A "geração Morangos" e a morte do artista
O empregado sai com uma bandeja cheia de shots para uma mesa. Ele, a decoração do bar, a zona onde está situado - o Largo de Santos, junto ao teatro A Barraca e ao bar Estado Líquido - não se parecem nada com os cenários da série Morangos com Açúcar. Os jovens, sim. Os cabelos, as roupas, os gestos, os tiques de linguagem, tudo parece copiado da série da TVI.
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O empregado sai com uma bandeja cheia de shots para uma mesa. Ele, a decoração do bar, a zona onde está situado - o Largo de Santos, junto ao teatro A Barraca e ao bar Estado Líquido - não se parecem nada com os cenários da série Morangos com Açúcar. Os jovens, sim. Os cabelos, as roupas, os gestos, os tiques de linguagem, tudo parece copiado da série da TVI.
"São péssimos, mas eu adoro", diz Mafalda, 19 anos, a respeito dos "Morangos". É estudante, tal como as três amigas que a acompanham, todas entre os 18 e os 19 anos - Francisca, Inês e Teresa. "Não representam a nossa geração." Quer dizer, talvez representem, mas "representam mal", corrige. "O povo real, a juventude, não são assim. Aquilo são maus actores, e as histórias não dão bons exemplos."
As quatro amigas enumeram as críticas, embora conheçam de cor todas as personagens e episódios. "É sexo atrás de sexo", diz uma. "A minha mãe proibia-me de ver. É mau exemplo." Outra tem a comentar que as histórias são pobres e sempre iguais, o que se deve à escassez de actores e personagens. "Devia haver mais", sugere.
"Dantes era melhor", diz outra. Todas admitem que adoravam quando eram mais novas. Aos 12, 13 anos, não perdiam um episódio. Identificavam-se. Agora já não. "As personagens só pensam em sexo. Miúdas de 16 anos a fazer sexo." Acham mal, não gostam, não se sentem identificadas. Mas vêem. "São momentos de estupidez nos intervalos do estudo", explica uma. "Talvez no Seixal as pessoas se identifiquem mais."
Encontram outro grupo que desce a rua que vem do Largo do Conde-Barão, onde várias lojas de conveniência decidiram vender bebidas alcoólicas e se transformaram em bares de rua. Aqui, na Avenida D. Carlos I e na subida da Rua das Janelas Verdes, há milhares de jovens na rua, dentro ou à porta dos bares, em grupos barulhentos, circulando de um lado para o outro, muitos visivelmente embriagados, à medida que nos aproximamos das 3, 4 da manhã.
No interior de alguns carros, estacionados em locais estrategicamente pouco visíveis mas de onde se pode ver bem a zona, alguns homens de meia-idade esperam pacientemente. Pelo ar aborrecido vê-se que não são pedófilos, nem polícias à paisana tentando identificar os bares que vendem álcool a menores. São pais que esperam que os filhos terminem a noitada, enquanto os vigiam mais ou menos discretamente.
"Aquilo é ridículo. Os alunos da escola todos a dançar. Ninguém faz isso. Nas escolas da vida real as pessoas não passam a vida a dançar." Sofia e Madalena têm 16 anos. Dizem que viam e gostavam dos "Morangos" quando tinham 11, 12 anos. "Agora é só gays, maricas, ordinarices." Juntam-se três rapazes, José, Diogo e David, de 19 anos, estudantes do 1.º ano de Direito. Concordam com as amigas quanto à parte dos "gays e ordinarices". Viam a série quando eram mais novos. "Foi importante para todos nós. Eles era como se fossem nossos amigos. Além dos nossos amigos reais havia também aqueles, não fazíamos distinção."
Não gostavam dos D"zrt, a banda criada pelos produtores dos "Morangos" que depois saltou para a vida real e de que fazia parte Angélico. Mas ouviam, e foram a concertos. "A música não era má. Eu reconheço que era boa música", diz José, dividido entre uma certa obrigação de denegrir a "cultura Morangos" e a necessidade pessoal de defender a série e a música com as quais cresceu. "Eles levavam muita gente atrás, não há dúvida." Ao contrário dos amigos, que ambicionam apenas ser advogados, José pertence à Juventude Popular e não descarta a possibilidade de vir a "servir o país", se necessário.
No bar Refúgio das Freiras está tudo a dançar, incluindo as empregadas atrás do balcão, tão jovens como os clientes. As bebidas aqui têm um nome que não engana: balde. Balde de Cerveja, Balde de Vodca, Balde de Caipirinha. A porta está guardada por dois seguranças que não perguntam a idade a ninguém.
