J. Rentes de Carvalho: romeiro sem romaria
Já ninguém tira a J. Rentes de Carvalho a boa disposição de estar na Feira do Livro de Lisboa. Carimba os livros que vai autografando com um selo onde se lê "JRC- Romeiro sem Romaria". É uma variação da frase "apercebido como hu(m) romeiro" que o primeiro rabino português formado em Amesterdão, Menasseh ben Israel, tinha no seu selo. "Depois de mais de meio século a participar em feiras do livro na estranja", o autor português - que nos últimos 12 anos tem vivido três meses em Amesterdão e os três seguintes em Estevais, Mogadouro -, esteve este fim-de-semana pela primeira vez na Feira do Livro de Lisboa. "Em 60 anos de literatura publicada nunca me convidaram. Sinto-me festejado. É uma espécie de baptismo e, ao mesmo tempo, de retorno, porque quando eu era miúdo ia-se à Feira do Livro ver o Aquilino Ribeiro. Até aos anos 60, o escritor era uma estátua ambulante. Via-se o Aquilino às portas da Bertrand e as pessoas passavam de lado para não o incomodar".
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Já ninguém tira a J. Rentes de Carvalho a boa disposição de estar na Feira do Livro de Lisboa. Carimba os livros que vai autografando com um selo onde se lê "JRC- Romeiro sem Romaria". É uma variação da frase "apercebido como hu(m) romeiro" que o primeiro rabino português formado em Amesterdão, Menasseh ben Israel, tinha no seu selo. "Depois de mais de meio século a participar em feiras do livro na estranja", o autor português - que nos últimos 12 anos tem vivido três meses em Amesterdão e os três seguintes em Estevais, Mogadouro -, esteve este fim-de-semana pela primeira vez na Feira do Livro de Lisboa. "Em 60 anos de literatura publicada nunca me convidaram. Sinto-me festejado. É uma espécie de baptismo e, ao mesmo tempo, de retorno, porque quando eu era miúdo ia-se à Feira do Livro ver o Aquilino Ribeiro. Até aos anos 60, o escritor era uma estátua ambulante. Via-se o Aquilino às portas da Bertrand e as pessoas passavam de lado para não o incomodar".
Há dias, no blogue Tempo Contado (que mantém para não perder a mão), Rentes contou que se foi encostar à porta da Bertrand a conversar com alguém. "Isso é à moda antiga" [risos]. Na Bertrand e na Sá da Costa era normal haver três, quatro escritores a mostrar que estavam ali a falar de literatura, coisa importante, dava 'cachet' à livraria. Tudo muda, menina, tudo muda", diz agora ao Ípsilon. J. Rentes de Carvalho ainda sentiu isso durante uns dez ou 15 anos. Depois, de repente, desapareceram os editores e vieram os gestores, que olham para um escritor não como uma pessoa mas como um item. "Este retorno, com o Francisco José Viegas [o seu actual editor em Portugal], a uma espécie de maneira antiga de editar dá-me uma certa satisfação de que não está tudo perdido."
O escritor, de 81 anos, esteve na Feira do Livro de Lisboa a lançar "La Coca" (ed. Quetzal), que publicou no final dos anos 90 na editora Escritor e passou. Logo na capa está escrito que se trata de um romance, mas o leitor acaba por acreditar em tudo que lá está contado. O que se encaixa perfeitamente naquilo que Rentes considera ser a função do escritor: "Mentir de tal maneira que o leitor ao ler acredita em tudo".
A história deste livro começou quando o ex-jornalista e ex-docente de literatura portuguesa na Holanda se encontrou à porta de um hotel com a sua juventude. Ou melhor, com uma pessoa da sua juventude com 30 anos em cima. Quando, por curiosidade, lhe perguntou o que andava ali a fazer, o outro mentiu-lhe. No dia seguinte desapareceu, e mais tarde Rentes soube que o mataram. O que disparou a história deste livro foi esse encontro.
