"Os Joy Division ofuscaram os New Order"
Entre 1963 e 1967, os Beatles operaram uma revolução musical (que se prolongaria até 1970). Foram de "Please Please Me" a "Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band", do registo da patente da simplicidade pop de "Love Me Do" à mais espantosa desconstrução desse mesmo monumento em "A Day in the Life". O facto era frequentemente lembrado por Kurt Cobain em entrevistas, argumentando assim a favor da excitação que sentia relativamente ao futuro dos Nirvana. "In Utero", o seu disco de despedida, soava curiosamente "beatleniano". Não saberemos, obviamente, o que se seguiria, se Cobain também descobriria o seu Maharishi Mahesh Yogi, tal como nunca teremos a certeza se a guitarra de Jimi Hendrix assentaria e deixaria sua existência em espiral, se Jeff Buckley cairia sempre artisticamente depois de "Grace", se Janis Joplin seria jurada de um concurso de talentos e actuaria em casinos e cerimónias de abertura de jogos olímpicos. Não saberemos nunca o que tiros na cabeça e afogamentos nas águas nocturnas do Mississípi ou no próprio vómito nos roubaram.
No caso de Ian Curtis - enforcado no tecto da sua casa enquanto "The Idiot", de Iggy Pop, rodava desoladoramente no gira-discos -, acredita Peter Hook, não há grande mistério quanto à música que estava destinado a fazer. "Penso que a forma como a música dos New Order evoluiu teria sido mais ou menos a mesma caso o Ian tivesse continuado a ser o vocalista. Tenho a certeza de que o interesse do Bernard [Sumner] e do Stephen [Morris] naquelas sonoridades teria sido o mesmo e o Ian teria cantado 'Blue Monday'". Traduzindo: o grupo que hoje conhecemos como New Order seria, sem grandes mexidas, Joy Division com mais uns anos e mais umas batidas electrónicas em cima. Estranhamente, a dança epiléctica de Ian Curtis mandaria nas pistas de dança de todo o mundo.
14-4Esse nexo e esse encadeamento, diz-nos o baixista de ambas as bandas, deveria constituir a bússola de "Total", best of conjunto que vai de "Transmission" a "Hellbent", o único inédito da compilação. Sempre de dedo em riste, pronto a encontrar culpados, Hook deixou-se seduzir pela possibilidade de se poder traçar uma linha contínua entre um grupo e outro, mas lamenta não lhe ter cabido a escolha do alinhamento. "É à editora, infelizmente, que cabe a decisão final - não o teria feito assim". Muito embora não faça a mínima ideia dos temas escolhidos por Sumner e Morris, uma vez que a comunicação entre um e outros tende para zero - e é apenas furada indirectamente por representantes legais das duas partes - culpa a editora. Entregue inteiramente a Hook, "Total" dispensaria os quatro temas dos Joy Division - "Transmission", "Love Will Tear Us Apart", "Isolation" e "She's Lost Control" -, substituindo-os por outros como "Something Must Break" ou "These Days".
"Ter-me-ia focado na evolução dos Joy Division para os New Order", justifica. "Teria sido mais interessante. Claro que a editora, na sua infinita sapiência, foi sempre pela abordagem mais comercial. Há um forte elo de ligação entre os New Order e os Joy Division a que muita gente não dá valor". E aqui, acontece algo próximo do milagre, quando Hook dedica ao homem a quem daí a uns minutos não hesitará em chamar "idiota" invulgares palavras de, digamos, respeito. "Raramente concordo com o Bernard, mas acho que ele tem razão quando diz que os Joy Division ofuscaram os New Order. É impossível contornar o facto de que os New Order foram muito mais bem sucedidos em termos comerciais. Mas culturalmente diria que os Joy Division foram mais importantes. Os New Order tiveram uma vida muito mais longa e é interessante que a compilação mostre isso". E mostra-o com um desequilíbrio evidente: 14-4.
Por outro lado, a vida afectiva dos Joy Division foi mais limpa, "mais harmoniosa, apesar da doença do Ian", confessa. "A banda acabou abruptamente, de forma confusa, nem sei como descrevê-lo, foi um final tão terrível. Mas não houve querelas internas, enquanto que os New Order foram massacrados por isso desde que o Ian morreu [risos]. Curiosamente, tudo parece fazer sentido, não é?".
