"Sou incapaz de desinventar completamente uma vida"

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Nelson Garrido

Num tempo em que havia em Portugal um semanário chamado "Tempo" soube-se que num dia de Agosto de 1988 tinha morrido com 88 anos, no lugar de Venade, em Paredes de Coura, o poeta Tiago Veiga. O obituário desse poeta desconhecido e de obra inédita foi feito então por alguém que com ele privou durante os últimos 30 anos de vida, o escritor Mário Cláudio.

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Num tempo em que havia em Portugal um semanário chamado "Tempo" soube-se que num dia de Agosto de 1988 tinha morrido com 88 anos, no lugar de Venade, em Paredes de Coura, o poeta Tiago Veiga. O obituário desse poeta desconhecido e de obra inédita foi feito então por alguém que com ele privou durante os últimos 30 anos de vida, o escritor Mário Cláudio.

A parir desse Verão, Mário Cláudio mergulhou na arca do poeta e de lá retirou os inéditos já publicados: "Sonetos italianos de Tiago Veiga" (Asa, 2003), "Gondelim", (Quasi, 2008) e "Do Espelho de Vénus" (Arcádia, 2010). Os livros revelaram algumas das máscaras de um conservador atípico, de alma obviamente portuguesa mas com um coração que batia e se batia por mundos mais largos.

Agora, graças à revelação de um pacto estabelecido entre Mário Cláudio e Tiago Veiga que permitiu que o segundo tivesse obtido licença para biografar o primeiro, sabemos mais. O resultado dessa missão, "Tiago Veiga - Uma Biografia" (Dom Quixote), acaba de chegar às livrarias. Revela-nos um quase fidalgo da província minhota, um bisneto de Camilo Castelo Branco nascido para a errância nos alvores do século XX, que atravessou quase na totalidade. Fadado para cumprir a missão de revelar ao mundo o cosmopolitismo minhoto. De Jean Cocteau a António Ferro. Da Irlanda à Itália. Em Paris ou em Londres. Mas também numa Lisboa que nunca o surpreende, de tão enredada que está no seu tédio.  

Tiago Veiga é um incompreendido. Um solitário. Um poeta que nunca quis ser publicado em vida mas que preparou a sua revelação ao mundo. Deixou o seu biógrafo esgotado, mas feliz por ter percorrido esta vida. E entusiasmado na hora de explicar o que é escrever uma biografia com licença para inventar uma personagem tão vasta que talvez nunca tenha realmente existido. Este livro é um jogo. Nesta entrevista, aceitámos jogá-lo. 

Quando em 1900 vemos nascer Tiago Veiga, suspeitamos que vem aí um reaccionário pelo caldo de cultura onde nasce, numa província solarenga, rodeado de tias velhas, de terras férteis. Depois não é bem assim, parece-nos um conservador atípico. Mas envelhece de facto reaccionário.

Ele era um homem anti-sistema, e aí não se distingue da maioria dos criadores. Como pano de fundo havia um certo conservadorismo que passava pela identificação com o país sem qualquer laivo de internacionalismo. Nunca poderia ser um marxista, nem um católico ortodoxo. Mas claramente as suas simpatias inclinavam-se para a idiossincrasia dominante da portugalidade: a ligação ancestral à igreja católica, o respeito pelos valores da família, um certo culto de um bom gosto de classe a que ele nunca foge. A tentativa de rejeitar o boçal, o ordinário, picaresco.

E sai dos moldes da cultura judaico-cristã.

Tiago Veiga não é um judaico-cristão de formação. É um pagão, no sentido em que pugna pela sua integração na religiosidade cristã, tal como acontece na Irlanda e no mundo celta que frequentou nas suas errâncias e que está nas suas raízes familiares por parte da mãe. Também pelo convívio com a sua segunda mulher, igualmente irlandesa. E que tem muito a ver com o Norte de Portugal.

Porque é que mudam as décadas na vida de Tiago Veiga mas o país político, administrativo e mesmo literário continua triste e baço?

Porque continua assim. Tiago Veiga corporiza um desespero de Portugal. Uma certa consciência do fim da pátria eterna, uma certa consciência da inviabilidade da saída. No entanto ele apostava na individualidade. Portugal é um país que vive de pequenas explosões individuais, a acção do colectivo é quase nula ou irrelevante.

