Quando a violência vem dos artistas e dos escritores

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Gonzalo Fuentes/REUTERS

Louis-Férdinand Céline, um dos escritores fundamentais da literatura francesa do século passado, foi já este ano excluído pelo Ministro da Cultura de França da lista dos autores a serem homenageados, e o costureiro John Galliano viu a sua "passagem" de moda ser cancelada na edição deste ano da Moda Paris e foi despedido da casa Dior para a qual trabalhava. Ambos foram acusados de anti-semitismo e de apelo à violência contra os judeus. Estes dois episódios colocaram de novo em debate a relação da arte com a violência, de algum modo uma das muitas associações, tantas vezes tida como tabu nas histórias das artes, na literatura, e em muitos aspectos da cultura contemporânea. E, contudo, esta relação tão escamoteada é das relações mais antigas, mais tensionais e tantas vezes tão produtivas na História da Cultura. O que está, então, em causa nesta relação da arte com a violência? Não é com certeza o facto de as artes tantas vezes se terem ocupado da violência, da morte, da tragédia: do poema de Gilgamesh ao filme "Blue" de Derek Jarman, da "Ilíada" de Homero à estatuária cristã e a muitas das fotografias de Paulo Nozolino, da "Antígona" de Sófocles aos filmes dos irmãos Coen, são inúmeras as cenas e as representações de violência nas mais diversas expressões. A Poética de Aristóteles cria, como núcleo central da razão de ser do teatro, o exorcismo da violência, e a psicanálise está cheia de recomendações de como gerir a representação da violência quer sobre o próprio, quer sobre os outros. Há aliás um pastiche de Umberto Eco em "Diário Mínimo", simulação de um relatório de editor que analisa textos candidatos a publicação. Quando lhe chega às mãos o manuscrito "de autores anónimos, a Bíblia", o editor escreve que, tendo começado por gostar do texto, dado o facto de as primeiras centenas de páginas conterem muita acção e terem tudo o que o leitor pretende de um livro de evasão - muito sexo, adultérios, sodomia, mortos, guerras, massacres, etc...- este acaba por o decepcionar pela previsibilidade da narração, e conclui que, a ser publicado, o livro deverá ganhar outro título: "Os Desesperados do Mar Vermelho". A paródia revela bem como a violência está associada à história das artes, como ela lhe é indissociável, até porque da sua construção narrativa, mais ou menos perfeita, ou da sua expressão, resultaram sempre cânones de legitimação das mesmas enquanto obras literárias ou de arte. Contudo, estamos aqui a referir-nos ao plano da representação em que, apesar de tudo, é possível, necessário até, reivindicar a autonomia ontológica da arte. Não é isto que se passa quando o escritor Céline escreve textos e toma posições públicas racistas, e Galliano vocifera contra os judeus desejando-lhes a morte. A estes exemplos poder-se-iam juntar outros: o artista da Costa Rica, Guillermo Habacuc Vargas, recentemente expôs um cão rafeiro faminto numa galeria de arte. Vargas encarcerou o cão preso na exposição atando-o com uma curta corda. Ninguém alimentou ou deu água ao cão que morreu durante a exposição.

