O homem Duracell
O culto da ideia original não é tão frequente na literatura "mainstream" como nos redutos mais especializados. No género fantástico ou no policial, uma boa premissa representa metade do orçamento; um monstro complexo, uma missão épica, uma golpada original - nas mãos certas (e as mãos certas, para este efeito, são mãos competentes) isto costuma ser suficiente. Há excepções, mas, regra geral, os clássicos prestam-se a resumos condensados de bocejante aridez. Um tipo em Dublin vai a alguns bares. Uma mulher francesa comete adultério. Um alemão doente passa sete anos num sanatório. Estes livros não são reduzíveis a uma "boa" ideia, porque não partiram de uma boa ideia; funcionam por acumulação e como veículo para extrapolações mais amplas. E o talento para essas extrapolações nem sempre é compatível com o talento para a cápsula instantânea de inspiração ou para a manipulação de uma fórmula.
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O culto da ideia original não é tão frequente na literatura "mainstream" como nos redutos mais especializados. No género fantástico ou no policial, uma boa premissa representa metade do orçamento; um monstro complexo, uma missão épica, uma golpada original - nas mãos certas (e as mãos certas, para este efeito, são mãos competentes) isto costuma ser suficiente. Há excepções, mas, regra geral, os clássicos prestam-se a resumos condensados de bocejante aridez. Um tipo em Dublin vai a alguns bares. Uma mulher francesa comete adultério. Um alemão doente passa sete anos num sanatório. Estes livros não são reduzíveis a uma "boa" ideia, porque não partiram de uma boa ideia; funcionam por acumulação e como veículo para extrapolações mais amplas. E o talento para essas extrapolações nem sempre é compatível com o talento para a cápsula instantânea de inspiração ou para a manipulação de uma fórmula.
Não há motivos para duvidar que o segundo romance de Joshua Ferris começou como uma premissa irresistível, tal como o seu primeiro romance começara a partir de um engenhoso artifício formal. "Então Chegámos ao Fim" (Casa das Letras, 2008), era uma comédia corporativa sobre quezílias de escritório narrada na terceira pessoa do plural: o "nós" burocrático. Desse filão de sátira verbal, Ferris extraiu um livro competente e, a espaços, inspirado.
"Sem Rumo" aposta tudo na premissa, que se presta a um resumo palpitante: Tim Farnsworth, sócio de uma firma de advogados em Manhattan, e próspero habitante da grande diáspora confortavelmente alienada da ficção americana (os infames "subúrbios"), é acometido por uma bizarra patologia, que se manifesta como uma compulsão para andar. A compulsão pode atingi-lo de dia ou de noite; em casa, no escritório, ou na rua; sozinho, ou a meio de uma conversa com um cliente. Sem aviso prévio ou destino aparente, Tim caminha até tombar de exaustão.
O tremendamente eficaz primeiro capítulo coloca-nos no início de um segundo ciclo, depois de prolongado período de remissão. A sequência é orquestrada como o clímax de um filme de terror, com direito a algum esplêndido diálogo de série B. Quaisquer expectativas de intenção paródica, no entanto, são rapidamente subvertidas. Apesar de desvios pontuais, e ao contrário do que fez no primeiro romance, não são os elementos cómicos da situação que Ferris pretende explorar (uma cena promissora em que Tim inicia uma caminhada em plena sala de tribunal, perante uma magistrada perplexa, é despachada quase com embaraço). O texto vem encharcado em alusões a padrinhos literários, cujo objectivo inconfundível é servirem como certificados de solenidade. A estrutura é modelada num conhecido poema de Emily Dickinson: cada secção tem o título de um verso, começando no apropriado "Os Pés, Mecanicamente"; e a sombra de Beckett paira em ruidoso anonimato: se "O Inominável" era narrado por alguém incapaz de se mover, "Sem Rumo" ("The Unnamed", no original) é sobre alguém incapaz de parar quieto.
Apesar de um impressionante circuito clínico (médicos de Cleveland, especialistas suícos, curandeiros trinidadianos), e da paciente submissão a curas de sono, ressonâncias magnéticas e realinhamentos cármicos, a doença esquiva-se não apenas a curas, mas até a um simples diagnóstico. Com uma mente treinada na advocacia, Tim acredita "no poder do precedente" e a primeira centena de páginas acompanha-o na desesperada procura de algo que valide cientificamente a sua condição com um problema físico e não mental: "É esse o pré-requisito de uma doença verdadeira: o facto de ser encarada com seriedade". O autor não se poupa a esforços para estabelecer plausibilidade. Como num tribunal, as objecções logísticas do leitor vão sendo adivinhadas e rebatidas. Porque é que Tim não se algema a si próprio à cama, a fim de evitar, pelo menos, as mais perigosas saídas nocturnas? "Fixaram uma argola à parede e prenderam-no com uma corrente e um cinto de cabedal. Ao fim de uns dias, aquele tipo de prisão tornou-se simplesmente demasiado bárbaro". Porque é que não tentam "enganar" a patologia, disponibilizando uma passadeira rolante para Tim se esgotar no conforto doméstico? "De cada vez que a sorte lhe permitia ter o corpo na passadeira durante um episódio, dava por ele a sair do tapete rolante em direcção à liberdade. O seu corpo recusava-se a ser limitado ou cercado".
Apesar do excessivo rigor explanatório, estes são os melhores momentos do livro: quando o foco é nas rotinas e nos automatismos que a unidade familiar vai assimilando para burocratizar a anormalidade, e enquanto o autor confia na sua fluência imaginativa e na agilidade narrativa para resolver problemas pontuais. As coisas pioram consideravelmente no segundo terço do romance, que resvala para a frouxa parábola metafísica "à la Paul Auster". A condição, que até então mantivera a sua perturbante e eficaz inexplicabilidade, é agora assumida como o resultado de uma batalha cósmica entre corpo e alma. A própria prosa não sobrevive à transição, sendo contaminada por fogachos confrangedores de mau lirismo ("o impotente sol lançava sombras e com a mesma rapidez as arrebatava", etc.) e penosos diálogos cénicos entre a consciência e o corpo de Tim, que adquiriu voz própria e dá sinais de estar a emancipar-se, como uma daquelas patuscas máquinas-de-escrever orgânicas nos livros de William Burroughs: "Tu não podes ser inteligente - afirmou ele. - Apenas eu posso ser inteligente. Estou a evoluir, respondeu o outro". Ocasionalmente, vão sendo catalogados alguns prenúncios de uma catástrofe ecológica iminente: incêndios, paisagens semi-apocalípticas, abelhas com comportamento estranho. Becos sem saída que a narração é incapaz de digerir e que permanecem perdidos na página, à espera de um empurrão generoso do leitor, para um lugar onde façam sentido. Alguns indícios oblíquos de que tudo pode não passar de uma elaborada alucinação de Tim também não ajudam.
Quando tudo parece perdido, as últimas 50 páginas devolvem uma inesperada reanimação, recuperando um tropo ficional mais antigo: alguém que apenas deseja regressar a casa. Mas mesmo esta parcial regeneração é sabotada por algumas desnecessárias epifanias de oficina de escrita, como se o próprio autor se tivesse cansado antes do protagonista, e tentado conduzir as suas deambulações arbitrárias a uma redenção artificial. A entusiasmante premissa inicial, tal como a doença de Tim, recusou-se a ser limitada ou cercada. "Sem Rumo" seria provavelmente melhor se tivesse continuado sem rumo.