Leonor atravessa o Tempo
Primeiro a História: Maria Teresa Horta levou treze anos a pesquisar, a coligir informação e a escrever "As Luzes de Leonor", uma monumental e arrebatada obra que gira em torno da vida e da personalidade de Leonor de Almeida, Condessa de Oyenhausen e Marquesa de Alorna, figura maior da nossa História e da nossa Cultura. Foi encerrada aos oito anos, juntamente com a irmã e a mãe, no Convento de Chelas, e o pai, também preso a mando do Marquês de Pombal no seguimento do processo dos Távora, passou anos sem ver a família. A avó, Marquesa de Távora, foi executada, tal como outros membros da família, amigos e até criados. Leonor só saiu de Chelas 18 anos mais tarde, após a morte de D. José, quando D. Maria - mais tarde sua madrinha de casamento - devolveu a liberdade aos presos políticos. Leonor aproveitou a reclusão para estudar, para fortalecer o carácter, para escrever poesia. Desde cedo atraiu admiradores, fascinados com a sua erudição, beleza e independência de espírito. Recebia no convento (à grade) poetas e pensadores - Correia Garção, Filinto Elíseo (que lhe deu o nome de Alcipe), Joana Isabel Forjaz, Teresa de Mello Breyner -, saiu em liberdade aos 27 anos, casou-se, teve filhos, atravessou a Europa de lés a lés, privou com soberanos e soberanas, foi amada e cortejada por homens e mulheres, aconselhou e recebeu as confidências de figuras destacadas do seu tempo, levou a cabo delicadas missões diplomáticas, apaixonou-se, escreveu; assistiu à Revolução francesa e ao avanço de Napoleão sobre a Europa, experimentou o exílio, regressou a Portugal; Camilo Castelo Branco não escondeu a admiração por ela, Francisco Joaquim Bingre recordou a "grande Filósofa e grande poetisa lírica, mulher de abalizados talentos e de óptimas ideias liberais, cuja casa frequentei algumas vezes com outros poetas do meu tempo."
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Primeiro a História: Maria Teresa Horta levou treze anos a pesquisar, a coligir informação e a escrever "As Luzes de Leonor", uma monumental e arrebatada obra que gira em torno da vida e da personalidade de Leonor de Almeida, Condessa de Oyenhausen e Marquesa de Alorna, figura maior da nossa História e da nossa Cultura. Foi encerrada aos oito anos, juntamente com a irmã e a mãe, no Convento de Chelas, e o pai, também preso a mando do Marquês de Pombal no seguimento do processo dos Távora, passou anos sem ver a família. A avó, Marquesa de Távora, foi executada, tal como outros membros da família, amigos e até criados. Leonor só saiu de Chelas 18 anos mais tarde, após a morte de D. José, quando D. Maria - mais tarde sua madrinha de casamento - devolveu a liberdade aos presos políticos. Leonor aproveitou a reclusão para estudar, para fortalecer o carácter, para escrever poesia. Desde cedo atraiu admiradores, fascinados com a sua erudição, beleza e independência de espírito. Recebia no convento (à grade) poetas e pensadores - Correia Garção, Filinto Elíseo (que lhe deu o nome de Alcipe), Joana Isabel Forjaz, Teresa de Mello Breyner -, saiu em liberdade aos 27 anos, casou-se, teve filhos, atravessou a Europa de lés a lés, privou com soberanos e soberanas, foi amada e cortejada por homens e mulheres, aconselhou e recebeu as confidências de figuras destacadas do seu tempo, levou a cabo delicadas missões diplomáticas, apaixonou-se, escreveu; assistiu à Revolução francesa e ao avanço de Napoleão sobre a Europa, experimentou o exílio, regressou a Portugal; Camilo Castelo Branco não escondeu a admiração por ela, Francisco Joaquim Bingre recordou a "grande Filósofa e grande poetisa lírica, mulher de abalizados talentos e de óptimas ideias liberais, cuja casa frequentei algumas vezes com outros poetas do meu tempo."
