Portugal, século XXI: há escravos levados das Beiras para Espanha

Foto
Portugueses levados para explorações agrícolas em Espanha: vida de miséria Miguel Madeira

A imagem de pessoas agrilhoadas, espalhadas pelo chão, espancadas, doentes e famintas remete o imaginário para outros séculos, quando navios sulcavam o Atlântico carregados de negros que, já na América ou na Europa, haveriam de trabalhar como escravos até morrerem. Mas não é aos séculos XVI ou XVII que este relato se refere. Nesta história, não há um oceano pelo meio. Não se salta de continente para continente. Há apenas Portugal e Espanha. Não foi há 300 ou 400 anos. Acontece nos dias de hoje. Há escravos portugueses em Espanha.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A imagem de pessoas agrilhoadas, espalhadas pelo chão, espancadas, doentes e famintas remete o imaginário para outros séculos, quando navios sulcavam o Atlântico carregados de negros que, já na América ou na Europa, haveriam de trabalhar como escravos até morrerem. Mas não é aos séculos XVI ou XVII que este relato se refere. Nesta história, não há um oceano pelo meio. Não se salta de continente para continente. Há apenas Portugal e Espanha. Não foi há 300 ou 400 anos. Acontece nos dias de hoje. Há escravos portugueses em Espanha.

São 12 os escravos desta história e quatro os "negreiros". É uma história de miséria, de maldade premeditada. O relato do abandono a que estão votados os mais desfavorecidos. Um retrato de uma zona do país que muitos não sabem existir e em que, porventura, não vão acreditar. Mas é dele que fala o acórdão de 7 de Abril deste ano lavrado no Tribunal do Fundão, que resultou na primeira condenação de sempre por escravatura sentenciada em Portugal.

Há nesta história um grupo de pessoas más. Uma família (os pais nascidos em Portugal, o filho em Espanha, onde todos residem) que mantém ligações à Beira Baixa. Que corre as cidades, vilas e aldeias em demanda de gente pobre. De "indigentes", diz a Judiciária, referindo-se a um leque de homens de "fracos conhecimentos cognitivos", com "hábitos alcoólicos" e "provenientes de famílias desestruturadas".

António José Fortunato Maria, vulgarmente conhecido por "Tó Zé Cigano", é o principal membro da família esclavagista. Enquanto os seus pais estão em Espanha, na zona de Valladolid, ele ciranda de carro à procura de quem levar para as herdades espanholas, que precisam de mão-de-obra.

Estamos em 2001, numa data não apurada e num lugar não especificado. Os pais de Tó Zé estão em Portugal e recrutam a pessoa que, durante anos, há-de funcionar como uma espécie de capataz. Abordam uma mulher que já conheciam de outras andanças e convencem-na a entregar-lhes o filho, José António Rodrigues. Acenam-lhe com um tarefa digna, na agricultura, onde há-de ganhar 250 euros mensais, mais comida, dormida e tabaco. Um luxo para quem nada tem.

José António, que entre os 12 escravos é o único que refere nunca ter sido espancado, aceita a oferta e durante dois anos ganha o combinado. Mais tarde, até Fevereiro de 2007, quando consegue fugir para Portugal, passa apenas a ganhar 150 euros por mês. É ele quem, em tribunal, relata as crueldades vividas num barracão de uma herdade por onde, ao longo dos anos, sobreviveram os escravos.

Entre o período de escravatura e a fuga, os seus carcereiros trazem-no uma vez a Portugal, para renovar o bilhete de identidade entretanto caducado. Tó Zé chega a dar 50 euros à mãe de José António, dizendo-lhe que o filho estava bem mas que não podia vir a Portugal por se encontrar "fugido à tropa".

A quinta de Iscar, Valladolid

As pessoas arregimentadas em Portugal para trabalharem na agricultura espanhola chegavam de carro. Tó Zé, de 35 anos, entregava-os ao cuidado dos pais, Francisco José Maria, de 68, e Maria Clotilde Fortunato, de 69. Eram estes quem lhes mostravam a futura residência em Iscar, Valladolid.

