Religião e morte
A quinta longa-metragem de Bruno Dumont, "Hadewijch", é a primeira a estrear-se em Portugal. Com data de 2009, é o penúltimo filme do cineasta, que já neste ano de 2011 apresentou em Cannes o seu mais recente opus, "Hors Satan". Religião e metafísica, sem aspas nem desculpas, são terrenos frequentes de Dumont, que não fazendo a coisa por menos começou logo por filmar uma "vida de Jesus" ("La Vie de Jesus", de 1997, primeira obra) e, depois, "a humanidade" ("L´Humanité", de 1999, um dos "filmes escandalosos" do Palmarés do Festival de Cannes desse ano).
Oriundo da Flandres francesa, nascido (em 1958) a poucos quilómetros da fronteira com a Bélgica, são nele comuns as referências e as inspirações de origem flamenga (o filme anterior a "Hadewijch" chamava-se mesmo "Flandres"). É o caso deste, claro, que traz logo para o título a lembrança da homónima escritora "mística" que viveu na Flandres do século XIII, depois prolongada numa personagem que usa Hadewijch como nome eclesiástico, e numa narrativa onde haverá alguns pontos de contacto (ou a imaginação de alguns pontos de contacto) com a vida da Hadewijch medieval. É um filme que trata, com uma força peculiar, a possibilidade contemporânea de um tipo de devoção "mística", menos para criar ou explorar um mero anacronismo, e mais para construir um grau de abstracção a partir das tensões geradas pelo que é, ou parece que pode ser, anacrónico.
A potência e a violência
Mas deixemos que Bruno Dumont, em resposta a uma meia-dúzia de perguntas que lhe enviámos por e-mail, nos fale do que viu e do que trouxe da Hadewijch histórica: "[nos seus escritos] cultivou um Amor Puro por Cristo seu Amante, que me inspirou a uma meditação contemporânea sobre a potência e a violência de que este amor tomado pelo absoluto é capaz".
No filme, estes dois termos - amor e violência - são indissociáveis, evoluem em paralelo, crescem como um mesmo tronco, explodem (com e sem jogo de palavras: o apogeu é um atentado terrorista no metro parisiense) ao mesmo tempo. Dumont, outra vez: "A coexistência paradoxal do amor e da violência desenvolvidos por Hadewijch - nas suas Visões, Cristo aparece como um guerreiro - é uma questão perturbante em termos de julgamento moral porque faz coincidir dois contrários que são hoje apanágio do terrorismo contemporâneo, onde a violência é um meio de atingir a plenitude em Deus". Dumont refere-se obviamente aos "mártires" do terrorismo islâmico, que no filme jogam um papel de confluência com esta Hadewijch ficcional.
Mas também é aí que entra o cinema, como modelo catártico: "As tragédias gregas, Shakespeare, Corneille, Racine, dão ao espectador a possibilidade de se purgar desta violência residual confrontando-o com personagens onde estes contrários coexistem, tomando-os não como um exemplo mas como uma prova". É este tipo de catarse que Dumont procura, e a sua Hadewijch "é esta parte absoluta da nossa alma de que é preciso fazer o luto: tanto o amor de Deus como a sua violência punitiva". A Hadewijch de Dumont "não é uma pessoa, é uma representação, uma representação de uma parte interior e primitiva de nós próprios".
Dumont reclama uma perspectiva "laica", acrescentamos nós que teórica e distanciada. Afinal de contas, Hadewijch é tanto uma "representação de nós próprios" como as personagens dos terroristas o são. "A religião contém a violência porque essa foi a sua tarefa primitiva". A sua Hadewijch, diz, "denuncia este arcaísmo revelando-o: o Amor Puro, que ela encarna, transporta os germes da morte e do extermínio, porque levando este amor ao absoluto estabelece-se a concidência dos contrários: Amor Puro e Pura Violência". O que se passa nas cenas finais, depois do atentado, é portanto uma superação desta equivalência? "É um renascimento, um renascimento para o amor humano como uma nova via espiritual, fora de Deus, numa refundação do Sagrado". Que o agente deste "amor humano" seja um homem vulgar, marginal, ex-presidiário, apenas circunstancialmente "providencial", constitui um "clou" tingido de ironia? "Antes uma impassibilidade [de Dumont] perante o destino trágico da personagem, de que me cumpre, fazer, sem vacilar, a representação".
Esta personagem masculina cuja função dentro do filme só se ilumina nos planos finais, acentua a possibilidade de se encontrarem pistas em comum entre um filme como "Hadewijch" e certos elementos caros ao universo bressoniano, cineasta de quem Dumont é frequentemente aproximado. Queremos saber, em primeiro lugar, o que pensa ele dessas associações: "Seria mais justa a referência a Jean Epstein, que se inscreve num realismo mágico, ou mesmo num simbólico, que para mim foi mais marcante". Prefere ir direito a Georges Bernanos [autor do "Diário de um Pároco de Aldeia" e da "Mouchette" que Bresson adaptou, e do "Sob o Sol de Satanás" que serviu de base ao filme de Pialat], à ideia de "um Mal recluso na natureza ordinária dos seres e das coisas e a procura da Salvação", que ele, Dumont, trata "a partir de uma leitura laica".