Uma morte por mitologiaHook não vive num circuito fechado de ingenuidade e romantismo. Sabe com quantos paus se constrói uma canoa e com quantas mortes de constrói uma mitologia no rock. Basta uma. Desde que trágica e chegada antes da hora. "Acho que a música dos Joy Division aliada à morte precoce do Ian encerra na perfeição a mitologia rock'n'roll que toda a gente adora, especialmente os mais novos. A lenda rock'n'roll é muito apelativa", acrescenta ao telefone desde São Paulo. "Encaro isso como um grande elogio. O facto de eu poder trazer as minhas bandas ao Brasil para tocar a minha música é maravilhoso. É um elogio fantástico à música. O Bernard e o Stephen deviam estar muito orgulhosos com o facto de a sua música ainda ser amada em 2011 como no momento em que a compuseram em 1978. Deviam ter orgulho nisso. Eu tenho".
Deviam, claro. E o mais provável é que, sem surpresas, o sintam. Mas aquilo que Peter Hook nos está a dizer é que os restantes sobreviventes dos Joy Division não aprovam o que ele anda pelo mundo a fazer - espectáculos inteiramente compostos por reportório dos Joy Division e a gravação de um tema perdido de Curtis, "Pictures in My Mind", com a sua nova banda The Light. Hook desculpa-se dizendo que não fez nada para que lhe caísse no colo tal sorte. "Foi um fã dos Joy Division que me chamou a atenção para a música. A fita em que se encontrava tinha sido roubada e por isso eu nunca tinha ouvido a música. E o fã estava irritado comigo por nunca a ter ouvido. Assim que a ouvi, pensei 'eu podia terminar isto em meia hora'". No minuto que precedeu os outros 29, lembrou-se que Ian Curtis defendia sempre que as canções fossem terminadas. "Ele insistia para que terminássemos porque dizia que cada canção teria um grande significado para alguém. E eu achava que esse era um sentimento maravilhoso".
Sumner e Morris não acharam piada à apropriação. Da mesma maneira que têm passado a ideia de que Hook anda a encher os bolsos à conta do passado. "Acho espantoso que as pessoas me acusem de lucrar à conta da memória dos Joy Division. É um conceito ridículo, este de lucrar às custas de algo quando se esperou 30 anos para fazê-lo. Não foi um grande 'timing', pois não? [risos]. E o Bernard recusava-se simplesmente a tocar a maioria destas canções. Portanto, para as tocar teria de o fazer fora dos New Order. Ele não está interessado no passado. Ou pelo menos não estava. Agora anda a tocar canções dos Joy Division nos Bad Lieutenant... O tipo é um enigma".
Para Hook, tocar a música dos Joy Division novamente, após 30 anos, é um privilégio. E tem-no conduzido a uma revelação quanto ao público que encontra. "Aquilo que me espanta é que pensei que estaria a tocar este material dos Joy Division em 2011 para um grupo de velhotes como eu. Mas não, estou a tocar para um público muito jovem, amantes da música de hoje. Por muito que se possa ser crítico dos White Lies, Editors, Interpol ou Death from Above 1979, que são muito influenciados pelos Joy Division, o que se passa é que estes miúdos ouviram-nos através dessas bandas. De uma forma estranha e complementar, deram-me uma lufada de ar fresco a tocar música que escrevi há 34 anos".
De resto, Hook nunca sequer se entendeu com Sumner e Morris relativamente ao fim dos New Order. Enquanto para o baixista nem faz sentido que isso seja ainda uma questão, os outros têm repetido em entrevistas que a banda não está necessariamente enterrada. "Isso é porque eles são completamente idiotas", ri-se Hook. "Se não acabaram como justificam não terem feito outro disco desde então? Porque trabalham juntos como Bad Lieutenant e não como New Order?". Porque não concebem os New Order sem o baixo de Peter Hook, arriscamos. "Eu diria o mesmo. Da mesma forma que não existem sem o Stephen... bom, sem o Stephen talvez existissem, mas certamente que não sem o Bernard. Isto são zangas de recreio, que estragam tudo. Estas guerrinhas surgem sempre que se planeia algo com os New Order, e deixa sempre um travo amargo em toda a gente".
Uma das maiores virtudes de "Total" é, assim, a de ter salvado dos destroços o inédito "Hellbent", tema que tinha naufragado com mais uns quantos na tentativa falhada de integrar o último disco, "Waiting for the Siren's Call", de 2005. Depois da derradeira digressão, Peter Hook bateu com a porta e mandou retirar a fechadura. Nunca mais falou com os outros.