É por isso que ele, conhecendo todos os movimentos literários (modernistas, a geração da Presença, os surrealistas), nunca se inscreve em nenhum deles?

É outro vício da mentalidade portuguesa. A catalogação, o empacotamento, a classificação. Hoje, o domínio dos partidos, que exclui a individualidade do que não se encaixa, não é muito diferente dos problemas que Tiago Veiga viveu na sua época.

Mas a atitude de Tiago Veiga naquela altura não se aproxima assim de uma forma de diletantismo, de procurar ser um incompreendido pelo mundo, encontrando aí uma desculpa para a inadaptação e para o isolamento?

Não creio que ele fosse propriamente um diletante. Reconhecia-se como um cosmopolita provinciano e isso já o afasta do diletantismo. Era um ser errante. Pelas estradas do mundo e pelos caminhos da literatura. Um nómada, que nunca se sedentarizou como poeta. Nunca se quis instalar, e daí nunca ter querido ser publicado.

No crescimento e amadurecimento de Tiago Veiga, o Presidente da República Manuel Teixeira Gomes é uma figura tutelar. Mas subsistem entre eles zonas ambíguas, uma tensão sexual não resolvida.

Era uma relação de disciplinada pela hierarquia entre uma figura paterna e um pupilo a que se juntava, da parte de Teixeira Gomes, um veio homo-erótico que não interessava nada a Tiago Veiga.

Não lhe interessavam os avanços de Teixeira Gomes, mas toda a actividade sexual de Tiago Veiga é muitas vezes despachada pelo biógrafo com um elenco e as coordenadas dos bordéis que frequentava. É como se o sexo fosse para ele pura higiene.

Há de facto uma misoginia larvar a que se calhar não é alheia a frequência do seminário em Braga. Mais tarde, a sua paixão assolapada, tempestuosa, quase sísmica por uma jovem de nome Helena, que o abandona em nome de uma certa vagabundagem erótica e sentimental, também o vai marcar. Eu diria que ele era um heterossexual com alguma dificuldade em viver essa condição, mas de maneira nenhuma atraído pelo seu sexo. Em relação aos homossexuais com quem se ia cruzando, os seus reparos, as suas caricaturas nunca foram os que são característica dos homossexuais camuflados que se costumam esconder por trás das críticas aos outros. Não havia aqui um problema de identidade por resolver. Era um heterossexual com problemas de relacionamento [risos].

Como foram os seus cruzamentos numa Lisboa soturna com Fernando Pessoa? Sabemos que se frequentaram. Admiravam-se mutuamente?

Ele furtava-se a falar da sua relação com Fernando Pessoa. Chega a dizer, nos anos 70, "Tanto Pessoa enjoa". Fugia, furtava-se a falar do convívio entre eles. Confessou-me que o Pessoa de facto lhe abriu algumas portas de alguns jornais e revistas na década de 20 para que publicasse os seus poemas. Mas eu acho que se ele se aproximasse de mais do Pessoa retiraria alguma autonomia à sua personalidade como poeta. Ele quis ficar como o grande poeta que ninguém conhecia e nunca publicado.

Porque é que relevou como importante o encontro casual entre Mário Soares, então criança passeando-se pela mão da mãe, com Fernando Pessoa e Tiago Veiga perto do hospital Miguel Bombarda? Para o biógrafo de Tiago Veiga, Soares é o terceiro vértice de um triângulo chamado Portugal?

Tiago Veiga recordava-se bem desse encontro fortuito. E quando Mário Soares se transformou em quem foi, apontou-me a sua foto num jornal e contou-me este episódio que eu achei curioso.

O seu primeiro encontro com Tiago Veiga, há 50 anos, foi um momento marcante para si?

