Miguel Cadilhe: "Quem tem património também deve fazer sacrifícios"

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"Temos de dizer à UE - e a UE tem de compreender - que precisamos de um período de excepção" Paulo Pimenta

A viver uma situação aflitiva, Portugal tem que apostar nas exportações, para reduzir o défice externo, defende o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva, Miguel Cadilhe.

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A viver uma situação aflitiva, Portugal tem que apostar nas exportações, para reduzir o défice externo, defende o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva, Miguel Cadilhe.

A zona euro terá capacidade para sobreviver a esta crise?

Tem de ter. E digo isto com o à vontade de quem não esteve a favor da entrada de Portugal nos primórdios da criação do euro. Na altura, avisei que isto iria ser uma caminhada longuíssima e muito dolorosa para Portugal.

Mas já antecipava cenários como o que está a acontecer?

Sim. Nos primórdios do euro escrevi que o nosso PIB efectivo e potencial iriam sofrer ao longo de muitos anos, que a nossa estrutura produtiva não estava em condições de aguentar uma moeda forte como o euro, que íamos ter problemas de défice externo e de dívida externa. Mas tendo eu assumido essa posição, um pouco pessimista, acho que temos todos de defender o euro e a zona euro. Sobretudo para os países mais pequenos e com mais dificuldades, o desmantelamento do euro teria gravíssimas consequências, muito piores do que as que estamos agora a sentir.

Andamos a patinar nesta crise. De quem é a responsabilidade?

A Europa sofre da falta de qualidade das instituições.

Não é da falta de líderes?

É claro que quando as instituições não têm qualidade, os líderes não têm qualidade também. Um líder forte faz uma instituição forte.

Isso não acontece também porque os valores da solidariedade e da subsidiariedade se extinguiram?

Admito que sim, que haverá uma transposição para o nível europeu de falhas dos líderes dos Estados-membros, sobretudo aqueles que determinam o presente e o futuro da União Europeia (UE). É claro que me custa ver hoje os destinos da UE submetidos a uma Alemanha que, como pessoas mais sábias do que eu disseram, não está à altura dos problemas. Nós podemos estar à beira de uma germanização de parte da Europa.

Os programas de austeridade de Portugal e da Grécia não serão demasiado agressivos?

Mais vale ter austeridade que seja relativamente eficaz em dois ou três anos do que estar a alongá-la demasiado, correndo o risco de perder o controlo e o momento político.

A população está preparada para os sacrifícios e é bom que haja uma boa distribuição dos sacrifícios. O guião, chamemos-lhe assim, que é o memorando de entendimento e o programa de ajustamento que temos com as instituições internacionais, parece-me que nos levam a assumir a austeridade que deve ser. Menos do que isso, não é recomendável, não chega.

... Mas esse consenso por parte da população vai durar muito mais tempo, ou receia que as pessoas se impacientem e venham para as ruas, como em Atenas?

Receio, receio. Um risco é esse, o risco da agitação social, da saturação pelos sacrifícios, pela renúncia. E este risco poderá ser agravado se não houver visivelmente uma distribuição justa dos sacrifícios.

Há um segundo risco, que é o da má execução das medidas que estão no memorando de entendimento, e de ausência de outras medidas que são necessárias e, sobretudo, de reformas estruturais.

É claro que este esmorecimento não é muito provável porque a troika está atentíssima e vem cá pelo menos de três em três meses, e como o financiamento, os 78 mil milhões de euros, vêm aos bochechos, a conta-gotas, o conta-gotas pára se a execução não estiver bem. Mas o risco de execução e o risco social podem conjugar-se no pior sentido. Isto é, os nossos governantes podem assustar-se e sucumbir perante a agitação social, tentando reduzir o ritmo de execução do memorando. Isso, a meu ver, é pior, muito pior do que as consequências da austeridade bem executada.

As medidas conhecidas vão no sentido da justiça e da equitatividade na distribuição dos sacrifícios? O que lhe parece o corte no subsídio de Natal?

A austeridade tem sempre implicações mais directas e mais sentidas nas classes média e média-baixa, que são a maioria da população.

Está a dizer que não há uma justa distribuição dos custos da austeridade...

Assim não. A palavra justa é sempre relativa. Não podemos cair na utopia de pretender uma distribuição igualitária. Mas devemos procurar o mais possível que essa justa distribuição de sacrifícios seja, e repito-me, visivelmente procurada pelos políticos, pelos governantes.

