Canções sem mordaça

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Billie%20Holiday

Barney Josephson tinha quatro regras fundamentais para aquela noite de Março de 1939, no seu Café Society, em Manhattan: a cantora residente de 23 anos, Billie Holiday, deveria terminar cada um dos três sets com aquela música; os empregados do bar deveriam parar de servir bebidas antes de essa última música começar, para que olhos e ouvidos não se desviassem daquilo que se passaria no palco; a sala, nessa altura, ficaria totalmente às escuras, à excepção de um foco que incidiria na cara de Billie; não poderia, de forma alguma, existir encore, para que não se esbatesse o efeito daquela interpretação - cada pessoa naquela sala, achava Josephson, tinha de ficar a arder por dentro.

Para Dorian Lynskey, jornalista inglês do diário Guardian e autor de "33 Revolutions per Minute", é nesta noite que começa a "sua" história da canção de protesto. Se bem que houvesse já exemplos da música ao serviço de reivindicações sociais e políticas, instrumento de sindicatos e formas organizadas de contestação, Lynskey defende que foi apenas com a interpretação de "Strange Fruit" por Billie Holiday nas condições acima descritas - e, posteriormente, pela radicalização de Woody Guthrie - que se estabeleceu a correspondência entre política e entretenimento capaz de produzir resultados concretos e contributos para qualquer tipo de revoluções. Por isso, explica na introdução às 33 'fichas' que compõem as quase 700 páginas da sua obra, que o seu propósito foi "tratar as canções de protesto antes de mais e sobretudo enquanto música pop", vincando que os melhores exemplares desta estirpe não são pesos mortos, agrilhoados a "um lugar e a um tempo específicos", mas interpeladores vivos.

E aquilo que fascina Lynskey é o facto de cada um destes temas - "Master os War", de Dylan, "Mississippi Goddam", de Nina Simone, "The Revolution Will Not Be Televised", de Gil Scott-Heron, "Manifesto", de Victor Jara, "Zombie", de Fela Kuti,"Fight the Power", dos Public Enemy, entre outros -  deixar um lastro, ter consequências premeditadas ou não, poder ser impulsionado quer por uma revolta genuína e indomada, quer por motivações menos "nobres", egoísticas ou como forma de atrair publicidade ou ganhar mais uns cobres. Em casos mais extremos, são canções que acarretam censuras, espancamentos, encarceramentos, mortes ou castigos dos mais variados. Ao mesmo tempo que Lynskey se propõe perceber para onde foi a "canção de protesto" ao longo dos anos, nota com curiosidade que o termo não é bem-vindo por muitos daqueles que lhe servem de exemplo, sobretudo por medo de uma outra prisão, menos física mas igualmente efectiva, de teor artístico. Porque uma canção de protesto seca, por vezes, toda a restante obra em que se encontra inserida - o que, de certa forma, aconteceu também com Billie Holiday e "Strange Fruit" - e soa muitas vezes de um paternalismo ou arrogância perigosos, podendo afastar as pessoas pela noção de que estão a ser doutrinadas em vez de as implicar verdadeiramente. Dylan, lembra Lynskey, precedeu a primeira apresentação de "Blowin' in the Wind" da salvaguarda "isto não é uma canção de protesto".

Basta lembrar o calvário que se seguiu ao super grupo country Dixie Chicks ter anunciado em concerto sentir vergonha do Presidente Bush após a invasão do Iraque. Os seus discos foram queimados como portadores de doença contagiosa ou heresia criminosa.

Contexto, biografia, motivação

"Southern trees bear a strange fruit, blood on the leaves and blood at the root, black bodies swinging in the Southern breeze". É com estes versos que "Strange Fruit" se apresenta e foi neles que se definiu, defende o autor, uma nova relação entre música e política: estas canções de que aqui se fala não agitam tanto o sangue quanto o gelam pelo confronto com injustiças. Essa é uma das regras destas 33 revoluções: serem igualmente grandes canções, que o tempo não matou. Não bastam as palavras inspiradas - têm de resultar em canções tão arrepiantes quanto o mote que lhes serve de rastilho. A partir daí, Lynskey esboça o contexto social e político em que estas surgem, elabora uma biografia dos artistas determinada pelo rumo que os leva a chegar àquela canção em particular e esclarece sobre as motivações e os efeitos de cada uma. Desde o momento em que Abel Meeropol escreveu "Strange Fruit" como reacção à fotografia de Thomas Shipp e Abram Smith linchados em Marion, Indiana, em 1930, até ao jacto de fúria em que Billy Joe Armstrong escreve "American Idiot" depois de ouvir um tema dos Lynyrd Skynyrd na rádio - pretexto para todo um capítulo que não é tanto sobre os Green Day como sobre toda a produção musical que tinha Bush na mira -, Lynskey puxa-nos para dentro de cada momento histórico.

