Miguel Cadilhe: "Quem tem património também deve fazer sacrifícios"
A viver uma situação aflitiva, Portugal tem que apostar nas exportações, para reduzir o défice externo, defende o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva, Miguel Cadilhe.
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A viver uma situação aflitiva, Portugal tem que apostar nas exportações, para reduzir o défice externo, defende o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva, Miguel Cadilhe.
A zona euro terá capacidade para sobreviver a esta crise?Tem de ter. E digo isto com o à vontade de quem não esteve a favor da entrada de Portugal nos primórdios da criação do euro. Na altura, avisei que isto iria ser uma caminhada longuíssima e muito dolorosa para Portugal.
Mas já antecipava cenários como o que está a acontecer?Sim. Nos primórdios do euro escrevi que o nosso PIB efectivo e potencial iriam sofrer ao longo de muitos anos, que a nossa estrutura produtiva não estava em condições de aguentar uma moeda forte como o euro, que íamos ter problemas de défice externo e de dívida externa. Mas tendo eu assumido essa posição, um pouco pessimista, acho que temos todos de defender o euro e a zona euro. Sobretudo para os países mais pequenos e com mais dificuldades, o desmantelamento do euro teria gravíssimas consequências, muito piores do que as que estamos agora a sentir.
Andamos a patinar nesta crise. De quem é a responsabilidade?A Europa sofre da falta de qualidade das instituições.
Não é da falta de líderes?É claro que quando as instituições não têm qualidade, os líderes não têm qualidade também. Um líder forte faz uma instituição forte.
Admito que sim, que haverá uma transposição para o nível europeu de falhas dos líderes dos Estados-membros, sobretudo aqueles que determinam o presente e o futuro da União Europeia (UE). É claro que me custa ver hoje os destinos da UE submetidos a uma Alemanha que, como pessoas mais sábias do que eu disseram, não está à altura dos problemas. Nós podemos estar à beira de uma germanização de parte da Europa.
Os programas de austeridade de Portugal e da Grécia não serão demasiado agressivos?Mais vale ter austeridade que seja relativamente eficaz em dois ou três anos do que estar a alongá-la demasiado, correndo o risco de perder o controlo e o momento político.
A população está preparada para os sacrifícios e é bom que haja uma boa distribuição dos sacrifícios. O guião, chamemos-lhe assim, que é o memorando de entendimento e o programa de ajustamento que temos com as instituições internacionais, parece-me que nos levam a assumir a austeridade que deve ser. Menos do que isso, não é recomendável, não chega.
... Mas esse consenso por parte da população vai durar muito mais tempo, ou receia que as pessoas se impacientem e venham para as ruas, como em Atenas?Receio, receio. Um risco é esse, o risco da agitação social, da saturação pelos sacrifícios, pela renúncia. E este risco poderá ser agravado se não houver visivelmente uma distribuição justa dos sacrifícios.
Há um segundo risco, que é o da má execução das medidas que estão no memorando de entendimento, e de ausência de outras medidas que são necessárias e, sobretudo, de reformas estruturais.
É claro que este esmorecimento não é muito provável porque a troika está atentíssima e vem cá pelo menos de três em três meses, e como o financiamento, os 78 mil milhões de euros, vêm aos bochechos, a conta-gotas, o conta-gotas pára se a execução não estiver bem. Mas o risco de execução e o risco social podem conjugar-se no pior sentido. Isto é, os nossos governantes podem assustar-se e sucumbir perante a agitação social, tentando reduzir o ritmo de execução do memorando. Isso, a meu ver, é pior, muito pior do que as consequências da austeridade bem executada.
As medidas conhecidas vão no sentido da justiça e da equitatividade na distribuição dos sacrifícios? O que lhe parece o corte no subsídio de Natal?
A austeridade tem sempre implicações mais directas e mais sentidas nas classes média e média-baixa, que são a maioria da população.
Está a dizer que não há uma justa distribuição dos custos da austeridade...Assim não. A palavra justa é sempre relativa. Não podemos cair na utopia de pretender uma distribuição igualitária. Mas devemos procurar o mais possível que essa justa distribuição de sacrifícios seja, e repito-me, visivelmente procurada pelos políticos, pelos governantes.