Carolina e Filipa, de 15 anos, Rita e João, de 16, também andam de bar em bar. "Quando éramos mais novos, não perdíamos um episódio" dos "Morangos". Identificavam-se com as personagens, aprendiam com elas a forma de vestir, as expressões. "Aquilo era viciante." Falavam como eles, pensavam como eles. "À hora a que passava o episódio não se via nenhum jovem na rua."
Admitem que foram influenciados. Que não seriam o que são hoje se não tivesse havido os "Morangos". "Eu passei pelos mesmos problemas que as personagens passavam", diz João. "Eles ajudaram os jovens." Carolina e Filipa admitem que eram fãs de Angélico - mas quando tinham 9 anos. "Aprendemos muito. Todos usávamos as mesmas expressões. Sofremos a influência deles. Foi uma boa influência." Apontam para um par de namorados que se beijam: "Aquilo também é influência dos "Morangos". As histórias são sempre à volta disto. Um que gosta de outro e depois ficam juntos." Na vida real também é assim. Muito por influência dos "Morangos", acha este grupo. "Os Morangos com Açúcar ensinaram-nos a namorar."
Aplausos no funeralQuando começa a sair fumo pela chaminé do crematório do cemitério de Vale Flores, no Feijó, há uma salva de palmas. Tudo o que Angélico fazia na vida era digno de aplauso. Por que razão seria agora diferente? Milhares de pessoas acompanharam o corpo do jovem actor e músico da Igreja do Laranjeiro ao cemitério do Feijó. No edifício do crematório só entram familiares e VIPs. Cantores, actores, modelos, figuras conhecidas da televisão são, por natureza, amigos de Angélico. Os outros são admiradores.
"Aposto que mais de 80 por cento das pessoas que estão aqui só vieram para aparecerem na televisão", diz um jovem negro de t-shirt sem mangas. O sol está insuportável. Há pessoas a desmaiar. "Ele era um rapaz muito alegre", diz Daiena, 19 anos, que diz ser vizinha dos tios de Angélico. "Estava sempre a rir. Era uma pessoa boa, que gostava de ajudar", diz Filomena, 47 anos, angolana, residente em Almada. Todos exaltam as características humanas de Angélico. Ninguém refere as artísticas. Mas ninguém lamenta a morte do ser humano. Antes celebram mais um episódio espectacular da vida de um "artista".
Angélico nunca quis ser músico ou actor. Foi "descoberto" por uma agência de modelos por ter um corpo escultural, e aos 21 anos foi seleccionado para integrar o elenco dos Morangos com Açúcar, uma série que inventou padrões estéticos, expressões de linguagem e modelos de comportamento para os adolescentes consumirem e imitarem. A banda D"Zrt também foi criada artificialmente, como elemento ficcional, e os seus membros foram escolhidos por casting.
"Ele era humilde. Um rapaz simples e bom", diz José, 42 anos, angolano a viver no Feijó, a respeito de Angélico, o músico "fabricado" que cobrava 15 mil euros por concerto e mil a dois mil euros por uma simples presença numa festa.
"Há pessoas que vêm a este mundo e cativam toda a gente. Outras não", explica Alberta, 61 anos. "Esse moço era assim. Arrastava todo o mundo atrás dele. Sabe-se lá porquê."
Enquanto decorre a cremação, circulam cá fora informações contraditórias, conspirativas, fantásticas. Angélico levava cinto de segurança, não levava, o carro tinha seguro, não tinha, quadrilhas de criminosos estavam presentes no funeral, etc. "O meu pai é mecânico e diz que é impossível que uma roda salte num carro daqueles. Aquilo foi alguém que desaparafusou... há muitas invejas."
Quando a mãe de Angélico sai do crematório, há palmas de novo. Quando sai Rita Pereira, actriz e ex-namorada de Angélico, a multidão aplaude e grita sincopadamente, como se puxasse pela sua equipa de futebol: "Rita! Rita! Rita!"
Uma menina negra de cabeleira enorme e uns 6 ou 7 anos de idade pergunta à mãe: "Cremado quer dizer que ele está a ser queimado?"
"Sim, filha."
"Queimado, mesmo todo a arder?"
"Sim", responde a mãe, sem prestar muita atenção.
"Mãe, eu quando morrer também quero ser cremada."