"Ali chegados, aos trabalhadores eram-lhes retirados todos os documentos de identificação, pelos arguidos, e instalados num armazém, que servia de galinheiro, onde havia galinhas e pombos, sem quaisquer condições de higiene e salubridade", diz o texto da sentença.

A descrição do local e do que espera as pessoas para ali levadas piora nas linhas seguintes: "Dormiam em velhos colchões retirados do lixo, no chão, sendo presos pelos pulsos, por uma corrente de ferro e cadeado, todos aqueles que os arguidos António, Francisco e Maria suspeitassem que pretendiam fugir, sendo ainda o armazém fechado pelos mesmos arguidos, para que nenhum daqueles trabalhadores pudesse sair".

Depois, "todos os indivíduos eram obrigados a trabalhar na lavoura, contra a sua vontade, quase sempre desde o nascer do sol até ao anoitecer, por vezes pela noite dentro, todos os dias, na sementeira ou na apanha de batata, cenoura, cebola e alho, quase sempre 12, 14 ou 16 horas diárias e por vezes 18 e 20 horas diárias, sempre sob a vigilância atenta e permanente dos arguidos, descansando apenas nos dias e períodos em que as máquinas avariavam".

Quando se dava o caso de alguém reclamar das condições, da falta de pagamento - quando alguém, desiludido, dizia que queria regressar a Portugal -, então avançava Tó Zé, com uma bengala de junco com uma moca numa extremidade. A contestação era calada à pancada.

Pela quinta de Iscar passaram o capataz José António Rodrigues, os irmãos Rui e Carlos Horta, Bruno Esteves, mais conhecido por "Inchado", Ricardo Santos, Luís de Sousa, José Silva, José da Cruz, o "P"ro", e Joaquim Henriques, o "Sardini". Todos foram roubados, ameaçados e a maior parte espancados. Alguns conseguiram fugir e relatar as suas desventuras. Mas nem sempre os seus relatos terão sido escutados com a atenção devida. Isso faz parte da história de Ricardo dos Santos.

Quatro anos de cativeiro

A sua aventura começa em Setembro ou Outubro de 2003. Ainda menor de idade, sai da casa da mãe, em Coja, Arganil, e passa a vaguear pelas ruas do Fundão. É numa dessas noites que é abordado pelo quarto arguido da história. João Carlos Carrola aborda-o e diz-lhe: "Ouve lá, andas aqui a passar fome. Não queres ir para Espanha? Eu arranjo-te lá trabalho".

Vão os dois para um bar, onde falam das condições. Uma hora depois, após Carrola fazer um telefonema, surge Tó Zé. Este e o jovem voltam a falar do futuro trabalho. Acordam todos os pormenores e resolvem ir festejar para um bar de alterne, em Teixoso. Quando dali saem, voltam ao Fundão, onde os espera Maria Clotilde. Saem os três em direcção ao aeródromo da Covilhã. É nesse momento que Ricardo diz não querer ir de imediato para Espanha, porque precisa de avisar a família. Tó Zé vai ao carro e volta com a bengala de junco. Agride o jovem nas costas e nas pernas, ao mesmo tempo que grita que a partir daquele momento é ele quem manda.

Ricardo entra para o carro dos esclavagistas. Dorme no banco de trás, trancado e transido com medo. Mãe e filho ocupam os bancos da frente. Ainda de madrugada, vão até Castelo Branco, onde Tó Zé diz que tem de entregar a carta de condução à GNR. Depois empreendem nova viagem, desta vez para Espanha. Ricardo fica sem os documentos e é de imediato encaminhado para o campo, para trabalhar. Não almoça. Só come algo à noite, para ser de imediato agrilhoado pelos pulsos. Estão nessa situação Bruno Esteves e também Joaquim, de Santa Margarida (Idanha-a-Nova), e David, de Valverde (Fundão).

Ricardo, a quem nem sequer foi permitido fazer um telefonema, passa o primeiro ano a dormir acorrentado e outros três em que, mesmo livre das correntes, não escapa aos espancamentos sempre que diz ter frio e fome ou que está doente e não consegue deslocar-se para os campos dos agricultores espanhóis que pagam a mão-de-obra escrava à família de Tó Zé.