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Entre 1963 e 1967, os Beatles operaram uma revolução musical (que se prolongaria até 1970). Foram de "Please Please Me" a "Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band", do registo da patente da simplicidade pop de "Love Me Do" à mais espantosa desconstrução desse mesmo monumento em "A Day in the Life". O facto era frequentemente lembrado por Kurt Cobain em entrevistas, argumentando assim a favor da excitação que sentia relativamente ao futuro dos Nirvana. "In Utero", o seu disco de despedida, soava curiosamente "beatleniano". Não saberemos, obviamente, o que se seguiria, se Cobain também descobriria o seu Maharishi Mahesh Yogi, tal como nunca teremos a certeza se a guitarra de Jimi Hendrix assentaria e deixaria sua existência em espiral, se Jeff Buckley cairia sempre artisticamente depois de "Grace", se Janis Joplin seria jurada de um concurso de talentos e actuaria em casinos e cerimónias de abertura de jogos olímpicos. Não saberemos nunca o que tiros na cabeça e afogamentos nas águas nocturnas do Mississípi ou no próprio vómito nos roubaram.
No caso de Ian Curtis - enforcado no tecto da sua casa enquanto "The Idiot", de Iggy Pop, rodava desoladoramente no gira-discos -, acredita Peter Hook, não há grande mistério quanto à música que estava destinado a fazer. "Penso que a forma como a música dos New Order evoluiu teria sido mais ou menos a mesma caso o Ian tivesse continuado a ser o vocalista. Tenho a certeza de que o interesse do Bernard [Sumner] e do Stephen [Morris] naquelas sonoridades teria sido o mesmo e o Ian teria cantado 'Blue Monday'". Traduzindo: o grupo que hoje conhecemos como New Order seria, sem grandes mexidas, Joy Division com mais uns anos e mais umas batidas electrónicas em cima. Estranhamente, a dança epiléctica de Ian Curtis mandaria nas pistas de dança de todo o mundo.
14-4Esse nexo e esse encadeamento, diz-nos o baixista de ambas as bandas, deveria constituir a bússola de "Total", best of conjunto que vai de "Transmission" a "Hellbent", o único inédito da compilação. Sempre de dedo em riste, pronto a encontrar culpados, Hook deixou-se seduzir pela possibilidade de se poder traçar uma linha contínua entre um grupo e outro, mas lamenta não lhe ter cabido a escolha do alinhamento. "É à editora, infelizmente, que cabe a decisão final - não o teria feito assim". Muito embora não faça a mínima ideia dos temas escolhidos por Sumner e Morris, uma vez que a comunicação entre um e outros tende para zero - e é apenas furada indirectamente por representantes legais das duas partes - culpa a editora. Entregue inteiramente a Hook, "Total" dispensaria os quatro temas dos Joy Division - "Transmission", "Love Will Tear Us Apart", "Isolation" e "She's Lost Control" -, substituindo-os por outros como "Something Must Break" ou "These Days".
"Ter-me-ia focado na evolução dos Joy Division para os New Order", justifica. "Teria sido mais interessante. Claro que a editora, na sua infinita sapiência, foi sempre pela abordagem mais comercial. Há um forte elo de ligação entre os New Order e os Joy Division a que muita gente não dá valor". E aqui, acontece algo próximo do milagre, quando Hook dedica ao homem a quem daí a uns minutos não hesitará em chamar "idiota" invulgares palavras de, digamos, respeito. "Raramente concordo com o Bernard, mas acho que ele tem razão quando diz que os Joy Division ofuscaram os New Order. É impossível contornar o facto de que os New Order foram muito mais bem sucedidos em termos comerciais. Mas culturalmente diria que os Joy Division foram mais importantes. Os New Order tiveram uma vida muito mais longa e é interessante que a compilação mostre isso". E mostra-o com um desequilíbrio evidente: 14-4.
Por outro lado, a vida afectiva dos Joy Division foi mais limpa, "mais harmoniosa, apesar da doença do Ian", confessa. "A banda acabou abruptamente, de forma confusa, nem sei como descrevê-lo, foi um final tão terrível. Mas não houve querelas internas, enquanto que os New Order foram massacrados por isso desde que o Ian morreu [risos]. Curiosamente, tudo parece fazer sentido, não é?".