Maria Teresa Horta apodera-se desta figura estonteante e não será por acaso que começa a obra com uma citação de Virgínia Woolf, excerto de uma carta que a britânica escreveu à sua musa Vita Sackville-West, a propósito do romance "Orlando. Uma Biografia". Tal como o herói/heroína da tonitruante e encantatória saga de Woolf, também Leonor, pela mão da autora, atravessa o tempo, o espaço, os géneros e as ideias, os sentimentos e as razões, as tendências e as modas, para nos arrastar na vertigem da sua existência, fresca e audaz, sábia e veemente. A Ciência ensinou-nos que a fita caprichosa do nosso ADN se desenrola, geração após geração, numa alucinante viagem que continua "ad infinitum" e Leonor de Almeida está bem viva nestas páginas, resgatada do esquecimento pela sua descendente, a autora, que não se limita a descrever factos mas parece, isso sim, ter ocupado o espaço físico e mental da sua ilustre parente. Acompanhamo-la, e a todos que em torno dela gravitam, desde a infância até à idade avançada, seguimo-la nos estudos, nas múltiplas leitura, nas viagens atribuladas, no êxtase dos prazeres carnais, nos esforços diplomáticos, nos dramas familiares, no fulgor dos salões e das cortes (Viena, Paris, Londres, Lisboa). Ouvimos os cascos dos cavalos, o roçagar dos vestidos, os suspiros apaixonados, os gritos nos partos, os murmúrios conspiratórios; chegam-nos com intensidade os odores dos corpos, dos cozinhados, das ruas, das estradas, dos perfumes, das velas, das alcovas. E observamos a evolução e construção de uma personalidade única, livre, independente de espírito, resistente à adversidade, filha, mãe, mulher, amante, poeta, intelectual. Maria Teresa Horta vai desenrolando a narrativa em elipses, sem particular rigor cronológico, voltando sempre a Leonor (o íman), recriando com abandono e franqueza os arroubos das "coisas da carne", desse "invólucro mortal" de que fala Shakespeare, que englobam as delícias do erotismo e os incómodos muito humanos dos fluidos e excreções.
Leonor, Marquesa de Alorna, formou o seu espírito e a sua vontade na leitura dos Clássicos, nos ensinamentos de Rousseau, Voltaire, Diderot, Espinoza, Locke, Bayle e Newton, foi testemunha interessada do fim de uma era e do nascimento do mundo moderno, com as luzes da Razão a esmorecerem no negrume do Terror e no saque da Europa, por Napoleão. A ascensão do Romantismo - que tão prejudicial foi para as mulheres - levou-a a apreciar Goethe e Schiller mas não chegou a contaminá-la nos seus aspectos mais negativos.
Com "As Luzes de Leonor" Maria Teresa Horta constrói uma obra grandiosa, na qual as figuras históricas se cruzam com as que emergem da imaginação da escritora, em cenários delicadamente pormenorizados, em ambientes profusamente documentados, em emoções e sentimentos que só uma grande escritora sabe como recriar.Para além do aspecto formal mais marcante desta obra, isto é, a subversão total dos géneros tradicionais - romance histórico, biografia, memórias, poesia, género epistolar (tão característico do século XVIII) até autobiografia -, há, em toda a narrativa, uma contínua tensão entre contrários, masculino e feminino, razão e emoção, verdade e embuste, vida e morte, liberdade e reclusão, atracção e repulsa, luxúria e castidade, entre o amor-paixão e o amor-amizade. Leonor ergue-se, magnífica e majestosa, do vórtice destes conflitos mortais, desafiando o despotismo patriarcal consubstanciado em figuras como Sebastião de Carvalho e Melo e Pina Manique, o primeiro, apostado em ser um homem das "Luzes" que usa a razão para reconstruir um reino mas que mergulha nas trevas da barbárie com a execução dos Távora e com as suas maquinações e Pina Manique, o sinistro intendente da Polícia e espião que persegue Leonor até à morte. Esta, ao contrário dos seus inimigos ("Não me apaziguo" escreve ela no Diário), embora "encarcerada" - num convento, num corpo de mulher, em roupagens femininas - experimenta sem temor o excesso das suas "luzes" no desejo e na vontade.
"As Luzes de Leonor" é um livro "feminista" no sentido em que Maria Teresa Horta - escritora, poeta e pensadora sempre atenta - revela a importância de Leonor e de outras mulheres mantidas na obscuridade. Mas é, essencialmente, uma obra universal que transcende géneros, fronteiras, correntes ou movimentos literários. É um livro sobre Portugal e sobre a nossa cultura, sobre a Europa e sobre os abalos da História. É, ainda, uma lição de bem escrever e um relato provocante e ousado que levanta questões de agora e de todos os tempos: como resistir à tirania? Qual a importância da educação, da cultura, do exercício do pensamento? De que modo se poderá (ou não) conciliar a emoção com a razão? De que formas se reveste o amor em todas as idades? Como vencer as barreiras da moral instituída, das diferenças sociais e culturais, das limitações de género? Como ser-se mulher (ou homem) em toda a plenitude?