A partir do momento em que, nos anos 60 do século passado, os meus passos se cruzam com os de Tiago Veiga, o meu conhecimento do mundo literário português anterior alargou os horizontes. Há um forte magistério dele sobre mim que origina uma convergência de pontos de vista sobre Portugal e o mundo. Eu não tenho o mesmo tipo de amargura em relação ao mundo que ele tinha, mas intuí o seu rigor e a sua reticência em relação ao que constitui o horizonte de esperança dos verdadeiros optimistas. Nem ele nem eu o somos. Partilho com o poeta uma certa reserva perante o festejo, perante a vida, algo que torna difícil o convívio de qualquer escritor com a família ou com os amigos.

E a partir daí assume-se descaradamente como personagem desta biografia.

Quando o poeta me encomendou uma biografia ficcionada, eu senti-me obrigado a expor a subjectividade que está na base deste livro. Fiquei obrigado a historiar a minha relação com o Tiago Veiga, o que eu aprendi com o convívio com ele e a forma como se relacionou de forma a ter-me conseguindo manipular para que um dia viesse a escrever a sua biografia.

Mas não o condicionou. Foi livre enquanto biógrafo?

Todas as biografias são ficção. Todos os romances têm biografias dentro de si. Foi por isso que ele me pediu uma biografia não-científica. A biografia como processo metodológico de inventar um interior de uma vida acaba por ser muito mais verdadeira do que aquela que se cinge aos factos e à mera cronologia. Ele sabia que eu nunca faria uma biografia meramente factual. Sou incapaz de desinventar completamente uma vida. Um exercício de desinvenção é algo profundamente desumano e para mim impraticável.

Porque inventa e não desinventa, podemos concluir que de facto Tiago Veiga nunca pode ser visto como um heterónimo do biógrafo Mário Claúdio...

Os heterónimos são essa tal desinvenção. Veja-se o caso de Fernando Pessoa com as mini biografias que criou para os seus heterónimos. São esquemáticas e não nos permitem saber nada sobre a forma como eles funcionavam por dentro. Quem eram as mulheres da vida de Ricardo Reis, ou os homens da vida de Álvaro Campos? Sabemos apenas algo, pouco, sobre a sua diversa orientação sexual. Eu não quis esterilizar a vida de Tiago Veiga. Qualquer pessoa é o que ela pensa, o que ela imagina, a sua atmosfera, o ar que respira, em que vive. A sua aura. Tiago Veiga é uma figura de carne e osso. Não é um heterónimo. Quem tiver dúvidas pesquise, vá aos cartórios.

Mas, para além da biografia criativa, o biografado não se furta ao ensaio, à prosa jornalística, por exemplo.

Sim. Isso é visível por exemplo nas descrições da vida no tempo da I República ou na sua relação com os movimentos literários portugueses. O desafio foi que os diversos registos pontuassem as diversas etapas da vida de Tiago Veiga conforme as necessidades e a sua relevância à compreensão de uma vida cheia.

Há buracos negros nesta cronologia?

Poucos. Ou porque ele se recusa a falar deles, ou porque não há registo documental. É o caso por exemplo dos dois anos que passa num convento cartuxo em Itália. Só sabemos que esteve lá. Nada é dito do que lá aconteceu.  

Há em Tiago Veiga uma errância constante, mas também um regresso pendular a Portugal.

São as raízes. Toda a sua inventiva literária colhida nas grandes experiências literárias europeias do século XX, a vida dos santos, as hagiografias, o ingrediente religioso celta que deixa as suas marcas por exemplo na poesia de T. S. Eliot. Ele nacionaliza tudo isso. Escreve "Triunfo e Glória do Arcanjo São Miguel de Portugal" ou "Martírio e Apoteose de Frei Redento da Cruz". Faz uma aclimatação desse imaginário religioso modernista que vem do W. B. Yeats. Um imaginário celta que é ainda pagão e cristão. Tiago Veiga é um importador de modelos que se ligam às suas circunstâncias de vida.

Daí que ele, com as suas raízes celtas, tivesse pouca complacência com a Grécia de Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferreira.

Chamava-lhes os novos helénicos. Para ele foi um choque vê-los enredados nessa outra mitologia e sem vontade de dali saírem. Esses e os cultores de um certo iberismo influenciado pela Geração de 27 espanhola. Ele não é de maneira nenhuma um poeta ibérico, vejam-se as reservas com que olha para a produção de Teixeira de Pascoaes. Veiga era um português, mas do Noroeste, galaico-português, não propriamente um ibérico.

