Cenas da luta (em curso) entre o Ocidente e a China
Em Junho, Henry Kissinger participou, com o historiador Niall Ferguson, o editor da "Newsweek" Fareed Zakaria e o economista David Daokui Li, num debate sobre se o século XXI será dominado pela China. Juntamente com Zakaria, defendeu que não, que o Ocidente ainda tem suficiente vitalidade para disputar a hegemonia. Surpresa: Ferguson, que recentemente editou "Civilization, The West and The Rest" (2011), defendeu o contrário, ou seja, que um Ocidente (Europa Ocidental e EUA) em declínio irreversível não será capaz de fazer frente à ascensão da China.
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Em Junho, Henry Kissinger participou, com o historiador Niall Ferguson, o editor da "Newsweek" Fareed Zakaria e o economista David Daokui Li, num debate sobre se o século XXI será dominado pela China. Juntamente com Zakaria, defendeu que não, que o Ocidente ainda tem suficiente vitalidade para disputar a hegemonia. Surpresa: Ferguson, que recentemente editou "Civilization, The West and The Rest" (2011), defendeu o contrário, ou seja, que um Ocidente (Europa Ocidental e EUA) em declínio irreversível não será capaz de fazer frente à ascensão da China.
Podemos compreender melhor o pessimismo de Ferguson lendo "Civilization" - e confrontando-o com uma outra obra recente, "Why The West Rules - For Now" (2010), de Ian Morris. Ambos se debruçam sobre um tema tão apaixonante como antigo - as razões do sucesso de algumas nações e do insucesso de outras, que já inspirara Adam Smith quando este escreveu a sua obra seminal, "A Riqueza da Nações". A resposta de Ferguson inscreve-se na linhagem de Smith: o Ocidente saltou de uma situação de atraso relativo no século XVI para uma posição de domínio absoluto no século XX devido à conjugação de seis factores: a existência de concorrência entendida no sentido lato (incluindo o pluralismo político); o papel dado à ciência; o respeito pelos direitos de propriedade, indissociáveis do primado da lei; o domínio da Medicina que permitiu a melhoria da esperança de vida; a emergência de uma sociedade de consumidores que sustentou a Revolução Industrial; e, por fim, a valorização de uma ética do trabalho, sobretudo numa componente que o autor atribui ao Cristianismo protestante. Não há especial originalidade em cada uma das teses defendidas neste livro por Niall Ferguson, mas há indiscutível brilho na forma como as apresenta e insere num quadro geral homogéneo e inspirador.
O livro de Ian Morris é muito diferente, mas realmente original. O autor, arqueólogo de profissão, desenvolve uma história comparada das civilizações que se desenvolveram no arco entre a bacia do Mediterrâneo e as colinas da Pérsia, por um lado, e da grande civilização chinesa, por outro. Esta ambiciosíssima (e quase enciclopédica) história começa há mais de 15 mil anos, e a medida adoptada por Ian Morris para ir fazendo comparações entre sociedades que por vezes nem sabiam da existência uma das outras é um "índice de desenvolvimento social" que, muito antes de sabermos como calcular o PIB, nos pode dar indicações sobre os padrões de vida de populações que vivam sob regimes muito diferentes, e separadas tanto no espaço como no tempo. De uma forma geral, as civilizações do Ocidente lideraram este índice até ao auge do Império Romano, seguindo-se depois uma liderança do Oriente (ou da China, para sermos mais exactos) até aos século XV
XVI, altura em que o Ocidente retoma a hegemonia, dando depois um salto formidável com a Revolução Industrial. O que é curioso no livro de Morris é perceber como a China, que inventou a imprensa de caracteres móveis muito mais cedo do que o Ocidente, que teve precocemente o seu "Renascimento", que conheceu os mares do mundo antes de os portugueses neles se aventurarem, que esteve mesmo à beira de desencadear a sua Revolução Industrial uns séculos antes da Inglaterra, depois parou no tempo. Em vez de se centrar nos sistemas políticos e económicos, o autor encontra na geografia, por exemplo, boas explicações para fundamentar as decisões da corte de Pequim que conduziram à decadência, por contraponto a um Ocidente em expansão.
Da leitura destes dois livros - mais complementares do que contraditórios - não resulta uma resposta óbvia para a questão de saber se a China vai ou não ser a potência dominante do século XXI. Mas podem tirar-se algumas ilações. Por exemplo: se o Ocidente esquecer as seis condições que Ferguson identificou como base do seu sucesso (e talvez esteja a esquecer-se de algumas...), então é natural que perca a posição dominante que ainda tem no mundo, não já pela presença dos seus exércitos, mas pela força da sua tecnologia e pela adesão às suas ideias e ao seu modo de vida. Outro exemplo: se a geografia que ajudou o Ocidente (através da descoberta de combustíveis fósseis) e prejudicou a China (pois esta ficava demasiado longe da América para encontrar num continente quase vazio o espaço de expansão que a Europa encontrou) conta hoje muito menos, a rivalidade entre potências de novo colocadas a par pode conduzir a uma espécie de confronto final e fatal. Neste ponto, Morris aproxima-se de Kissinger, ao deixar implícito que só a colaboração entre a China e os EUA poderá salvar o mundo.