A ternura dos (anos) 70
François Ozon passa a vida a dar guinadas numa carreira que parece apenas conduzida pela sua vontade de fazer um filme diferente do que fez antes, mesmo que se detectem no seu cinema dois temas centrais que ressurgem repetidamente (o papel da mulher na sociedade contemporânea, e o confronto quotidiano com a família). Não devia, por isso, ser uma surpresa vê-lo a abraçar a alta comédia em "Minha Rica Mulherzinha", adaptação de um grande êxito do teatro de boulevard de 1980, a seguir ao melodrama de "O Refúgio" e à fantasia surreal de "Ricky".
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François Ozon passa a vida a dar guinadas numa carreira que parece apenas conduzida pela sua vontade de fazer um filme diferente do que fez antes, mesmo que se detectem no seu cinema dois temas centrais que ressurgem repetidamente (o papel da mulher na sociedade contemporânea, e o confronto quotidiano com a família). Não devia, por isso, ser uma surpresa vê-lo a abraçar a alta comédia em "Minha Rica Mulherzinha", adaptação de um grande êxito do teatro de boulevard de 1980, a seguir ao melodrama de "O Refúgio" e à fantasia surreal de "Ricky".
Nem vê-lo a introduzir essas suas marcas registadas na história de uma dona de casa provinciana que, forçada a assumir o lugar do marido, patrão tirânico, na fábrica familiar, se torna numa patroa exemplar e descobre que a sociedade não está forçosamente interessada em reconhecer o seu valor. Ozon aproveita, ao mesmo tempo, para lançar o seu proverbial olhar entomológico sobre uma sociedade que não mudou assim tanto nos trinta anos que passaram desde a criação da peça, e para exultar com a oportunidade de devolver algumas cartas de alforria a uma comédia francesa que há muito não víamos tão descontraída.
É inevitável pensar nas "8 Mulheres" que fizeram de Ozon um dos jovens cineastas franceses mais em vista, e de facto "Minha Rica Mulherzinha" partilha com essa comédia algum ADN de artifício deliberado, mas sente-se aqui uma outra gravidade e uma elegância mais reservada onde o anterior era um filme muito mais sulfuroso e ácido. Filmado de modo abertamente "seventies", mas sem nostalgia serôdia e sempre com uma piscadela de olho meta-referencial que pede a cumplicidade do espectador, simultaneamente irónico e afectuoso, o filme procura transcender as limitações da peça que lhe está na origem sem por isso negar o prazer de desfrutar das suas convenções a um nível puramente epidérmico. E o prazer enorme de ver Catherine Deneuve numa performance deliciosamente efusiva, recordando como a diva icónica do cinema francês também pode ser uma actriz de comédia de primeiríssima água, já chegaria para recomendar "Minha Rica Mulherzinha".
Mas este é um filme muito mais esquivo do que parece, que esconde ainda uma sátira política inspirada pelo confronto eleitoral entre Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal e um retrato de mulher que se decide a tomar o seu destino nas mãos pelo meio de uma comédia muito mais séria do que o primeiro embate pode dar a entender.