Por trás do muro, a obra da vida de Roger Waters
“The Wall” não é apenas o álbum no limite da autobiografia a que Roger Waters conduziu os Pink Floyd em 1979. “The Wall” é o projecto da sua vida. É o seu álbum manifesto contra o potencial totalitário da política, contra o carácter criminal da guerra, contra a opressão que o homem exerce sobre o homem, mal tenha oportunidade, desventura, ou ambas, para o fazer. E por isso Roger Waters, que imaginou o álbum pondo no centro da acção aquilo que melhor conhecia – a sua própria vida e o circo rock'n'roll -, regressou a ele em 1990 e regressou ao ele o ano passado, no início da viagem que passou agora por Lisboa.
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“The Wall” não é apenas o álbum no limite da autobiografia a que Roger Waters conduziu os Pink Floyd em 1979. “The Wall” é o projecto da sua vida. É o seu álbum manifesto contra o potencial totalitário da política, contra o carácter criminal da guerra, contra a opressão que o homem exerce sobre o homem, mal tenha oportunidade, desventura, ou ambas, para o fazer. E por isso Roger Waters, que imaginou o álbum pondo no centro da acção aquilo que melhor conhecia – a sua própria vida e o circo rock'n'roll -, regressou a ele em 1990 e regressou ao ele o ano passado, no início da viagem que passou agora por Lisboa.
O perigo de vermos “The Wall Live” em 2011, como o vimos ontem, na primeira das duas datas esgotadas no Pavilhão Atlântico que marcaram o início da parte europeia da digressão, era depararmos com um mero exercício de nostalgia, tecnicamente inatacável, mas incapaz de falar ao presente. Ora, o conceito de ópera rock pode ser antigo e ultrapassado, mas “The Wall Live” não foi um espectáculo saudosista e anacrónico. Impressionante e majestoso visualmente, pode ter coberto a totalidade de um disco antigo de três décadas, repleto de pormenores datados (os solos senhores, aqueles solos que não abrilhantavam, emperravam a narrativa), mas foi uma vitória. O muro foi sendo construído entre as memórias da II Guerra Mundial, a experiência de estrelato de Waters (muitas mulheres, muitos corpos durante o pub rock de “Young lust”) e o mundo actual onde, como sempre, se mata e morre demasiado. Vimos crescer o muro entre ganância empresarial e paranóia muito pessoal, Waters isolou-se do público nele refugiado e no fim de tudo, depois das explosões e dos raides aéreos, do ruído interminável das televisões e do julgamento grotesco que marca o final da narrativa, tudo caiu com estrondo: tijolo a tijolo dos 10 metros de altura e 75 de comprimento que compunham o muro. Depois, reapareceu com a banda entre o pó e os destroços e cantou “Outside the wall”, acompanhado pelo coro dos companheiros, pelas guitarras acústicas, mandolin e concertina. Uma brisa folk simples e directa, como que um regresso às raízes despido de toda a opulência anterior. “Quando escrevi este disco tinha problemas em estar perante tanta gente. Muito mudou desde então. Obrigado”, disse então. “Roger?”. “Over and out”. Missão cumprida.
Num momento em que as grandes produções de palco da música popular urbana, das crucificações de Madonna às libertinagens castiças de Lady Gaga, são fogo-de-artifício pretensamente provocatório, há algo de digno e muito respeitável na ambição de Roger Waters. “The Wall” é uma megalomania, e quanto a isso não tenhamos quaisquer dúvidas – basta atentar no avião que, no final de “In The Flesh”, logo a início do espectáculo, desce dos céus de madeira do Pavilhão para se despenhar contra o muro com estrondo, originando uma explosão de pirotecnia, ou, bem mais tarde, no gigantesco porco insuflável que flutuou sobre a plateia durante “The show must go on”. Essa escala grandiosa, porém, nunca descambou para fogueira de vaidades de uma estrela rock multimilionária.