O caso do IRS extraordinário pode não ser o melhor instrumento para conseguir essa justiça na distribuição de sacrifícios, porque bem sabemos que muitas pessoas escapam ao IRS. E as pessoas colectivas não estão abrangidas. Por isso, no PÚBLICO, escrevi, aqui há uns tempos, aquela nota sobre um imposto, não sobre o rendimento, mas sobre o património, pedindo a todos os portugueses e a todas as pessoas colectivas uma pequena contribuição, de três ou quatro por cento sobre o património líquido, isto é, retirando passivos até determinado limite. De fora estariam famílias de patrimónios mais baixos, claro.

Depois, uma família de rendimentos médios ou médio-baixos que tem a sua casa, que tem a sua poupança, não seria atingida. Então, seriam chamados a esse imposto extraordinário sobre o património líquido as pessoas singulares de maior património e as pessoas colectivas, empresas, fundações, associações e congéneres.

E meteria nesse alargamento da base dos que pagam a austeridade os rendimentos de capital?

Aqui só meteria património. Os rendimentos do património geram rendimentos sujeitos a IRS. Voltando ao IRS extraordinário, é claro que ele deveria incidir não apenas sobre os rendimentos do trabalho mas também sobre os rendimentos de capital, rendimentos prediais, enfim, todos os rendimentos. [NOTA: esta entrevista foi realizada antes de o ministro das Finanças ter revelado os detalhes do imposto.]

Está a evoluir para um pensamento mais à esquerda?

Porquê? Por causa do imposto extraordinário? Não, não estou. Mas curiosamente, no fórum para a competitividade, que congrega sobretudo empresas, apresentei esta ideia. Não era o melhor ambiente, mas essa ideia de um imposto extraordinário sobre o património líquido foi muito discutida e quase todos a consideraram de um conteúdo ético indiscutível...

... mas...

Mas atingia, digamos... vou aqui utilizar uma expressão marxista, e eu não sou marxista... atingia a origem de classe daquele fórum. O que me leva a propor esse imposto? É precisamente a preocupação quanto ao risco social.

A sociedade, as famílias, têm de perceber que também são chamadas a esses sacrifícios as pessoas que têm património, que podem. Uma pessoa que tem uma casa, alguma poupança e filhos a estudar fica de fora deste sacrifício, e vai reparar que não é chamada a esse imposto extraordinário. Uma vez, perante pessoas que levantaram objecções a esta ideia, disse: "Olhe, eu a muito custo avancei com esta ideia, vai contra a minha filosofia, contra os meus conceitos de política económica." Mas isso seria numa situação de normalidade, e nós estamos numa situação absolutamente anormal.

Precisamos de mostrar ao risco social que estamos preocupados com uma mais justa distribuição de sacrifícios e temos também de mostrar aos credores externos que queremos assumir medidas eficazes para reduzir a dívida além do memorando. Atenção que esse imposto extraordinário iria directamente à dívida, não passaria pelo orçamento, o que poderia levar os políticos a fazer mais despesas ou a reduzir menos as despesas.

É mais importante dar provas aos credores ou anular o risco social?

Eu valorizo as duas vertentes. Pelo lado do convencimento dos nossos credores externos, as minhas estimativas mostram que daria para reduzir o rácio da dívida em dez pontos percentuais do PIB ou mais. Ora, passar o rácio da dívida de 92 ou 93 por cento do PIB para oitenta e tal por cento, em 2011, de uma só vez (com o compromisso de que não seria repetível) era mostrar que nós estamos verdadeiramente determinados a reduzir o rácio da dívida, ao mesmo tempo que procuramos justiça na distribuição dos sacrifícios

O Governo foi então pelo mau caminho ao optar pelo corte no 13.º mês...

Eu preferiria não ter ido por aí. Sobretudo porque tem a alternativa do imposto extraordinário, que vai directamente à dívida, não retira pressão sobre a redução das despesas públicas - aí é que está o nosso mal - e, finalmente, porque o primeiro-ministro, quando ainda não o era, prometeu o contrário.

Isso é preocupante?

Incomoda-me imenso. Eu acho que as principais promessas eleitorais, em democracia, devem ser cumpridas. Tenho pena que, logo nos primeiros dias, a palavra tenha sido quebrada.

Com as medidas actualmente em curso, acha que Portugal tem condições para pagar a dívida?