Sentimo-nos quase no quarto com James Brown quando, em Agosto de 1968, o músico terá ouvido bater à porta do quarto de hotel e descoberto uma granada de mão desactivada com o seu nome nela pintado, na véspera de entrar em estúdio para gravar "Say It Loud - I'm Black and I'm Proud" - tema destinado a calar aqueles que o acusavam de ser demasiado alinhado com o establishment e pouco sensível às reivindicações de justiça racial. Ou ao lado de Fela Kuti na explosão do afrobeat com o tema "Zombie", crítico dos soldados nigerianos que aceitavam e cumpriam ordens do Governo cegamente, sem pensar.

Lynskey conta-nos ainda que antes de Holiday houve "Bourgeois Blues", de Lead Belly, sobre a discriminação que este encontrara em Washington, dedica um capítulo final ao canto de protesto antes de 1900, lembra o discurso de Obama na tomada de posse parafraseando "A Change Is Gonna Come" de Sam Cooke - classificando-o como "o primeiro Presidente de canções de protesto", uma vez que também os seus comícios se faziam sob a bênção de Curtis Mayfield e "Move on Up" -, ou que Woody Guthrie fez-se socialista na estrada. Sobre Guthrie, lê-se também nestas páginas, John Steinbeck escreveu: "Canta as canções de um povo e suspeito que ele seja, de certa forma, esse mesmo povo". Dificilmente se arranjaria melhor definição para o que vai neste livro. Uma história daqueles que, em determinado momento ou durante toda uma vida, assumiram a sua voz como veículo para uma multidão invisível nas suas costas.

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Barney Josephson tinha quatro regras fundamentais para aquela noite de Março de 1939, no seu Café Society, em Manhattan: a cantora residente de 23 anos, Billie Holiday, deveria terminar cada um dos três sets com aquela música; os empregados do bar deveriam parar de servir bebidas antes de essa última música começar, para que olhos e ouvidos não se desviassem daquilo que se passaria no palco; a sala, nessa altura, ficaria totalmente às escuras, à excepção de um foco que incidiria na cara de Billie; não poderia, de forma alguma, existir encore, para que não se esbatesse o efeito daquela interpretação - cada pessoa naquela sala, achava Josephson, tinha de ficar a arder por dentro.

Para Dorian Lynskey, jornalista inglês do diário Guardian e autor de "33 Revolutions per Minute", é nesta noite que começa a "sua" história da canção de protesto. Se bem que houvesse já exemplos da música ao serviço de reivindicações sociais e políticas, instrumento de sindicatos e formas organizadas de contestação, Lynskey defende que foi apenas com a interpretação de "Strange Fruit" por Billie Holiday nas condições acima descritas - e, posteriormente, pela radicalização de Woody Guthrie - que se estabeleceu a correspondência entre política e entretenimento capaz de produzir resultados concretos e contributos para qualquer tipo de revoluções. Por isso, explica na introdução às 33 'fichas' que compõem as quase 700 páginas da sua obra, que o seu propósito foi "tratar as canções de protesto antes de mais e sobretudo enquanto música pop", vincando que os melhores exemplares desta estirpe não são pesos mortos, agrilhoados a "um lugar e a um tempo específicos", mas interpeladores vivos.