Tempos antes, o escritor já tinha tido a ideia de fazer "qualquer coisa" sobre os "mecanismos da droga e do ganho", dos "investimentos cinzentos" no Minho e na Galiza. "O resto encadeou-se. Foi escrito sem planos. Sentei-me a escrever e saiu assim encadeado, quase sem esforço", conta. No entanto, foi visitar aqueles lugares - Castelo de Neiva, Caminha, Lanhelas, Gondarém, Cerveira, até à Galiza. "Não posso dizer qual é a percentagem de ficção e qual é a percentagem de realidade. Mas a coisa está mais ao menos bem entrançada de maneira a que a realidade e a ficção se fundam numa só. A intenção de quem escreve um livro deve ser mentir de tal forma que o leitor é agarrado por aquela mentira como uma criança. Lê aquilo, revê aquilo e junta com a sua própria vivência. Tenho esta teoria de que nem todos gostam: o escritor fornece a moldura e o leitor, ao ler, escreve o seu próprio livro".
Memórias desleais
O autor de "Ernestina" e de "Com os Holandeses" voltou aos lugares da sua juventude, falou com muita gente, correu muito risco e por vezes preferiu não saber mais. De tal maneira que as únicas personagens do livro que têm nomes verdadeiros são os mortos. "La Coca" é um livro sobre a memória, "tricky thing". "A memória brinca comigo, umas vezes enganando-me e outras vezes permitindo que eu me engane. Há um jogo entre mim e a memória que não é leal. Ela pode mais do que eu", diz.
Há momentos em que Rentes não sabe se está a mentir, se está a contar a verdade ou se está a arranjar uma coisa para se divertir a si próprio. Não é pose, é mesmo assim, confessa. A verdade é que não consegue dar muita importância à profissão, ao "métier" de escritor, porque não é mais do que um receptor de mensagens. Embrulha tudo. É como um cozinheiro a quem dão os ingredientes. Não tem um papel muito activo. Não pensa num esquema, não pega num rapaz tuberculoso e na mãe dele e arranja um incesto. Isso é-lhe totalmente estranho. "Por vezes tenho uma pequena ideia ou uma frase. O 'Ernestina' é só uma frase que apareceu um dia: 'Deus criou o mundo em Vila Nova de Gaia'. É uma coisa tola, mas à base daquela frase de nada veio todo um livro e toda a vivência da memória da minha família até aos meus bisavôs. Como é que funciona? Não sei."
Quanto mais avança a conversa, mais se percebe que as personagens que nos marcaram durante a leitura existiram mesmo. Por exemplo, Dom Ramón de Goyán, que aterrou um avião num troço de estrada. O galego que na Guerra Civil queria vingar a morte da família pendurando frades, nus, nas traves da igreja. "Esse é o meu herói, era fascista, mas o que é que eu lhe hei-de fazer?", pergunta Rentes, que gostava do galego porque ele contava muitas histórias. "Histórias verdadeiras. Histórias que tinham acontecido. O homem era piloto de avião, tinha andado na guerra, era nacionalista - uma pena -, mas tinha uma irmã muito bonita. Durante um ou dois anos foi o meu herói. Ele sabia contar, tinha verve, tinha elegância, tinha 'allure', era bem-disposto, era forte. Um bom exemplo."
Outro grande herói da mocidade de Rentes era "um homem adepto do 'antes quebrar que torcer', correcto, forte, bonito, atlético", António Feio. "No momento necessário da vida em que a gente tem de procurar exemplos, eu tinha dois. Cada um diferente do outro mas ambos muito especiais, muito importantes. O que eles me deram foi determinante para muito da minha vida."
O pai de J. Rentes de Carvalho, que era guarda-fiscal, levou a família que era de Vila Nova de Gaia para viver em Lanhelas e em Gondarém. Filho único, Rentes viveu lá entre 1945 e 1949 e foi absorvido pela gente do sítio. "Não fiquei a tomar parte porque eu era um pouco um estranho. Eles eram todos da construção, eu não era. Eles andavam no contrabando, eu só andava atrás deles de vez em quando para ver como é que era, traindo um pouco o meu pai. Mas eles davam-me cigarros. Um sujeito de 15 anos a fumar Lucky Strike ou Chesterfield..." Dava pinta.
Esse contrabando dos cigarros, do uísque, do gado, do café, mudou para as drogas quando o escritor já lá não estava, lá para os anos 80 e 90. "Aquele Minho já não existe. Se eu for hoje ao Minho, mesmo os lugares não os reconheço. Aquilo desapareceu. A mentalidade é diferente, as pessoas têm outros interesses. Têm uma vida menos arriscada, mais pequenina. Ainda há traficantes, mas é tudo feito dentro de um certo profissionalismo. O amadorismo e o grande risco já não estão lá. Eles sabem a quem comprar, como hão-de fazer, a coisa está muito bem oleada, não tem romantismo."
