Ana Vidigal: reciclar as imagens que nos rodeiam
O que é um título? Para a maior parte da produção artística contemporânea, muito pouco. Habituámo-nos a visitar exposições onde esculturas, pinturas, vídeos e instalações ostentam o "sem título" que nada diz, a não ser que o que vemos é um objecto (ou uma imagem) que o autor pretende sem relações miméticas ou representacionais com aquilo que se convencionou chamar o mundo exterior. Esta prática, que possui as suas raízes no modernismo, deixou de se tornar inatacável em finais do século XX. Hoje, há artistas que atribuem ao título uma importância pelo menos tão grande como a que a imagem possui. Um deles é Ana Vidigal.
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O que é um título? Para a maior parte da produção artística contemporânea, muito pouco. Habituámo-nos a visitar exposições onde esculturas, pinturas, vídeos e instalações ostentam o "sem título" que nada diz, a não ser que o que vemos é um objecto (ou uma imagem) que o autor pretende sem relações miméticas ou representacionais com aquilo que se convencionou chamar o mundo exterior. Esta prática, que possui as suas raízes no modernismo, deixou de se tornar inatacável em finais do século XX. Hoje, há artistas que atribuem ao título uma importância pelo menos tão grande como a que a imagem possui. Um deles é Ana Vidigal.
"Queen Anne", a primeira exposição que realiza na Galeria Baginski, inaugurada anteontem, estava já pensada e quase pronta quando a artista, num jantar entre amigos, se queixou de que ainda não tinha título. Uma actriz amiga sugeriu: "Esta só pode ser estilo Queen Anne!". O dito, que brincava com o nome da artista, ficou. É que o estilo Queen Anne, que designa especificamente o barroco arquitectónico inglês, possui significados diferentes noutros países anglófonos, referindo-se em geral ao revivalismo pesado, extremamente decorativo, de finais do século XIX. "É uma coisa muito arrebicada", diz Vidigal, pensando provavelmente em vivendas que se poderiam encontrar numa Disneylândia qualquer, produto da massificação estilística que a indústria de entretenimento infantil norte-americana realiza com a maior eficácia.
A ideia da massificação das imagens destinadas às crianças adapta-se particularmente bem ao trabalho de Vidigal. Já nos tempos da ESBAL, de onde saiu em 1984, tinha por hábito integrar os restos dos trabalhos que fazia nas diversas disciplinas na pintura ou no desenho. A pouco e pouco, esses detritos (que já não o eram) passaram a ser seleccionados a partir do extenso espólio das imagens destinadas ao consumo feminino - e, também, à educação da mulher e da menina - a partir da década de 60, que coincide com a infância da artista. O trabalho sobre a pintura espelhou assim uma reflexão sobre a construção da identidade feminina na sociedade portuguesa da segunda metade do século XX, através do processo de apropriação e recontextualização das imagens - e também das palavras, já que em todos estes trabalhos a inclusão de frases, retiradas de livros, revistas ou documentos pessoais, esteve sempre incluída. Ana Vidigal é uma pintora, mas uma pintora que trabalha com as palavras e as imagens que outros criaram: imagens que ninguém vê e frases que todos lêem mas que não surgem nas recolhas de citações ou frases célebres.
DesmaterializaçãoEm "Queen Anne", que fica na Galeria Baginski até 5 de Novembro, há duas séries distintas de trabalhos. A primeira, que mais facilmente associamos ao estilo de Ana Vidigal, fica na sala principal da galeria e é composta por peças trabalhadas por acumulação, onde se destacam as molduras das histórias de quadradinhos esvaziadas de cada imagem. O resultado parece frágil como uma renda, o que aliás é ainda acentuado pelo facto de a artista incluir aqui e ali rendas de feltro, bordados vendidos em retrosarias de bairro, acumulações de autocolantes infantis e sobretudo muitos moldes de vestidos retirados provavelmente de antigas revistas de lavores.
A outra série, na segunda sala da galeria, é paradoxalmente austera: impressões a cores ou a preto e branco de paisagens sem personagens, estranhamente emolduradas com ramagens e arabescos. Ana Vidigal explica que são livros infantis vendidos com folhas de personagens autocolantes que as crianças devem colar em cada fundo de paisagem. Ao utilizar essas personagens nas pinturas da sala anterior, notou que as páginas vazias acentuavam a vulgarização do conceito de paisagem, e decidiu utilizá-las tal e qual. Por vezes, estas imagens reforçam-se com frases desenhadas que possuem uma dupla origem: "Frases banais de clássicos da literatura, ou frases geniais de livros sem valor. De qualquer modo, o processo é o mesmo que utilizo na pintura", explica a artista.
Estas últimas obras, que radicalizam o processo de trabalho de Vidigal, podem inserir-se naquilo que habitualmente se refere como "produção paralela": objectos manipulados, ou instalações onde a artista ora condensa de forma muito explícita a temática que a move, ora se refere de forma evidente, sem as camadas de materiais que costuma sobrepor, à sua vida pessoal. Nesta exposição, as duas vertentes do trabalho da autora possuem o mérito de poderem ser vistas simultaneamente, com o mesmo destaque, sem considerações pela facilidade ou não de comercialização desta ou doutra obra.
Do mesmo modo, na noite da inauguração, foi projectada uma série de filmes de Vidigal no Espaço Teatro Praga, intitulada "Cine Mar(a)vil(h)a", com peças já divulgadas anteriormente nas suas páginas pessoais da Internet. E é por isso que a obra de Ana Vidigal se afasta cada vez mais da pintura tradicional, mesmo quando guarda o formato, a bidimensionalidade, o uso da cor e da figura. Ela parece caminhar para a desmaterialização que a imagem digital e a impressão a jacto de tinta convocam, e mesmo quando as palavras - banais ou não - a reforçam, este desvanecer não pára, e o sentido de cada peça abre-se para a indefinição total.