O caso do IRS extraordinário pode não ser o melhor instrumento para conseguir essa justiça na distribuição de sacrifícios, porque bem sabemos que muitas pessoas escapam ao IRS. E as pessoas colectivas não estão abrangidas. Por isso, no PÚBLICO, escrevi, aqui há uns tempos, aquela nota sobre um imposto, não sobre o rendimento, mas sobre o património, pedindo a todos os portugueses e a todas as pessoas colectivas uma pequena contribuição, de três ou quatro por cento sobre o património líquido, isto é, retirando passivos até determinado limite. De fora estariam famílias de patrimónios mais baixos, claro.
Depois, uma família de rendimentos médios ou médio-baixos que tem a sua casa, que tem a sua poupança, não seria atingida. Então, seriam chamados a esse imposto extraordinário sobre o património líquido as pessoas singulares de maior património e as pessoas colectivas, empresas, fundações, associações e congéneres.
E meteria nesse alargamento da base dos que pagam a austeridade os rendimentos de capital?Aqui só meteria património. Os rendimentos do património geram rendimentos sujeitos a IRS. Voltando ao IRS extraordinário, é claro que ele deveria incidir não apenas sobre os rendimentos do trabalho mas também sobre os rendimentos de capital, rendimentos prediais, enfim, todos os rendimentos. [NOTA: esta entrevista foi realizada antes de o ministro das Finanças ter revelado os detalhes do imposto.]
Está a evoluir para um pensamento mais à esquerda?Porquê? Por causa do imposto extraordinário? Não, não estou. Mas curiosamente, no fórum para a competitividade, que congrega sobretudo empresas, apresentei esta ideia. Não era o melhor ambiente, mas essa ideia de um imposto extraordinário sobre o património líquido foi muito discutida e quase todos a consideraram de um conteúdo ético indiscutível...
... mas...Mas atingia, digamos... vou aqui utilizar uma expressão marxista, e eu não sou marxista... atingia a origem de classe daquele fórum. O que me leva a propor esse imposto? É precisamente a preocupação quanto ao risco social.
A sociedade, as famílias, têm de perceber que também são chamadas a esses sacrifícios as pessoas que têm património, que podem. Uma pessoa que tem uma casa, alguma poupança e filhos a estudar fica de fora deste sacrifício, e vai reparar que não é chamada a esse imposto extraordinário. Uma vez, perante pessoas que levantaram objecções a esta ideia, disse: "Olhe, eu a muito custo avancei com esta ideia, vai contra a minha filosofia, contra os meus conceitos de política económica." Mas isso seria numa situação de normalidade, e nós estamos numa situação absolutamente anormal.
Precisamos de mostrar ao risco social que estamos preocupados com uma mais justa distribuição de sacrifícios e temos também de mostrar aos credores externos que queremos assumir medidas eficazes para reduzir a dívida além do memorando. Atenção que esse imposto extraordinário iria directamente à dívida, não passaria pelo orçamento, o que poderia levar os políticos a fazer mais despesas ou a reduzir menos as despesas.
É mais importante dar provas aos credores ou anular o risco social?Eu valorizo as duas vertentes. Pelo lado do convencimento dos nossos credores externos, as minhas estimativas mostram que daria para reduzir o rácio da dívida em dez pontos percentuais do PIB ou mais. Ora, passar o rácio da dívida de 92 ou 93 por cento do PIB para oitenta e tal por cento, em 2011, de uma só vez (com o compromisso de que não seria repetível) era mostrar que nós estamos verdadeiramente determinados a reduzir o rácio da dívida, ao mesmo tempo que procuramos justiça na distribuição dos sacrifícios
O Governo foi então pelo mau caminho ao optar pelo corte no 13.º mês...Eu preferiria não ter ido por aí. Sobretudo porque tem a alternativa do imposto extraordinário, que vai directamente à dívida, não retira pressão sobre a redução das despesas públicas - aí é que está o nosso mal - e, finalmente, porque o primeiro-ministro, quando ainda não o era, prometeu o contrário.
Isso é preocupante?Incomoda-me imenso. Eu acho que as principais promessas eleitorais, em democracia, devem ser cumpridas. Tenho pena que, logo nos primeiros dias, a palavra tenha sido quebrada.