Os dias passam e o jovem, tal como os restantes companheiros de cativeiro, é alimentado, de manhã, a café e pão, com uma sandes ao almoço, e com arroz ou massa e frango ao jantar. Recebe, como todos os que fumam, um maço de cigarros por dia. Dos 250 euros mensais, nunca viu um só cêntimo.

A 5 de Janeiro de 2007, a Guardia Civil prende Tó Zé por outros crimes que não a escravatura. A vigilância na quinta, agora apenas a cargo dos seus pais, afrouxa. Dois dias mais tarde, à noite, Ricardo pede para ir urinar (a família vigiava os escravos a partir de um anexo ao armazém onde estes pernoitavam) e aproveita para fugir. Corre durante seis quilómetros até chegar à aldeia de Mojados, onde pede ajuda à Guardia Civil, que o encaminha para a Cruz Vermelha. Tanto quanto se sabe, ninguém foi, nessa ocasião, à quinta de Iscar.

Ricardo passa a primeira noite na Cruz Vermelha e só três dias depois da fuga, no dia 5 de Fevereiro, consegue regressar a Portugal. Chega à boleia, num camião TIR, conduzido por um homem de Castelo Branco que o há-de deixar numa área de serviço na A23, próximo do Fundão.

"Parto-vos as pernas"

No início de Abril deste ano, aquando do julgamento, foram inúmeras as histórias narradas pelos escravos. Luís Sousa, que foi para Espanha em Agosto de 2004, conta que fugiu no Natal desse ano. Aproveitou o facto de lhe terem retirado as correntes para as colocarem num jovem chamado Leonel para fugir. Foi até Valladolid e dali viajou para Portugal à boleia. Nunca apresentou queixa por temer represálias.

A reclusão de Mário Silva durou de Junho de 2006 a Fevereiro do ano seguinte. Foi recrutado por Tó Zé num bar do Fundão. Nos oito meses em que teve de trabalhar "noite e dia", nada recebeu, a não ser o maço de cigarros diário e sovas várias.

A 10 de Fevereiro, na companhia do amigo "P"ro" (escravizado, durante cerca de sete anos, desde Maio de 2001), consegue evadir-se da quinta. Passam uma semana escondidos num armazém próximo. Durante esse período, são ajudados por um cidadão espanhol. Finalmente, conseguem regressar a Portugal de comboio.

O rol de escravos identificados inclui o doente psiquiátrico Joaquim Henriques, mais conhecido por "Sardini". É levado para Espanha no Natal de 2003, depois de interromper o tratamento num hospital de Castelo Branco, e ali fica até Abril de 2007, quando consegue evadir-se. Diz o tribunal, baseado nas investigações da Judiciária da Guarda, que "Sardini" convive nesse período com outros homens só identificados como António, o "Becas", de Aldeia Nova do Cabo (Fundão), Ricardo, também conhecido por "Zarolho", e David, de Valverde, a quem os demais chamavam o "Gorila". Todos foram espancados, roubados e obrigados a fazer uma espécie de reza diária, à meia-noite.

Tó Zé, apesar de já estar a contas com a justiça espanhola, faz ameaças aos escravos portugueses, jurando que, com a sua fiel bengala de junco, irá partir as pernas a todos quando sair da cadeia. Tenta, com essa ameaça, evitar mais denúncias quando tiver de depor no Tribunal do Fundão.

É com o regresso dos escravos a Portugal que as diversas pontas da investigação começam a encaixar. A Judiciária, em conjunto com a Guardia Civil, consegue identificar dezenas de pessoas e acaba por deter os pais de Tó Zé. O caso dos escravos de Iscar encerra mas, entretanto, noutras zonas de Portugal, prosseguem outras averiguações. Espanha é novamente o destino de diversos indigentes da Beira Interior. Assim o refere um novo processo remetido ainda esta semana a tribunal com proposta de acusação. Há sete arguidos e mais de 20 vítimas, arregimentados nos concelhos de Tábua, Oliveira do Hospital, Seia, Nelas e Mangualde.