Uma morte por mitologiaHook não vive num circuito fechado de ingenuidade e romantismo. Sabe com quantos paus se constrói uma canoa e com quantas mortes de constrói uma mitologia no rock. Basta uma. Desde que trágica e chegada antes da hora. "Acho que a música dos Joy Division aliada à morte precoce do Ian encerra na perfeição a mitologia rock'n'roll que toda a gente adora, especialmente os mais novos. A lenda rock'n'roll é muito apelativa", acrescenta ao telefone desde São Paulo. "Encaro isso como um grande elogio. O facto de eu poder trazer as minhas bandas ao Brasil para tocar a minha música é maravilhoso. É um elogio fantástico à música. O Bernard e o Stephen deviam estar muito orgulhosos com o facto de a sua música ainda ser amada em 2011 como no momento em que a compuseram em 1978. Deviam ter orgulho nisso. Eu tenho".
Deviam, claro. E o mais provável é que, sem surpresas, o sintam. Mas aquilo que Peter Hook nos está a dizer é que os restantes sobreviventes dos Joy Division não aprovam o que ele anda pelo mundo a fazer - espectáculos inteiramente compostos por reportório dos Joy Division e a gravação de um tema perdido de Curtis, "Pictures in My Mind", com a sua nova banda The Light. Hook desculpa-se dizendo que não fez nada para que lhe caísse no colo tal sorte. "Foi um fã dos Joy Division que me chamou a atenção para a música. A fita em que se encontrava tinha sido roubada e por isso eu nunca tinha ouvido a música. E o fã estava irritado comigo por nunca a ter ouvido. Assim que a ouvi, pensei 'eu podia terminar isto em meia hora'". No minuto que precedeu os outros 29, lembrou-se que Ian Curtis defendia sempre que as canções fossem terminadas. "Ele insistia para que terminássemos porque dizia que cada canção teria um grande significado para alguém. E eu achava que esse era um sentimento maravilhoso".
Sumner e Morris não acharam piada à apropriação. Da mesma maneira que têm passado a ideia de que Hook anda a encher os bolsos à conta do passado. "Acho espantoso que as pessoas me acusem de lucrar à conta da memória dos Joy Division. É um conceito ridículo, este de lucrar às custas de algo quando se esperou 30 anos para fazê-lo. Não foi um grande 'timing', pois não? [risos]. E o Bernard recusava-se simplesmente a tocar a maioria destas canções. Portanto, para as tocar teria de o fazer fora dos New Order. Ele não está interessado no passado. Ou pelo menos não estava. Agora anda a tocar canções dos Joy Division nos Bad Lieutenant... O tipo é um enigma".
Para Hook, tocar a música dos Joy Division novamente, após 30 anos, é um privilégio. E tem-no conduzido a uma revelação quanto ao público que encontra. "Aquilo que me espanta é que pensei que estaria a tocar este material dos Joy Division em 2011 para um grupo de velhotes como eu. Mas não, estou a tocar para um público muito jovem, amantes da música de hoje. Por muito que se possa ser crítico dos White Lies, Editors, Interpol ou Death from Above 1979, que são muito influenciados pelos Joy Division, o que se passa é que estes miúdos ouviram-nos através dessas bandas. De uma forma estranha e complementar, deram-me uma lufada de ar fresco a tocar música que escrevi há 34 anos".
De resto, Hook nunca sequer se entendeu com Sumner e Morris relativamente ao fim dos New Order. Enquanto para o baixista nem faz sentido que isso seja ainda uma questão, os outros têm repetido em entrevistas que a banda não está necessariamente enterrada. "Isso é porque eles são completamente idiotas", ri-se Hook. "Se não acabaram como justificam não terem feito outro disco desde então? Porque trabalham juntos como Bad Lieutenant e não como New Order?". Porque não concebem os New Order sem o baixo de Peter Hook, arriscamos. "Eu diria o mesmo. Da mesma forma que não existem sem o Stephen... bom, sem o Stephen talvez existissem, mas certamente que não sem o Bernard. Isto são zangas de recreio, que estragam tudo. Estas guerrinhas surgem sempre que se planeia algo com os New Order, e deixa sempre um travo amargo em toda a gente".
Uma das maiores virtudes de "Total" é, assim, a de ter salvado dos destroços o inédito "Hellbent", tema que tinha naufragado com mais uns quantos na tentativa falhada de integrar o último disco, "Waiting for the Siren's Call", de 2005. Depois da derradeira digressão, Peter Hook bateu com a porta e mandou retirar a fechadura. Nunca mais falou com os outros.