A arte nas nossas mãos

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Catarina Leitão deu um passo decisivo em direcção ao livro no Center for Book Arts de Nova Iorque

Em Portugal, as artes visuais andam a sair, discretamente, das paredes do cubo branco para acabarem nas mãos dos seus aficionados. No Porto e em Lisboa, existem lojas que vendem livros de artista e "photobooks", cresce o número de editoras especializadas e organizam-se feiras dedicadas à edição independente ou ao livro de fotografia. E (o que é mais revelador) vão surgindo nomes que fazem das especificidades do livro a matéria-prima das suas obras.

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Em Portugal, as artes visuais andam a sair, discretamente, das paredes do cubo branco para acabarem nas mãos dos seus aficionados. No Porto e em Lisboa, existem lojas que vendem livros de artista e "photobooks", cresce o número de editoras especializadas e organizam-se feiras dedicadas à edição independente ou ao livro de fotografia. E (o que é mais revelador) vão surgindo nomes que fazem das especificidades do livro a matéria-prima das suas obras.

Categoria ambígua, mutável, que se materializa em objectos híbridos, o livro de artista tem uma história que desafia limites cronológicos e conceptuais. Há quem aponte Stéphane Mallarmé e Filippo Marinetti como pioneiros - o primeiro professava a beleza da página, o futurista via nesta um espaço da arte - ou descubra antecessores legítimos nas publicações surrealistas e nas vanguardas literárias. A tese mais comum e contemporânea leva-nos a 1963, data da publicação de "Twentysix Gasoline Stations", por Edward Ruscha, uma sequência de fotografias de postos de gasolina entre Los Angeles e Oklahoma, impressa numa edição barata, portátil, com um design simples e profissional. O artista americano anunciava assim a portabilidade, a massificação e a democratização da obra de arte, gesto que enfatizaria nos anos seguintes, recorrendo ao mesmo suporte: o livro

O final da década favorecia utopias, como as fomentadas pela desmaterialização do objecto artístico e a emergência da arte conceptual. Logo os tempos mudaram. Galerias e editoras rapidamente capitalizaram o novo formato, que afinal tinha custos e não era dirigido a um público alargado (que pura e simplesmente não existia).

A arte portuguesa não foi indiferente à experiência do livro, às (novas) relações que prometia entre texto e imagem, à sua volumetria ou materialidade. Basta recordar Lourdes Castro, Ana Hatherly, Ernesto de Sousa, Carlos Nogueira, Jorge Vieira, Manuel Baptista, Vítor Pomar, Ana Jotta, e nos últimos anos, Sónia Almeida, Nuno da Luz, Pedro Diniz Reis, Gabriela Albergaria, Joana Bastos, André Guedes, Miguel Palma, Vasco Barata ou Bruno Pacheco. Não consistirá escândalo, no entanto, afirmar, que na maioria destes casos o livro de artista raramente ganha proeminência sobre os outros suportes ou ocupa nas obras um lugar pouco mais do que periférico. Menos dependente de características fixadas historicamente (como as disciplinas tradicionais), com uma escala particular, longe da parede, tem escapado ao mercado, à academia e ao público. Como uma curiosidade discreta.

Talvez as coisas estejam mudar, lentamente. No Porto, a Inc., uma loja especializada, acolhe e promove desde 2010 projectos realizados a partir do suporte do livro (edições limitadas, auto-publicações), bem como serigrafias e vinis. E a par da dimensão comercial, enquanto não se lança na edição, vai desenvolvendo contactos internacionais que já valeram descobertas inesperadas (como um exemplar raro de um livro de Lourdes de Castro). Em Lisboa, o espaço Tijuana, na galeria Vera Cortês, cumpre um papel semelhante, tal como a associação STET, do artista Paulo Catrica e da comissária Filipa Valladares, dedicada à imagem fotográfica. Num outro patamar, refira-se a livraria de arte da Culturgest de Lisboa, com uma ampla secção de publicações, escritos e entrevistas de artistas internacionais.

Sequência e fragmento

Em Junho passado, no Arquivo Municipal de Lisboa, Sílvia Prudêncio (Lisboa, 1981) protagonizou uma situação pouco vulgar na arte portuguesa: estreou-se no contexto expositivo com um livro de artista. Intitulado "Colecção", compunha-se de dez pequenos volumes, cada um mostrando uma sequência de imagens fotográficas que, posicionada de uma forma particular nas páginas, provocava um jogo entre o livro e os conteúdos. As imagens (figuras e eventos próximos da mancha e do desenho) alternavam da esquerda e para direita (e vice-versa) e pareciam repetir-se, baralhando a interpretação e a leitura. "Queria que fosse uma coisa pequena, que implicasse uma proximidade física, uma intimidade que acabava negada pelas imagens. Mas não ultrapassava ou subvertia o funcionamento tradicional do livro", esclarece. "Intrometia apenas a sua materialidade na disposição dos conteúdos para frustrar as expectativas em relação ao objecto". Não por acaso, o título esconde-se nas últimas páginas e não há qualquer numeração ou índice. "Quis, acima de tudo, pensar o livro como um todo, reconhecê-lo na sua totalidade e complexidade. Pensar as relações que se podem criar entre a sequência como um todo e a página do livro como um fragmento. E trabalhá-las como um espaço de paradoxos".