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A quinta longa-metragem de Bruno Dumont, "Hadewijch", é a primeira a estrear-se em Portugal. Com data de 2009, é o penúltimo filme do cineasta, que já neste ano de 2011 apresentou em Cannes o seu mais recente opus, "Hors Satan". Religião e metafísica, sem aspas nem desculpas, são terrenos frequentes de Dumont, que não fazendo a coisa por menos começou logo por filmar uma "vida de Jesus" ("La Vie de Jesus", de 1997, primeira obra) e, depois, "a humanidade" ("L´Humanité", de 1999, um dos "filmes escandalosos" do Palmarés do Festival de Cannes desse ano).
Oriundo da Flandres francesa, nascido (em 1958) a poucos quilómetros da fronteira com a Bélgica, são nele comuns as referências e as inspirações de origem flamenga (o filme anterior a "Hadewijch" chamava-se mesmo "Flandres"). É o caso deste, claro, que traz logo para o título a lembrança da homónima escritora "mística" que viveu na Flandres do século XIII, depois prolongada numa personagem que usa Hadewijch como nome eclesiástico, e numa narrativa onde haverá alguns pontos de contacto (ou a imaginação de alguns pontos de contacto) com a vida da Hadewijch medieval. É um filme que trata, com uma força peculiar, a possibilidade contemporânea de um tipo de devoção "mística", menos para criar ou explorar um mero anacronismo, e mais para construir um grau de abstracção a partir das tensões geradas pelo que é, ou parece que pode ser, anacrónico.
A potência e a violência
Mas deixemos que Bruno Dumont, em resposta a uma meia-dúzia de perguntas que lhe enviámos por e-mail, nos fale do que viu e do que trouxe da Hadewijch histórica: "[nos seus escritos] cultivou um Amor Puro por Cristo seu Amante, que me inspirou a uma meditação contemporânea sobre a potência e a violência de que este amor tomado pelo absoluto é capaz".
No filme, estes dois termos - amor e violência - são indissociáveis, evoluem em paralelo, crescem como um mesmo tronco, explodem (com e sem jogo de palavras: o apogeu é um atentado terrorista no metro parisiense) ao mesmo tempo. Dumont, outra vez: "A coexistência paradoxal do amor e da violência desenvolvidos por Hadewijch - nas suas Visões, Cristo aparece como um guerreiro - é uma questão perturbante em termos de julgamento moral porque faz coincidir dois contrários que são hoje apanágio do terrorismo contemporâneo, onde a violência é um meio de atingir a plenitude em Deus". Dumont refere-se obviamente aos "mártires" do terrorismo islâmico, que no filme jogam um papel de confluência com esta Hadewijch ficcional.
Mas também é aí que entra o cinema, como modelo catártico: "As tragédias gregas, Shakespeare, Corneille, Racine, dão ao espectador a possibilidade de se purgar desta violência residual confrontando-o com personagens onde estes contrários coexistem, tomando-os não como um exemplo mas como uma prova". É este tipo de catarse que Dumont procura, e a sua Hadewijch "é esta parte absoluta da nossa alma de que é preciso fazer o luto: tanto o amor de Deus como a sua violência punitiva". A Hadewijch de Dumont "não é uma pessoa, é uma representação, uma representação de uma parte interior e primitiva de nós próprios".
Dumont reclama uma perspectiva "laica", acrescentamos nós que teórica e distanciada. Afinal de contas, Hadewijch é tanto uma "representação de nós próprios" como as personagens dos terroristas o são. "A religião contém a violência porque essa foi a sua tarefa primitiva". A sua Hadewijch, diz, "denuncia este arcaísmo revelando-o: o Amor Puro, que ela encarna, transporta os germes da morte e do extermínio, porque levando este amor ao absoluto estabelece-se a concidência dos contrários: Amor Puro e Pura Violência". O que se passa nas cenas finais, depois do atentado, é portanto uma superação desta equivalência? "É um renascimento, um renascimento para o amor humano como uma nova via espiritual, fora de Deus, numa refundação do Sagrado". Que o agente deste "amor humano" seja um homem vulgar, marginal, ex-presidiário, apenas circunstancialmente "providencial", constitui um "clou" tingido de ironia? "Antes uma impassibilidade [de Dumont] perante o destino trágico da personagem, de que me cumpre, fazer, sem vacilar, a representação".
Esta personagem masculina cuja função dentro do filme só se ilumina nos planos finais, acentua a possibilidade de se encontrarem pistas em comum entre um filme como "Hadewijch" e certos elementos caros ao universo bressoniano, cineasta de quem Dumont é frequentemente aproximado. Queremos saber, em primeiro lugar, o que pensa ele dessas associações: "Seria mais justa a referência a Jean Epstein, que se inscreve num realismo mágico, ou mesmo num simbólico, que para mim foi mais marcante". Prefere ir direito a Georges Bernanos [autor do "Diário de um Pároco de Aldeia" e da "Mouchette" que Bresson adaptou, e do "Sob o Sol de Satanás" que serviu de base ao filme de Pialat], à ideia de "um Mal recluso na natureza ordinária dos seres e das coisas e a procura da Salvação", que ele, Dumont, trata "a partir de uma leitura laica".