Era uma vez um país

Um pequeno grande livro que resgata a ficção portuguesa dos tradicionais impasses escolásticos.

Foto
Mário de Carvalho NFS - Nuno Ferreira Santos

Numa época em que os idiomas parecem reduzidos às convenções da criptografia “sms”, é bom ler Mário de Carvalho (n. 1944), que não cede, não desiste, nem abre mão de espeques e escorrências. O autor de Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994) acaba de dar à estampa uma nova colectânea de contos: O Homem do Turbante Verde. Carvalho maneja o género como poucos. Fasquia possível na língua comum, Machado de Assis.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Numa época em que os idiomas parecem reduzidos às convenções da criptografia “sms”, é bom ler Mário de Carvalho (n. 1944), que não cede, não desiste, nem abre mão de espeques e escorrências. O autor de Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994) acaba de dar à estampa uma nova colectânea de contos: O Homem do Turbante Verde. Carvalho maneja o género como poucos. Fasquia possível na língua comum, Machado de Assis.

Economia narrativa ("Isto é uma faca de mato. É para triturar as entranhas...”) e gozo óbvio com o divertissement são traços distintivos, mesmo nas histórias de recorte sombrio. A intromissão do narrador faz-se de viés, omitindo quase sempre o tempo e a geografia da intriga. O zumbido rouco do drone é a única certeza que temos de que o Mussa do primeiro conto não é um nómada da Serra dos Candeeiros.

Dividido em quatro núcleos (2+3+2+3), O Homem do Turbante Verde dedica um deles à ditadura de Salazar: “A Rua dos Remolares”, com enfoque na guerra colonial; “A secção de campo”, parodiando os malefícios da Cultura e, a fechar, “Bildung”, sobre os desencontros da clandestinidade. Três contos enxutos de retórica que dão a ver a vulnerabilidade e as incertezas da geração que hipotecou o futuro à guerra. Nem epifania, nem ajuste de contas com o passado. Do melhor que tem sido escrito sobre o tema, incluindo prestações do autor, como (entre outras) é o caso da novela Era uma vez um Alferes, publicada em 1984. Longe de divertido, o absurdo desses anos de chumbo dá azo a histórias hilariantes.

Por exemplo, “A secção de campo”, relato do cineclubismo vigiado anterior a 1974. Mobilizados para a educação de camponeses, um grupo de jovens comunistas tenta exibir no salão paroquial de uma aldeia uma cópia de Couraçado Potemkin de Eisenstein introduzida ilegalmente no país. (A deficiente revisão de texto deixou passar o título do filme grafado de formas diferentes.) Mas o presidente da Junta de Freguesia local exige autorização escrita: “Eu, por mim, pessoalmente, nada a opor. Mas a verdade é que preciso de arquivar a folha. Com o respectivo selo branco. Ou carimbo.” Desconfiadas, as mulheres da terra suspeitam de pornografia: “Coisas de homens. Querem passar coisas de homens. [...] E até mete marinheiros!” Só a inesperada intervenção de um cabo da GNR os salva da ira popular.

De ordinário associado ao pícaro e ao fantástico, Carvalho é capaz do um hiper-realismo sem mácula. Leia-se “A contaminação”, retrato em grande angular da cidade do Porto a partir do microcosmo de Campanhã. O mesmo se diga de “O celacanto”, paródia mordaz sobre classes emergentes (construtores civis ligados ao futebol, galeristas pós-modernos, etc.), ou mesmo “A longa marcha”, em cujo epílogo ecoam ecos remotos do “Passeio Nocturno” de Rubem Fonseca. Exímio contador de histórias numa geração obediente ao catecismo de Robbe-Grillet - abaixo o plot e as personagens -, Carvalho brinca com a tradição, os tiques e as coteries literárias: surrealismo, por interpostos Raymond Roussel e António Pedro; Verne na pessoa de Phileas Fogg; certo realismo fantástico: “a única vez que vi um bicho a voar sem ter com quê foi uma cobra num livro de Lídia Jorge. Mas isso era ficção...”

E homenagem discreta aos amanhãs que cantam (em clave de descrença tranquila) num verso de Daniel Filipe: “Uma palavra antiga, mais nada. Eh, amiga, camarada.” Trinta anos separam Contos da Sétima Esfera (1981) da presente colectânea. Denominador comum: atenção ao real. A desenvoltura da linguagem faz o resto. Verdade que O Homem do Turbante Verde não tem a ambição de obras precedentes acima citadas, às quais devemos juntar A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho (1983). Mas não deixa por isso de ser um pequeno Grande Livro que resgata a ficção portuguesa dos tradicionais impasses escolásticos.