Com as medidas actualmente em curso, acha que Portugal tem condições para pagar a dívida?Depende do crescimento económico e da redução dos défices externos. Quer uma coisa quer outra não estão totalmente ao nosso alcance. O crescimento económico depende da procura externa, assim como o défice externo. Podemos procurar vender produtos com qualidade e a bom preço - mas atenção que o preço está condicionado pelo euro forte e nós não mandamos nele. Mas quanto ao crescimento económico, o que é que os nossos políticos podem fazer por ele? Os políticos podem e devem fazer reformas estruturais...
Na legislação do trabalho, por exemplo?Sim. E devem reduzir o peso do Estado no sector público administrativo, porque fazemos despesa pública a mais e depois carga fiscal a mais, entrando assim num círculo vicioso. São necessárias políticas de redução de custos das empresas.
Inclui aí a redução da Taxa Social Única (TSU)?Incluo. Mas incluo também os tempos de trabalho.
Defende, então, a redução da TSU e mais meia hora de trabalho por dia...Por exemplo. E a questão dos feriados, também. Na segunda metade dos anos 1990, no governo Guterres, houve um aumento do tempo de férias, sem mexer nos salários e sem que o acréscimo da produtividade permitisse isso, porque estava a ser absorvido pelo aumento dos salários reais. Isso foi um erro.
Mas nos últimos anos, as empresas mostraram ganhos de competitividade no estrangeiro, com taxas de crescimento das exportações em 7/8 por cento.Sim, mas as empresas podem estar, neste momento, a sacrificar as suas margens de lucro, o que faz sacrificar o investimento e o seu próprio futuro.
Voltemos à questão da TSU. Em que medida é que se deve mexer?Portugal está numa situação aflitiva. Portugal quer cumprir as exigências da zona euro, mas precisa de tempo para resolver o seu maior desequilíbrio, que é o desequilíbrio externo. Dêem tempo a Portugal para cumprir essas exigências.
Precisamos de tempo para quê?Para podermos assumir políticas públicas que discriminem a favor das exportações. Isso hoje não é possível pelas regras da UE. Então nós temos que dizer à UE e a UE tem que compreender que nós somos um pequeno país em aflição, que precisamos de um período de excepção. Precisamos de cinco a dez anos para executar políticas públicas a favor dos nossos exportadores, continuando nós no euro. Esse plano inclui a redução da TSU - que seja em 20 pontos percentuais -, mas só para exportadores.
Mas isso não é permitido pela legislação europeia...Não, porque é discriminação a favor de exportadores. Mas o que nós pediríamos era a suspensão dessa legislação, porque nós estamos numa situação também excepcional.
A Moody"s cortou o rating da República e diz que Portugal terá que recorrer a um novo empréstimo externo. Acha que esta visão é realista, é pessimista?No mínimo é prematura. A Moody"s pode ter dúvidas quanto ao ritmo de execução. Também pode ter dúvidas de que, mesmo executando bem, seja insuficiente. Mas a Moody’s justificou o corte também porque tem dúvidas sobre o crescimento. E aí, eu dou-lhes razão. O crescimento económico não dá para pagar dívidas, dá é para fazer mais dívidas.
No actual contexto não se justificaria a existência de um governo económico europeu, um ministro das Finanças europeu?Os pensadores do euro e das suas instituições não anteviram uma crise financeira, nem sequer de pequena dimensão. Começando pela hipótese de um ministro das Finanças europeu, não me parece bem. Passando para a solução de criação de um governo económico europeu: eu não gosto muito da ideia. Se não fossem estas circunstâncias anormalíssimas, o governo económico não apareceria tão cedo. Mas, às tantas, vai ser uma consequência desta situação.
O BPN tem solução?Tinha, em 2008, com o plano que a minha equipa apresentou. Era um plano para regenerar o banco, em que os privados se aliavam ao Estado. O Estado injectava dinheiro fresco, mediante acções preferenciais, remíveis, com um rendimento assegurado acima da dívida pública. Mas o ministro das Finanças (Teixeira dos Santos), acolitado pelo governador do Banco de Portugal na altura, Vítor Constâncio, disse que não ao nosso plano, em poucos dias, e decidiu nacionalizar o banco.
Curiosamente, ontem (segunda-feira passada), fiquei surpreendido quando vi o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, dizer que nacionalização do BPN "foi um completo erro". Agora, se aparecer comprador, o banco terá continuidade. Se não houver, a solução será integrá-lo na Caixa Geral de Depósitos.