Um volume precioso
Em 1984, no ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte da Arte à Constelação. O Poema Pós-Utópico" (ensaio reunido no livro "O Arco-Íris Branco", 1997), Haroldo de Campos traduzia na expressão "pós-utopia" a crise da vanguarda, afirmando que "a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica". À utopia conatural às vanguardas sucederia a "pluralização de poéticas possíveis"; e a poesia de hoje seria uma poesia da "agoridade" (Walter Benjamin), "uma poesia 'do outro presente' e da 'história plural', que implica uma 'crítica do futuro' e de seus paraísos sistemáticos". Nas palavras de Haroldo, uma "poesia da agoridade" assim concebida não deveria equivaler a uma poética da abdicação, do eclectismo regressivo ou da facilidade. Por isso, essa poesia teria "um dispositivo crítico indispensável na operação tradutória", a qual ensinaria a ver o "concreto" (leia-se: o material artisticamente mais avançado) na poesia de Safo e Bashô, Dante e Camões, Sá de Miranda e Pessoa, Hölderlin e Celan, Góngora e Mallarmé... Invocando a definição de Novalis, Haroldo lembra que o tradutor "é o poeta do poeta". E que a tradução, "vista como prática de leitura reflexiva da tradição - permite recombinar a pluralidade dos passados possíveis e presentificá-la, como diferença, na unicidade hic et nunc do poema pós-utópico".
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Em 1984, no ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte da Arte à Constelação. O Poema Pós-Utópico" (ensaio reunido no livro "O Arco-Íris Branco", 1997), Haroldo de Campos traduzia na expressão "pós-utopia" a crise da vanguarda, afirmando que "a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica". À utopia conatural às vanguardas sucederia a "pluralização de poéticas possíveis"; e a poesia de hoje seria uma poesia da "agoridade" (Walter Benjamin), "uma poesia 'do outro presente' e da 'história plural', que implica uma 'crítica do futuro' e de seus paraísos sistemáticos". Nas palavras de Haroldo, uma "poesia da agoridade" assim concebida não deveria equivaler a uma poética da abdicação, do eclectismo regressivo ou da facilidade. Por isso, essa poesia teria "um dispositivo crítico indispensável na operação tradutória", a qual ensinaria a ver o "concreto" (leia-se: o material artisticamente mais avançado) na poesia de Safo e Bashô, Dante e Camões, Sá de Miranda e Pessoa, Hölderlin e Celan, Góngora e Mallarmé... Invocando a definição de Novalis, Haroldo lembra que o tradutor "é o poeta do poeta". E que a tradução, "vista como prática de leitura reflexiva da tradição - permite recombinar a pluralidade dos passados possíveis e presentificá-la, como diferença, na unicidade hic et nunc do poema pós-utópico".
Nesse sentido, a edição de "Pullll...", antologia da "Poesia Contemporânea do Canadá", organizada e traduzida por John Havelda, Isabel Patim e Manuel Portela (mais um volume de impecável e distinta factura da Antígona), é um gesto crítico de largo alcance, já que, como sucede nos casos em que um livro nos restitui uma paisagem desconhecida, este é um decisivo contributo para arrancar a poesia portuguesa ao seu paroquialismo. Desde logo, porque todas as culturas são e tendem a ser paroquiais (e a dos EUA não menos que a nossa); mas, mais ainda, porque o devir pós-utópico na poesia portuguesa legitimou uma doxa conservadora que, do "regresso ao real" de Joaquim Manuel Magalhães (de facto, um neo-romantismo restaurador) à dessublimação radical dos "poetas sem qualidades", não cessou de reforçar o privilégio de um expressivismo menor e a recusa de opções mais experimentais, ou menos "humanistas", logo desqualificadas como "formalismos". Não surpreende, pois, que esta antologia excepcional tenha sido vítima de uma resenha indigente por um dos representantes desta orientação, Carlos Bessa, no "Actual", por cometer os pecados de ser experimental, neo-vanguardista, etc. - o que é, mas não apenas -, ou seja, por não recusar o risco de uma poesia que aspire a mais do que ao culto de equívocos neo-realistas e neo-românticos, de conservadorismos formais ou de espécimes de "minor poetry" supostamente tão emblemáticos, mas de facto tão irrelevantes, como Couto Viana. O que esta antologia da poesia canadiana contemporânea nos revela, sendo nisso saudavelmente pedagógica, é que assim como o momento utópico variou consoante as latitudes do moderno, sendo bem mais intenso no Brasil do que em Portugal, também o pós-utópico conheceu uma geometria variável. Na América do Norte, aliás, as últimas décadas assistiram a uma notória efervescência experimental, distribuída pelos dois lados da fronteira entre EUA e Canadá, mobilizando para isso, e reinventando, todos os suportes mediáticos disponíveis, a par da expansão de poéticas identitárias (feministas, gay, étnicas) as mais diversas.