Num Pavilhão Atlântico onde a maioria de veteranos não foi tão esmagadora quanto se podia pensar, onde um pai, prestes a lançar-se em dança de guitarra imaginária em punho, dizia ao filho adolescente “esta conheces!” (anunciava-se “Another brick in the wall” e o filho não dançou, mas esteve atento) e onde outros filhos cantavam com outros pais qualquer canção que se apresentasse, não houve sombra de memória de que este foi o álbum que levou a geração punk a inscrever um explícito “I hate” sobre t-shirts dos Pink Floyd.
Num Pavilhão Atlântico onde dificilmente teremos ouvido melhor som (nem sinais dos irritantes ecos ali habituais), apesar da aceleração de “Run like hell” soar datada como canção dos Foreigner e apesar de ser dispensável, pelo efeito quase cómico que provocou, a aparição surpresa de um guitarrista, no topo do muro, para o solo da muito esperada “Comfortably numb”, “The Wall” foi humano e glorioso, empolgante.
Enquanto o muro era construído, viram-se as crianças da Associação Moinho da Juventude da Cova Moura derrotar o gigante professor de “Another brick in the wall” e ouviu-se Roger Waters em dueto consigo mesmo enquanto jovem, resgatado a uma filmagem da digressão original de 1980, quando era “miserável e nada feliz”, disse o Roger de 67 anos ao apresentar a óptima “Mother”, palco da vaia da noite, disparada ao som do verso “mother should I trust the government?”. O muro crescia e as canções sucediam-se tal como registadas em disco, que o escrupuloso Waters, é sabido, não tolera fugas ao guião. Nele couberam, em “The thin ice”, as imagens de vários dos que morreram em conflitos mundo fora desde a segunda guerra mundial – o pai de Waters, Eric, morto na invasão aliada à Itália quando Roger não tinha ainda nascido, foi o primeiro, num contínuo que se prolongou até à actualidade.
Com a banda discreta em palco, vestida de negro e sem focos de luz sobre si, progressivamente tapada pelo muro, o concerto foi, acima de tudo, uma experiência visual envolvente e montada sem mácula. Com o muro como ecrã gigantesco onde se concentravam todos os olhares, vimos um metro passar a alta velocidade quando surgiu no ecrã Jean Charles Menezes, o cidadão brasileiro morto pelo afã antiterrorista da polícia britânica, assistimos a bombardeamentos com cruzes cristãs, estrelas de David, cifrões de dólar, logótipos de marcas de carro e petrolíferas. E vimos Roger Waters despedir-se da primeira parte do concerto com uma balada beatlesca: “Goodbye cruel world”, disse quando se fechava sobre a sua face o último buraco aberto no muro.
Na segunda parte, cumprindo a intenção original de ter uma barreira isolando os músicos da plateia, ouviu-se a “Hey you” e a “Comfortably numb” que todos queriam ouvir, e foram projectadas citações do “1984” de Orwell ou de “O Processo” de Kafka, dois tratados sobre autoritarismo fulcrais na criação de “The Wall”. Vimos Roger Waters transformar-se em déspota totalitário de óculos escuros e longa gabardina preta, rodeado das bandeiras gigantes adornadas com os martelos cruzados que reconhecemos da iconografia visual de “The Wall”, criada pelo artista gráfico Gerard Scarfe. Por fim, assistiu-se ao julgamento e à redenção final, quando o muro se desmorona, quando a pirotecnia se silencia por fim para revelar cerca de dezena e meia de músicos cantando uma simples e velha canção folk de há trinta anos. Roger Waters, homem feliz, lançou um último obrigado e despediu-se.
Cá fora, pouco depois, um grupo de adolescentes cantava “We don't need no education”, um homem conhecedor elencava a formação dos Yes aos amigos, uma mulher discutia com quem a acompanhava a tarefa épica que terá sido montar um espectáculo destes. Épico? Há trinta anos, foi o pesadelo megalómano de um homem chamado Roger Waters. Hoje é o seu sonho. Apresenta-o como a vitória da sua vida.