Depois de "Colecção", que tem uma edição disponível na STET (e a partir de Setembro chegará à Tijuana), Sílvia Prudêncio espera continuar a trabalhar com livros, agregados ou não a outros dispositivos. Quanto à democratização da sua obra, através de mais edições, dependerá da existência e do interesse de um público: "Uma edição em maior quantidade, apesar de baixar o custo de cada livro, aumenta o investimento necessário para a produção. Faço edições pequenas porque é a única forma que tenho de concretizar as coisas".

Isabel Baraona (Cascais, 1974) tem consagrado na sua produção um lugar preponderante ao livro, sobretudo nos últimos anos. Dois factores explicam esta decisão. O ambiente receptivo aos livros de artistas e à edição independente de Bruxelas, onde se formou em pintura na Ecole Nationale Supérieure des Arts Visuels - La Cambre e a realização de um doutoramento subordinado ao auto-retrato e à auto-representação no século XX que teve, entre outros casos de estudo, a artista francesa Sophie Calle. "Há um lado muito democrático na sua obra. Os livros [dela] são, brochados a tecido, com aplicações de folha de ouro e relevos, mas vendem-se a 20 a 30 euros. Os detalhes enfatizam o lado conceptual, mas também o lado sensual, quando os folheamos, tocamos, manipulamos". Estava dado o mote para uma actividade que, esboçada durante os tempos de estudante na Ar.Co, se prolongaria até hoje. "Peguei num projecto que tinha na gaveta e fiz uma colecção de cinco livros com desenhos. Cada um remete para diferentes facetas das nossas vidas. Não são ilustrações ou histórias fechadas. Para mim, o ideal é que o leitor os folheie e se identifique com algumas personagens ou cenas, que saltam de um livro para o outro".

Da parede para as mãos

Nos projectos seguintes, Isabel Baraona continuou a explorar a narração e a figuração humana no desenho, acrescentando-lhe novos elementos (carimbos, selos, autocolantes, fotografias, tecidos), sem que tal ameaçasse a acessibilidade económica dos livros. "Não são baratos de fazer, uso papel reciclado, ecológico, mas procuro que sejam acessíveis ao maior número de pessoas. Tenho a convicção de que se pode fazer um bom objecto num bom papel e com algum dinheiro. Pagar o livro e ter dinheiro para o próximo, mantendo-o acessível, é um ponto ético do meu trabalho". As histórias e as situações representadas pela artista constroem diários gráficos contaminados pela ficção e partilhados pelos leitores. O formato reduzido e a facilidade com que é manuseado apelam ao uso e à portabilidade e, inevitavelmente, as marcas da gordura da pele partilham as páginas com as intervenções sobre o papel.

Já a aproximação de Catarina Leitão (Estugarda, Alemanha, 1970) ao suporte do livro foi marcada por fases distintas. Em 2001, motivada por questões como a relação do homem com a natureza e portabilidade da escultura, produziu uma série de tendas, que se fechavam num saco portátil e que eram acompanhadas de um livro de instruções. "Ainda não era um coisa assumida, mas já havia a intenção de associar à escultura e à instalação uma edição", revela. Anos depois, apresentou na Bienal de Pontevedra (2004) um conjunto de aguarelas e textos sobre papel ["Survival Systems - Urban Action Catalog"], que compunham um imaginário catálogo de equipamento militar e de campismo. O passo decisivo na direcção do livro só viria a dar-se em 2006, quando ingressou numa residência no Center for Book Arts em Nova Iorque. "Comecei a estudar engenharia do papel, tive aulas de encadernação, aprendi muito sobre impressão, tipografia. E isso mudou o meu trabalho plástico". Deste período resultaram "Wheatherproof" (2007), um livro em acordeão de 50 exemplares, e "Uplift", que, recorrendo ao "pop up", parte da bidimensionalidade da página para fazer do desenho algo que se fecha, que se dobra, entre sombras, buracos e o preto e o branco, evocando narrativas habitadas por objectos, árvores, figuras humanas

Exposta numa segunda versão na Casa das Artes, em Vigo (no âmbito da Bienal de Vila Nova de Cerveira deste ano), "Invasive Species" (2010-2011) explora alguns dos pressupostos destes trabalhos, algures entre o cubo branco e o livro: "É uma instalação de papel, versátil, móvel. As folhas têm buracos, dobram-se e fecham-se numa caixa que tem a forma de um livro gigante que se expande. E que remete para a ideia do ´pop up'".

Regressada a Portugal há ano e meio, Catarina Leitão descobriu um panorama animador para os livros de arte. Na Inc., há pouco mais de um mês, apresentou, entre outros trabalhos, "Drift", um fanzine que assegura a um público alargado uma entrada mais directa na sua obra, e alguns dos seus livros integram já importantes colecções de arte nacionais. Embora relativamente indiferente à academia (lembra-nos Isabel Baraona: "Não há em Portugal nenhuma Universidade com um departamento dedicado ao tema ou que o estude de forma séria"), o livro de artista lá vai reservando um lugar na galeria e nas nossas mãos.