Mas tudo começou para si e para nós com "Sonetos Italianos", a primeira obra póstuma de Tiago Veiga a ser publicada.

Aí há, mesmo assim, um cruzamento com os caminhos do classicismo. É um exercício de máscaras. Cada conjunto de poemas é escrito por uma máscara diferente, sentindo-se que há uma máscara por trás das outras que as manipula como um manipulador de títeres. É um classicismo, mas mais romano do que grego.

Falando em títeres e em manipulação, sente que de alguma o biógrafo actua também aqui como manipulador?

Não. Porque para isso era necessário que houvesse um fio que me ligasse a ele, que de facto não existe. Ele não é um títere por mim manipulado. Tiago Veiga é outra pessoa.

Mas os seus outros mundos convergem aqui. Em 1988, aquando da morte de Tiago Veiga, Mário Cláudio concluía a sua trilogia da mão, um conjunto de biografias do pintor Amadeo de Souza-Cardoso, da violoncelista Guilhermina Suggia e da ceramista Rosa Ramalho. Tiago Veiga leu estes trabalhos? Gostou?

Não era um homem dado a grandes elogios. Elogiou-me o "Amadeo", embora levasse algum tempo a fazê-lo. Mas creio que foi a partir daqui que ele se convenceu a convencer-me a escrever a sua biografia.

É o seu maior projecto literário, em extensão. É também o mais ambicioso?

Não. O livro mais ambicioso é aquele que nunca se escreve. Nunca lá chegamos. Mas tenho a noção de que este é um livro que seria injustificado se eu não tivesse vivido os anos que vivi. Há aqui uma erosão da vida. E isso sente-se à medida que Tiago Veiga avança na idade e o sentimos encarquilhar-se à nossa frente. Cansou-se o biografado, está cansado o biógrafo. Este livro foi um "tour de force" físico e emocional. Há um peso, um desgaste, uma carga, uma dose de sacrifício. O que faz com que este livro não pudesse ter sido escrito por um qualquer jovem de 30 anos, por mais musculado e resistente que fosse. Independentemente das qualidades ou dos defeitos que o livro possa ter. Não estou com isto a gabar o resultado nem a condicionar os juízos de valor dos outros.

"Os deuses perdoam as loucuras aos que envelhecem". Tiago Veiga acreditava mesmo nisto?

Ele transformou-se gradualmente e com a idade num excêntrico. De uma excentricidade cultivada e muito pouco natural. Um certo desmazelo propositado. Era uma espécie de cosmética, de maquilhagem para dar o tom de um poeta distante, que não se entrega aos outros. Um arquétipo da poesia, através dos mecanismos de um esteticismo que se revela em última análise inestético.

São os últimos dias de um sobrevivente?

Todos nós somos sobreviventes, de alguma forma. A idade dá-nos uma capacidade de reflexão interior e um distanciamento cínico. Recorda-se quando no fim do livro ele vai a Jerusalém com dois jovens e é incapaz de perceber o que os faz correr de um lado para outro e ri à gargalhada deles, achando-os loucos e tendo ao lado uma americana também já velha com quem se cruza? Eu acho que isto acontece a todos com a idade. E à nossa vida de escritores acrescenta-se outra curiosidade: o tempo que nos resta só faz sentido ser ocupado a escrever. Ficam para trás as rivalidades que possam existir entre pares, deixa de contar o facto de repararem ou não em nós, o gostarem ou não daquilo que fazemos. O importante é fazer.

Mas o Tiago Veiga corre até ao fim da vida. O seu último acto é uma fuga.

Era um homem que valorizava muito a autonomia da vontade. E o seu último acto revela isso mesmo. Foi o seu último poema.

Apesar de tudo, o Mário Cláudio saiu desta tarefa vivo, ao contrário do seu biografado. E agora?

Agora apetecia-me escrever a minha autobiografia ficcionada. Talvez, se estivesse vivo, Tiago Veiga fosse a pessoa ideal para o fazer.

Seria outra forma de reinvenção? 

A vida é reinvenção permanente. Tudo é mentira e tudo é real.