Depende do crescimento económico e da redução dos défices externos. Quer uma coisa quer outra não estão totalmente ao nosso alcance. O crescimento económico depende da procura externa, assim como o défice externo. Podemos procurar vender produtos com qualidade e a bom preço - mas atenção que o preço está condicionado pelo euro forte e nós não mandamos nele. Mas quanto ao crescimento económico, o que é que os nossos políticos podem fazer por ele? Os políticos podem e devem fazer reformas estruturais...

Na legislação do trabalho, por exemplo?

Sim. E devem reduzir o peso do Estado no sector público administrativo, porque fazemos despesa pública a mais e depois carga fiscal a mais, entrando assim num círculo vicioso. São necessárias políticas de redução de custos das empresas.

Inclui aí a redução da Taxa Social Única (TSU)?

Incluo. Mas incluo também os tempos de trabalho.

Defende, então, a redução da TSU e mais meia hora de trabalho por dia...

Por exemplo. E a questão dos feriados, também. Na segunda metade dos anos 1990, no governo Guterres, houve um aumento do tempo de férias, sem mexer nos salários e sem que o acréscimo da produtividade permitisse isso, porque estava a ser absorvido pelo aumento dos salários reais. Isso foi um erro.

Mas nos últimos anos, as empresas mostraram ganhos de competitividade no estrangeiro, com taxas de crescimento das exportações em 7/8 por cento.

Sim, mas as empresas podem estar, neste momento, a sacrificar as suas margens de lucro, o que faz sacrificar o investimento e o seu próprio futuro.

Voltemos à questão da TSU. Em que medida é que se deve mexer?

Portugal está numa situação aflitiva. Portugal quer cumprir as exigências da zona euro, mas precisa de tempo para resolver o seu maior desequilíbrio, que é o desequilíbrio externo. Dêem tempo a Portugal para cumprir essas exigências.

Precisamos de tempo para quê?

Para podermos assumir políticas públicas que discriminem a favor das exportações. Isso hoje não é possível pelas regras da UE. Então nós temos que dizer à UE e a UE tem que compreender que nós somos um pequeno país em aflição, que precisamos de um período de excepção. Precisamos de cinco a dez anos para executar políticas públicas a favor dos nossos exportadores, continuando nós no euro. Esse plano inclui a redução da TSU - que seja em 20 pontos percentuais -, mas só para exportadores.

Mas isso não é permitido pela legislação europeia...

Não, porque é discriminação a favor de exportadores. Mas o que nós pediríamos era a suspensão dessa legislação, porque nós estamos numa situação também excepcional.

A Moody"s cortou o rating da República e diz que Portugal terá que recorrer a um novo empréstimo externo. Acha que esta visão é realista, é pessimista?

No mínimo é prematura. A Moody"s pode ter dúvidas quanto ao ritmo de execução. Também pode ter dúvidas de que, mesmo executando bem, seja insuficiente. Mas a Moody’s justificou o corte também porque tem dúvidas sobre o crescimento. E aí, eu dou-lhes razão. O crescimento económico não dá para pagar dívidas, dá é para fazer mais dívidas.

No actual contexto não se justificaria a existência de um governo económico europeu, um ministro das Finanças europeu?

Os pensadores do euro e das suas instituições não anteviram uma crise financeira, nem sequer de pequena dimensão. Começando pela hipótese de um ministro das Finanças europeu, não me parece bem. Passando para a solução de criação de um governo económico europeu: eu não gosto muito da ideia. Se não fossem estas circunstâncias anormalíssimas, o governo económico não apareceria tão cedo. Mas, às tantas, vai ser uma consequência desta situação.

O BPN tem solução?

Tinha, em 2008, com o plano que a minha equipa apresentou. Era um plano para regenerar o banco, em que os privados se aliavam ao Estado. O Estado injectava dinheiro fresco, mediante acções preferenciais, remíveis, com um rendimento assegurado acima da dívida pública. Mas o ministro das Finanças (Teixeira dos Santos), acolitado pelo governador do Banco de Portugal na altura, Vítor Constâncio, disse que não ao nosso plano, em poucos dias, e decidiu nacionalizar o banco.

Curiosamente, ontem (segunda-feira passada), fiquei surpreendido quando vi o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, dizer que nacionalização do BPN "foi um completo erro". Agora, se aparecer comprador, o banco terá continuidade. Se não houver, a solução será integrá-lo na Caixa Geral de Depósitos.