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Louis-Férdinand Céline, um dos escritores fundamentais da literatura francesa do século passado, foi já este ano excluído pelo Ministro da Cultura de França da lista dos autores a serem homenageados, e o costureiro John Galliano viu a sua "passagem" de moda ser cancelada na edição deste ano da Moda Paris e foi despedido da casa Dior para a qual trabalhava. Ambos foram acusados de anti-semitismo e de apelo à violência contra os judeus. Estes dois episódios colocaram de novo em debate a relação da arte com a violência, de algum modo uma das muitas associações, tantas vezes tida como tabu nas histórias das artes, na literatura, e em muitos aspectos da cultura contemporânea. E, contudo, esta relação tão escamoteada é das relações mais antigas, mais tensionais e tantas vezes tão produtivas na História da Cultura. O que está, então, em causa nesta relação da arte com a violência? Não é com certeza o facto de as artes tantas vezes se terem ocupado da violência, da morte, da tragédia: do poema de Gilgamesh ao filme "Blue" de Derek Jarman, da "Ilíada" de Homero à estatuária cristã e a muitas das fotografias de Paulo Nozolino, da "Antígona" de Sófocles aos filmes dos irmãos Coen, são inúmeras as cenas e as representações de violência nas mais diversas expressões. A Poética de Aristóteles cria, como núcleo central da razão de ser do teatro, o exorcismo da violência, e a psicanálise está cheia de recomendações de como gerir a representação da violência quer sobre o próprio, quer sobre os outros. Há aliás um pastiche de Umberto Eco em "Diário Mínimo", simulação de um relatório de editor que analisa textos candidatos a publicação. Quando lhe chega às mãos o manuscrito "de autores anónimos, a Bíblia", o editor escreve que, tendo começado por gostar do texto, dado o facto de as primeiras centenas de páginas conterem muita acção e terem tudo o que o leitor pretende de um livro de evasão - muito sexo, adultérios, sodomia, mortos, guerras, massacres, etc...- este acaba por o decepcionar pela previsibilidade da narração, e conclui que, a ser publicado, o livro deverá ganhar outro título: "Os Desesperados do Mar Vermelho". A paródia revela bem como a violência está associada à história das artes, como ela lhe é indissociável, até porque da sua construção narrativa, mais ou menos perfeita, ou da sua expressão, resultaram sempre cânones de legitimação das mesmas enquanto obras literárias ou de arte. Contudo, estamos aqui a referir-nos ao plano da representação em que, apesar de tudo, é possível, necessário até, reivindicar a autonomia ontológica da arte. Não é isto que se passa quando o escritor Céline escreve textos e toma posições públicas racistas, e Galliano vocifera contra os judeus desejando-lhes a morte. A estes exemplos poder-se-iam juntar outros: o artista da Costa Rica, Guillermo Habacuc Vargas, recentemente expôs um cão rafeiro faminto numa galeria de arte. Vargas encarcerou o cão preso na exposição atando-o com uma curta corda. Ninguém alimentou ou deu água ao cão que morreu durante a exposição.

Com o pretexto de denunciar o cinismo ou o oportunismo de muitas ONGs a trabalharem em África, bem como organizações que se afirmam como humanitárias, o documentarista holandês Renzo Martens realizou "Enjoy Poverty". É um filme que exibe pessoas vivendo nas mais indignas condições de salubridade, expostas na sua pobreza, na sua nudez, filmadas como suposta prova do oportunismo das tais ONGs. São pessoas que nesta situação são instrumentalizadas e porventura, dada a quantidade de intervenientes, nunca deram autorização para serem filmadas e expostas, e as suas imagens difundidas nessa enorme fragilidade que tanto as humilha. Há muitos outros modos de denúncia das possíveis atitudes cínicas ou oportunistas de possíveis ONGs, sobretudo numa época de acesso a uma globalização da informação. Não seria esta a situação dos anos de chumbo sob a ditadura brasileira em que o artista brasileiro Cildo Meireles, em 1970, em Belo Horizonte, no contexto de uma exposição de acções colectivas, queimou galinhas vivas em homenagem ao sacrifício de Tiradentes, totem-monumento ao preso político. Mesmo em "anos de chumbo", em que a urgência da revolta e da insubordinação deveria ser actuante, esta acção executava um acto de barbárie contra animais e publicitava o mesmo acto. Consciente disso, não é com certeza por acaso que, desde então, Cildo Meireles se remeteu a um total silêncio sobre esta acção. Muitos dos que advogam que os actos destes  artistas se podem legitimar pela autonomia das artes, incorrem na falácia de que não estamos face a uma representação da violência ou da morte mas face à execução não ficcionada das mesmas. Acresce ainda que o que permitiu a inclusão destas acções, dos happenings e das performances no contexto da arte foi exactamente o facto de esta ter saído do regime de autonomia para se contagiar do quotidiano e da vida, de acabar com a esteticização anestesiante da arte, para ligar a arte à vida, como dizem todos os textos extraordinários de Allan Kaprov. Tais atitudes, que são indefensáveis no plano ético, são-no também no plano do Direito. Nenhum relativismo artístico justifica qualquer violência sobre outro, homem ou animal. Para os que consideram que entre a pessoa e o autor, e mesmo entre o autor e o seu heterónimo, haverá um espaço de desresponsabilização, é oportuno afirmar que o direito de autor, de facto, não desresponsabiliza nem diferencia o autor da pessoa. A confirmá-lo estão os direitos de carácter patrimonial, do reconhecimento do direito de autor e o direito sobre a paternidade da obra. Em todas estas situações: autor e criador, artista e criador, e pseudónimo e criador, gozam do usufruto da identificação inequívoca.