Primavera Árabe: Os símbolos e rostos de seis meses de revolta
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Os egípcios copiaram tudo, até o dégage, eles que são anglófonos”, dizia-nos em Maio Leila Tekaia, responsável do Turismo da Tunísia para a Península Ibéria. Sim, foram os tunisinos os primeiros a gritar “dégage” e a escrever a palavra francesa (“fora”) em cartazes dirigidos ao agora deposto Presidente Ben Ali, ao regime, ao seu partido RDC e até ao primeiro chefe de Governo interino depois da queda do ditador, Mohamed Ghannouchi, tal como a cada governador ou patrão contra os quais houve protestos depois de 14 de Janeiro. Os egípcios fizeram o mesmo com Hosni Mubarak. Os marroquinos com “Artigo 19 dégage”, em referência ao artigo que descrevia o poder intocável do rei na Constituição entretanto reescrita, tal como os argelinos gritaram “Sistema dégage”. Mas não só: na Costa do Marfim já se viram cartazes com a frase [Laurent] “Gbagbo dégage”, em Paris [Nicolas] “Sarko dégage” e em Lisboa “FMI dégage”.
“O povo quer”O povo começou por pedir empregos e combate à corrupção, mas depressa se tornou mais ambicioso: “O povo quer a queda do regime” tornou-se no slogan mais emblemático das revoltas árabes. Nasceu na Tunísia, onde foi ouvido principalmente em árabe, passou para o Egipto onde ocupou um lugar de destaque em duas faixas na Praça Tahrir, uma em árabe, outra em inglês. Chegou a Gaza e à Cisjordânia, onde “o povo quer o fim da divisão” entre a Fatah e o Hamas, e, numa versão menos ambiciosa, a outros países, como por exemplo à Jordânia, onde serviu para pedir reformas: “O povo quer uma reforma do regime e da Constituição”.
Foi fundamental na Síria, país onde a Primavera Árabe demorou um pouco a desabrochar. Foi por terem escrito estas palavras numa parede da cidade de Deraa que 15 adolescentes foram presos em Março, no incidente que desencadeou os protestos na cidade, em breve espalhados por todo o país. Na Líbia, face aos discursos surrealistas de Muammar Khadafi, inspirou rebeldes e activistas: “O povo quer o chapéu-de-chuva do coronel”, disseram os primeiros, depois de Khadafi ter discursado, a 21 de Fevereiro, à saída de um carro e abrigado por um chapéu-de-chuva; “O povo quer compreender o discurso”, escreveram os segundos no Facebook depois de outra aparição televisiva. “É uma palavra de ordem central, representativa da dimensão e do radicalismo do movimento. É uma fórmula que mostra que o povo quer tomar em mãos o seu destino e que compreendeu estar diante de regimes que não são reformáveis”, comentou ao jornal "Libération" Olfa Lamloum, politólogo do Instituto Francês do Médio Oriente, no Líbano.
Sextas-feirasO recurso às sextas-feiras para protestos não era inédito, mas a sexta-feira ficará agora para sempre como o dia em que caíram dois ditadores, o tunisino Ben Ali e o egípcio Hosni Mubarak. Faz sentido no mundo muçulmano, onde este é o dia da principal oração da semana (a do meio-dia) e em muitos países o primeiro dia do fim-de-semana. Não é o caso da Tunísia, mas aqui, como nos outros países árabes onde a contestação chegou, cedo os activistas perceberam que para contornar a proibição das manifestações o melhor era mesmo aproveitar a altura em que muitas pessoas já estão reunidas. Foi o factor multidão que levou a que muitos dos principais atentados dos últimos anos no Iraque tivessem acontecido precisamente à sexta-feira, o mesmo dia escolhido pelo líder xiita Muqtada al-Sadr para mostrar a força do seu movimento.
No Egipto, por exemplo, a primeira manifestação convocada via Facebook foi marcada para dia 25 de Janeiro, uma terça-feira. Mas foi só na sexta-feira, dia 28, que o movimento de contestação realmente ganhou força. Seguiram-se a “sexta-feira da partida” e ainda a “sexta-feira do adeus”, uma promessa cumprida, a 11 de Fevereiro. Quatro semanas depois de Ben Ali, caía Mubarak. “Khadafi decidiu suprimir todas as sextas-feiras do calendário”, brincou por esses dias um blogger. Seguiram-se sextas-feiras com nomes diferentes também no Iémen e na Síria, países onde os protestos se tornaram diários mas sempre maiores a cada sexta-feira. No Iraque, na Jordânia e em Omã, todos os protestos realizados aconteceram à sexta-feira.
Depois do Cairo e da ocupação pacífica de duas semanas da praça Tahrir, países que não tinham uma (o nome significa praça da Libertação e são muitas as cidades árabes que as têm) passaram a ter. Em Bagdad sempre que há protestos acontecem às sextas-feiras numa praça Tahrir. Já no Bahrein, a rotunda com nome de Pérola passou a praça Pérola, antes de ser baptizada Tahrir e de o regime esmagar os protestos e derrubar o monumento que se erguia na rotunda e lhe dava nome. No Iémen, os opositores ao regime de Ali Abdullah Saleh começaram a manifestar-se na praça da Universidade e depressa lhe mudaram o nome para Tahrir. Algumas das praças ocupadas em Espanha pelo movimento de “indignados”, que iniciou os seus protestos a 15 de Maio, foram também rebaptizadas como Tahrir.
Mohamed BouaziziFoi o primeiro símbolo da Primavera Árabe. O jovem vendedor ambulante tunisino que se imolou pelo fogo a 17 de Dezembro (e acabou por morrer das queimaduras a 4 de Janeiro) começou por dar nome à praça principal da sua cidade, Sidi Bouzid, e slogans aos protestos na Tunísia. “Somos todos Bouazizi”, gritou-se por todas as cidades do país, enquanto dezenas de pessoas, na Tunísia, mas também na Argélia e no Egipto se imolavam pelo fogo.
O egípcio Khaled Said já tinha morrido quando a contestação massiva de Janeiro chegou ao Egipto, mas o jovem de 28 anos, vítima da violência policial e do estado de emergência que proibia as manifestações, tornou-se num ícone da Primavera Árabe no Egipto. “Somos todos Khaled Said” era o nome de uma página do Facebook e o seu administrador, Wael Ghonim, que trabalha para a Google, acabou por se tornar também numa figura da revolução.
Há mais rostos que se tornaram símbolos, em cada país. Hamza, 13 anos, morto e torturado pelo regime, depois de ser detido durante uma manifestação a 29 de Abril, “sexta-feira de raiva”, é o rosto da revolução síria. “Somos todos Hamza” também é nome de páginas no Facebook e os activistas sírios já organizaram até um “dia de Hamza”.