E aquilo que fascina Lynskey é o facto de cada um destes temas - "Master os War", de Dylan, "Mississippi Goddam", de Nina Simone, "The Revolution Will Not Be Televised", de Gil Scott-Heron, "Manifesto", de Victor Jara, "Zombie", de Fela Kuti,"Fight the Power", dos Public Enemy, entre outros -  deixar um lastro, ter consequências premeditadas ou não, poder ser impulsionado quer por uma revolta genuína e indomada, quer por motivações menos "nobres", egoísticas ou como forma de atrair publicidade ou ganhar mais uns cobres. Em casos mais extremos, são canções que acarretam censuras, espancamentos, encarceramentos, mortes ou castigos dos mais variados. Ao mesmo tempo que Lynskey se propõe perceber para onde foi a "canção de protesto" ao longo dos anos, nota com curiosidade que o termo não é bem-vindo por muitos daqueles que lhe servem de exemplo, sobretudo por medo de uma outra prisão, menos física mas igualmente efectiva, de teor artístico. Porque uma canção de protesto seca, por vezes, toda a restante obra em que se encontra inserida - o que, de certa forma, aconteceu também com Billie Holiday e "Strange Fruit" - e soa muitas vezes de um paternalismo ou arrogância perigosos, podendo afastar as pessoas pela noção de que estão a ser doutrinadas em vez de as implicar verdadeiramente. Dylan, lembra Lynskey, precedeu a primeira apresentação de "Blowin' in the Wind" da salvaguarda "isto não é uma canção de protesto".

Basta lembrar o calvário que se seguiu ao super grupo country Dixie Chicks ter anunciado em concerto sentir vergonha do Presidente Bush após a invasão do Iraque. Os seus discos foram queimados como portadores de doença contagiosa ou heresia criminosa.

Contexto, biografia, motivação

"Southern trees bear a strange fruit, blood on the leaves and blood at the root, black bodies swinging in the Southern breeze". É com estes versos que "Strange Fruit" se apresenta e foi neles que se definiu, defende o autor, uma nova relação entre música e política: estas canções de que aqui se fala não agitam tanto o sangue quanto o gelam pelo confronto com injustiças. Essa é uma das regras destas 33 revoluções: serem igualmente grandes canções, que o tempo não matou. Não bastam as palavras inspiradas - têm de resultar em canções tão arrepiantes quanto o mote que lhes serve de rastilho. A partir daí, Lynskey esboça o contexto social e político em que estas surgem, elabora uma biografia dos artistas determinada pelo rumo que os leva a chegar àquela canção em particular e esclarece sobre as motivações e os efeitos de cada uma. Desde o momento em que Abel Meeropol escreveu "Strange Fruit" como reacção à fotografia de Thomas Shipp e Abram Smith linchados em Marion, Indiana, em 1930, até ao jacto de fúria em que Billy Joe Armstrong escreve "American Idiot" depois de ouvir um tema dos Lynyrd Skynyrd na rádio - pretexto para todo um capítulo que não é tanto sobre os Green Day como sobre toda a produção musical que tinha Bush na mira -, Lynskey puxa-nos para dentro de cada momento histórico.

Sentimo-nos quase no quarto com James Brown quando, em Agosto de 1968, o músico terá ouvido bater à porta do quarto de hotel e descoberto uma granada de mão desactivada com o seu nome nela pintado, na véspera de entrar em estúdio para gravar "Say It Loud - I'm Black and I'm Proud" - tema destinado a calar aqueles que o acusavam de ser demasiado alinhado com o establishment e pouco sensível às reivindicações de justiça racial. Ou ao lado de Fela Kuti na explosão do afrobeat com o tema "Zombie", crítico dos soldados nigerianos que aceitavam e cumpriam ordens do Governo cegamente, sem pensar.

Lynskey conta-nos ainda que antes de Holiday houve "Bourgeois Blues", de Lead Belly, sobre a discriminação que este encontrara em Washington, dedica um capítulo final ao canto de protesto antes de 1900, lembra o discurso de Obama na tomada de posse parafraseando "A Change Is Gonna Come" de Sam Cooke - classificando-o como "o primeiro Presidente de canções de protesto", uma vez que também os seus comícios se faziam sob a bênção de Curtis Mayfield e "Move on Up" -, ou que Woody Guthrie fez-se socialista na estrada. Sobre Guthrie, lê-se também nestas páginas, John Steinbeck escreveu: "Canta as canções de um povo e suspeito que ele seja, de certa forma, esse mesmo povo". Dificilmente se arranjaria melhor definição para o que vai neste livro. Uma história daqueles que, em determinado momento ou durante toda uma vida, assumiram a sua voz como veículo para uma multidão invisível nas suas costas.