uma canção de Roy Orbison) no “Blue Velvet” de Lynch. Em todo o caso, o efeito pretendido, narrativa e poeticamente, não anda longe, e é crucial.Crucial para introduzir um negrume, uma perturbação, que vem interromper o registo “claro” com que Solveig conta a sua história, uma “clareza” que tem virtudes (por exemplo, uma certa aspereza na introdução dos “flash-backs”) mas também se deixa cair, porventura demasiadas vezes, num naturalismo que parece excessivamente casual, perigosamente próxima da “espontaneidade” banal da “ficção televisiva” (a iluminação, a ausência de espessura da fotografia digital, ajuda a que se fique com essa sensação). Dentro destes limites e desequilíbrios, é proposta digna e séria, que acerta no que para Solveig talvez fosse o essencial: embeber o quotidiano comum da carga fantasmática e nocturna do “espírito” de Gardel. Semanas depois de visto o filme, essas cenas aindas nos permanecem vívidas na memória.