Em busca da América
Convirá começar pelo aviso da praxe: por muito que "O Atalho" se inspire num "fait-divers" verídico da conquista do Oeste e traga todos os "sinais exteriores" de um western, que não se vá ver o novo filme da realizadora Kelly Reichardt ("Wendy e Lucy") como um western. Nem sequer como um western revisionista, porque o trabalho de Reichardt e do seu argumentista e habitual colaborador Jon Raymond reside mais dentro das convenções do "road movie". E lembramo-nos daquele célebre slogan com que o "Easy Rider" de Dennis Hopper e Peter Fonda foi lançado: "um homem foi em busca da América e não a encontrou em lado nenhum".
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Convirá começar pelo aviso da praxe: por muito que "O Atalho" se inspire num "fait-divers" verídico da conquista do Oeste e traga todos os "sinais exteriores" de um western, que não se vá ver o novo filme da realizadora Kelly Reichardt ("Wendy e Lucy") como um western. Nem sequer como um western revisionista, porque o trabalho de Reichardt e do seu argumentista e habitual colaborador Jon Raymond reside mais dentro das convenções do "road movie". E lembramo-nos daquele célebre slogan com que o "Easy Rider" de Dennis Hopper e Peter Fonda foi lançado: "um homem foi em busca da América e não a encontrou em lado nenhum".
"O Atalho" é, de certo modo, isso: a história de uma busca da América num local onde ela ainda não existe. Estamos em 1865 e três casais religiosos e o seu guia fanfarrão separam-se da caravana principal em direcção ao estado do Oregon, mas dão por si perdidos e com a água a escassear. Reichardt pode filmar estas paisagens áridas e desoladas como Ford filmou o Monument Valley (no velho formato "quadrado" conhecido como "Academy ratio", em 1:1.33), mas tudo pára aí.
A identificação com o western desaparece aos poucos para dar lugar a um drama de câmara, um pequeno grupo entregue a si mesmo, uma história de sobrevivência. Tudo é contado numa espécie de animação suspensa: faz sentido, estamos no meio do nada, do desconhecido, num sítio que já não é a civilização e ainda não é a terra prometida. É um limbo, um purgatório onde a palavra-chave é comunidade mas onde a pequena comunidade, dividida entre homens e mulheres de acordo com os mandamentos bíblicos, se começa a fracturar.
Kelly Reichardt sempre olhou para a comunidade como foco ou núcleo da América, antiga ou moderna, e em "O Atalho" ela não hesita em confrontar-se com a dimensão mítica dessa América e dessa comunidade. Fá-lo de um modo simultaneamente celebratório e desarmante: a fé quase cega dos pioneiros que se atiraram ao desconhecido, o medo e a incompreensão que surgem quando o desconhecido ameaça subjugá-los. Se a Wendy de "Wendy e Lucy", por exemplo, era "o outro" perdido "fora da passadeira" de uma América fechada sobre si mesma, "O Atalho" regressa aos primórdios dessa comunidade e do modo como ela se define precisamente em função do "outro" - um guia que está longe de justificar a confiança, um índio que eles não compreendem - e do modo como a sobrevivência implica escolhas morais que não são minimamente lineares nem respondem a quaisquer escrituras ou preceitos.
Filmando de modo difuso, atmosférico, evocativo, com um olhar ao mesmo tempo alienígena e fascinado, Reichardt constrói o seu filme por texturas em vez de estruturas narrativas. Isso vai assustar todos aqueles para quem a "lentidão" ou a ausência de acção são uma falha, todos aqueles que não compreendem como a utilização judiciosa do silêncio e do espaço é o que dá força e energia a este cinema certamente exigente mas resolutamente atento. E quando damos por nós estamos no meio de uma meditação oblíqua sobre a comunidade, sobre o medo, a incompreensão, o outro, feita à medida dos nossos dias, confirmando como Reichardt e Raymond pensam na América (e pensam a América) para lá dos sonhos e das imagens, num trabalho de desconstrução e desmontagem que remonta à fonte desse país que o cinema ajudou a construir.Encontram-na? Cabe a cada espectador decidi-lo. Na certeza de que são raros os filmes que se entregam a essa busca como "O Atalho" o faz.