Outra das personagens que não se esquece é Laureano Oubiña: "Não é personagem de romance, ele é personagem de epopeia. Era um bruto, era uma força da natureza, tinha um poder tão forte e ao fim e ao cabo a gente olha para ele e é um boçal. Falando é um boçal, agindo é um génio", relembra Rentes.
A viagem somos nós
Não deixamos escapar que a única mulher no meio destes homens todos, Angélica, é uma traidora. "Essas pessoas são como os escorpiões. Ferram e sabem que vão morrer, mas não se importam e continuam a morder. Foi minha namorada, um tempinho, aos 16 anos, mas era a traição, a maldade encarnada. Pessoa estranha, mas muito atraente." Brincamos com o escritor dizendo-lhe que ainda vamos descobrir que afinal o que nos conta neste livro é tudo verdade e que afinal não há nada de ficção. "[Risos] É muito capaz. O episódio com Picasso [que dá o título ao livro] é verdade; a Madame é verdade."
Rentes lembra que a Madame era uma pessoa extraordinária. Tinha estudado medicina mas casou com um colaborador durante a guerra, foi presa e teve de deixar a medicina. "Outra coisa na vida dela foi fatal. Era muito alta, 1,82 metros, muito elegante, usava uns tacões muito altos. A mãe era uma senhora de metro e meio que tinha tido aquela filha gigantesca e que lhe tinha dito:'Marguerite, quando uma pessoa é tão agigantada aprende enfermagem e cala a boca.' Aquilo foi um trauma que ficou, ela era completamente o contrário da mãe. Era uma pessoa fora de comum. Amiga de Picasso."
Foi por causa desta preceptora que Rentes de Carvalho, amigo da filha dos donos da casa, acabou por lá viver e teve à sua disposição toda a biblioteca daquela que é agora a Estalagem da Boega. "Há uma fotografia que tirei em 1946 em que está o proprietário, a filha dele e a senhora. Era uma casa chique, alegre, cheia de antiguidades. Ela casou com o descendente do imperador D. Pedro II. Ainda existem, ainda estão vivos."
O futuro escritor já tinha tido a boa sorte de ter uma biblioteca no quartel do pai com umas centenas de livros: erotismo, policiais, clássicos, dos sete anos aos 10 era o que ele lia. Depois passou a arranjar os seus próprios livros e, quando conheceu a Madame (que tinha um segundo marido sobrinho-neto do Balzac), ela deixava-o passar horas enfiado na biblioteca daquela casa para saber o que era a verdadeira literatura.
Por esta altura já está mais do que certo que todos os livros de J. Rentes de Carvalho têm bocadinhos de memórias, daqui e dali, até aqueles que parecem não ter. "Se eu escrever as minhas memórias ninguém vai acreditar. Faria muito bem a algumas pessoas, mas faria muito mal a outras. E memórias póstumas só o Brás Cubas. Talvez um dia", diz o escritor, que já está entusiasmado com a saída do seu próximo livro de contos, "Os lindos braços da Júlia da farmácia".
Entretanto, tem dois livros encalhados. "Tenho um romance em que parei num assassinato e agora não sei o que hei-de fazer ao cadáver. Passa-se no Algarve. Agora tenho o cadáver, já sei um bocadito o que vou fazer com ele, mas ainda vai demorar uns três ou quatro anos. Ou mais, ou nunca. E o outro é um 'thriller'. Gosto da história, mas quero fazer aquilo bem feito. E demora muito tempo, sou muito preguiçoso. Você dá-me a mínima oportunidade para eu não escrever e paro logo".
De vez em quando Rentes de Carvalho sonha: "Se pudesse ir de férias para um lugar onde não tivesse ninguém, onde tratassem de mim, eu até escrevia o dia todo. Mas não escrevia nada. É um sonho."
Também não podemos esquecer a sua falta de interesse na viagem. "Total. Mas sabe porquê? Passei do nada a 15 anos de uma vida tão intensa, de tanta viagem, de tanta impressão nova, que chegou um momento em que as coisas passaram a repetir-se. Não me vai convencer com paisagens maravilhosas. A televisão já me mostrou as paisagens melhores que podia ver e aquelas que só os eleitos podem ver. Para mim, hoje, a viagem são as pessoas. Você é a minha viagem hoje."