O processo
Depois dos documentários que conseguiram encontrar um eco público raro ("Lisboetas", e mais recentemente "A Cidade dos Mortos"), Sérgio Tréfaut estreia a sua primeira longa-metragem de ficção. Não uma "ficção convencional", no sentido em que a expressão convoca expectativas naturalistas que o filme não confirma, e não uma "ficção fantasiosa": como nos seus documentários, é ainda o "caso social" que motiva o olhar de Tréfaut.
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Depois dos documentários que conseguiram encontrar um eco público raro ("Lisboetas", e mais recentemente "A Cidade dos Mortos"), Sérgio Tréfaut estreia a sua primeira longa-metragem de ficção. Não uma "ficção convencional", no sentido em que a expressão convoca expectativas naturalistas que o filme não confirma, e não uma "ficção fantasiosa": como nos seus documentários, é ainda o "caso social" que motiva o olhar de Tréfaut.
Esta "Viagem a Portugal" (título irónico, porque praticamente não se sai dos corredores e gabinetes do SEF no aeroporto de Faro, é apenas uma "viagem à antecâmara burocrática de Portugal") tem uma raiz precisa, a história verídica de uma mulher ucraniana que não conseguiu entrar em Portugal para vir ter com o marido, cá residente com os papeis em ordem (o facto de o marido ser africano terá ajudado ao curto-circuito da burocracia, pouco preparada para lidar com as infinitas variações das vidas dos seres humanos). Isto passou-se por alturas da Expo 98, data que o filme mantém, época em que Portugal era rico e se fazia difícil.
O filme narra esse episódio, transformado numa epopeia da papelada e do legalismo exacerbado: horas a fio, uma mulher ucraniana tenta convencer funcionários e dirigentes do SEF de que não há nenhuma boa razão (burocrática, em primeiro lugar) para não a deixarem entrar em Portugal. Num preto e branco frio e contrastado (para cortar o naturalismo, mas também para inundar o filme com uma "luz de gabinete", doentiamente descolorida), todas as personagens, quer a mulher quer os burocratas, ficam enredadas numa coisa que à falta de melhor termos chamaremos o "sistema". Isto é o que Tréfaut consegue melhor, até pela cuidadosa ausência de maniqueísmo: dar espaço para que apareça o "processo", e depois ver como o "processo" engole toda a gente, independentemente da sua razão, da sua vontade ou mesmo da sua humanidade. (Houve alguém que definiu o fanatismo assim: "quando se continua a fazer uma coisa mesmo de depois de ter sido esquecida a razão por que se a fazia"; em última análise, "Viagem a Portugal" mostra bem como toda a burocracia tende para o fanatismo). Por esse lado, é quase como uma miniatura wisemaniana resolvida em teatro (que se podia chamar, naturalmente, "Serviço de Estrangeiros e Fronteiras").
Isso vale o filme, que nem sempre consegue escapar uma certa rigidez, indesejada no que devia ser apenas a descrição de uma aridez, e não resolve completamente a sua relação com a repetição (de que os campos/contracampos "em diferido" são o mais exposto exemplo). Em todo o caso, vale a pena destacar que se trata de um "filme de actores", e que deles nascem alguns momentos preciosos (sobretudo Isabel Ruth, a funcionária angustiada com o "réveillon", e a protagonista, Maria de Medeiros, que há muito tempo não víamos tão bem).