Um poeta como Robin Blaser, o mais velho de todos os elencados nesta obra, permite recuperar essa vinculação "norte-americana", já que esteve ligado à San Francisco Renaissance dos anos 50 e 60, sendo muito influenciado também por Charles Olson (coisa que nunca certa fase ocorreu também com o nosso António Franco Alexandre). Se "Pulllll" parece apostar na faceta conceptual do poeta, com o vasto poema metapoético "Imagi-Nação 23 (imago-mundi", a verdade é que logo a seguir elenca um exemplar de intenso lirismo enredado na re-citação de um poema anterior de James Lipton - "só a sombra sabe / dos passos destes anos, a surpreender o pensamento / e os amores tão fundo que os tenho sempre à mão" -, o que revela a riqueza e densidade da obra de Blaser. É com naturalidade que se passa de Blaser aos experimentalistas pós-concretos como bpNichol e Steve McCaffery, com Jeff Derksen e Christian Bök como descendentes recentes (no caso de Derksen, mais crítico do discurso da globalização; no caso de Bök mais pós-dadaísta e pós-oulipiano). McCaffery fez parte da revista/movimento L=A=N=G=U=A=G=E e é autor de uma obra de grande exigência, quase sempre compensadora: "a poesia é uma caixa aberta com quatro lados à volta de maçãs / a prosa é um fundo de uma caixa com quatro lados sobre uma mesma / para evitar a queda das maçãs". bpNichol foi talvez o mais extraordinário e multifacetado de todos. Poeta visual, concreto, sonoro, performer, escreveu prosa, fez desenhos, fez poemas para computador já em 1984. Em Nichol ainda existe uma alegria na vivacidade da língua (e no poder de simulação da experiência da linguagem, que pede muitas vezes uma dimensão performativa), nos outros casos há sobretudo a consciência da prisão que o discurso constitui e uma crítica sintáctica e semântica à própria língua. É difícil transcrever bpNichol, desde logo por causa do seu uso do espacejamento do texto como recurso expressivo. Tentemos um excerto: "a loucura é linguagem é como a usas se não és louco / usa-la de um modo se és louco usa-la de outro / modo estas não são categorias há muitos modos de / ambos os modos".
Refira-se ainda, nesta linhagem, os poetas da colagem e da justaposição de múltiplas vozes/falas, os pós-modernistas das pradarias (Manitoba e regiões centrais do Canadá): Robert Kroetsch e Dennis Cooley. Cooley é um mestre do trocadilho e da tensão entre a letra e o som, da ironia e do humor. Refira-se o longo poema "jiga da vulva", de uma inventiva inesgotável: "oh vulva ooooh / quando a boca / tocou em ti / estava há muito aprazado / & eu humedecido / molhado de olhar diria / & tomaste-me tu / meteste-me a mim / fizeste-me entrar / diria que é tão / & oh é tocar & ficar / a viver com/tigo / ali à mão". Quanto a Kroetsch, os seus dois 'livros encontrados' ("Seed Catalogue" e "The Ledger"), de que é traduzida a secção inicial, são magníficos. O mesmo se diga do poema "encalhado 3", irónica e profunda revisitação de Crusoé na sua ilha, que começa assim: "Desta vez, Crusoé, o outro pé está no sapato, / e Sexta-feira gosta de fins-de-semana prolongados".
Refira-se um terceiro "grupo" de autores coligidos: o das experimentalistas pós-feministas, ultra-politizadas na crítica do discurso e das representações (não apenas a partir do lugar da mulher, mas também): Karen Mac Cormack; Erín Moure, de quem se apresenta a sua peculiar versão de "O guardador de rebanhos", de Alberto Caeiro, intitulada "O quê, eu pastor?": "Quando me sento a escrever versos / ou passeando pela Vaughan Road ou pelo beco / Escrevo poemas na minha cabeça, porque é assim que penso. / A caneta na minha mão é o meu cajado, / E vejo a minha própria figura / no topo de Bathurst, / Guardando o meu rebanho e vendo as minhas ideias / Ou guardando as minhas ideias e vendo o meu rebanho / e sorrindo um sorriso parvo como o meu amigo Phil"; e ainda Lisa Robertson.Um último grupo de autores reúne os multi-étnicos que fazem da "mistura" e da "mestiçagem" um dos eixos das suas obras: Roy Miki ["Japanese Canadian"], Fred Wah ["Chinese Canadian"] e Dionne Brand ["Afro-Canadian"]. Como já no caso das feministas, a mestiçagem ocorre sobretudo "na língua" ou, como diria Erín Moure, num poema sobre o "Cidadán", "é um gesto prostético (através das 'línguas')". Fred Wah: "Agora consigo ouvir a língua em vez de vê-la apenas em francês acima da minha cabeça dedos querem tocar a visão da letra oral fragmento táctil fome numa outra língua...". Dionne Brand: "Nenhuma língua é neutra". Nos casos de Miki e Wah, a identidade cultural é tratada com processos semelhantes aos de fragmentação e justaposição experimental; no caso de Brand, a menos experimental dos autores recolhidos no volume, sobretudo por meio da projecção da história da escravatura/da emigração na memória individual.
Refira-se, por fim, que esta é uma obra feita no fio da navalha da prática da tradução. Ou seja, boa parte dos textos propostos poderia ser descrita como "intraduzível", e quase todas as traduções são, pelo menos, debatíveis. O que quer dizer que, também por esse lado, este é um volume precioso, não apenas para conhecer e pensar a poesia do nosso tempo, mas também a centralidade da tradução como "prática de leitura reflexiva da tradição" (Haroldo) na situação pós-utópica.